Pra começar, Debra e Gavin se casaram pela primeira vez quando ela tinha 19 anos e ele tinha 22 – ambos estavam na Universidade da Califórnia, ela na metade do curso de História, ele já no penúltimo ano do curso de medicina. Foi um choque para as duas famílias, que ficaram sem entender o porquê de toda aquela precipitação, mas, logo depois, o motivo ficou bem claro: Debra estava grávida de gêmeos. Se antes fora um choque, o que veio em seguida foi o apocalipse familiar; Gavin ainda tinha dois anos de medicina pela frente e Debra ainda demoraria para tirar a licenciatura de professora universitária.
Ambos os lados se juntaram e ajudaram o máximo possível; deu certo: quando Matthew e eu tínhamos quase 3 anos, Gavin se tornou clínico geral do hospital de Santa Cruz e Debra terminava a pós graduação e se preparava para dar aulas no curso inicial da Universidade de Santa Cruz. Antes, morávamos com a nossa avó materna, então nós quatro nos mudamos para perto do hospital. Tudo seguia normal até completarmos 13 anos.
Foi nessa época que os problemas começaram; Gavin basicamente se ocupava apenas do hospital, começara a fazer plantões de 72 horas seguidas e Debra reclamava sobre os anos que ela havia jogado fora (particularmente, eu achava isso um insulto, como se eu que tivesse me esquecido de usar proteção aos 19 anos) e que viver somente para criar adolescentes não era pra ela (ela havia parado de dar aulas na universidade para passar mais tempo em casa). Inevitavelmente, a separação chegou e não foi surpresa pra ninguém. E nem foi difícil, pelo menos pra mim. Eu sinceramente preferia meus pais separados do que brigando o tempo todo e tornando o ambiente insuportável. Quem não gostou dessa ideia foi Matthew: ele teve reagiu de forma péssima, permaneceu semi mudo durante meses, mal trocava uma palavra comigo (e ele nunca fora esse “irmão monstro” que quase todos dizem ter, ele era praticamente o meu melhor amigo) e se metia em problemas no futebol – agressões, provocações, intimidações. Foi até expulso do time.
Quase um ano depois, Matthew já estava conformado com a situação; não era o mesmo de antes, isso era óbvio, mas pelo menos deixou de se envolver em problemas, pelo contrário: ele virou o aluno exemplar, o filho compreensivo, o irmão melhor amigo. Eu não reclamava. Aliás, eu nunca fui de reclamar de nada, eu gostava das coisas como elas eram e estava disposta a encarar praticamente tudo com bons olhos.
Mas, como eu já disse, minha família só passa as impressões erradas, até para os que estão presentes nas situações. Quando eu achei que, em breve, Debra e Gavin encontrariam seus respectivos pares e, então, arrumariam de vez suas vidas, uma reunião escolar muda tudo.
Num desses encontros de pais e professores que a as escolas insistem em organizar para “promover a integração entre as famílias e os educadores”, Debra e Gavin acabaram conversando, rindo, relembrando e, surpresa, marcando um jantar. Talvez eles tivesssem pensado bastante a respeito do conceito de família, talvez precisassem apenas de um ombro amigo para contar ou, quem sabe, tivessem percebido que aquele amor de adolescente não bastava e que, agora, eles tinham cabeça o suficiente para assumir um novo compromisso.
Aparentemente, a última opção é a mais válida já que, seis meses depois, Gavin e Debra saíam sorridentes do cartório civil, seguidos de nossos avós, Matthew e eu. Por falar em Matthew, ele tornou a não aceitar a nova condição de “família” mas, pelo menos, não era insuportável, só um pouco irritante e indignado. Ele achava que os nossos pais eram o exemplo perfeito de desequilíbrio emocional, já que mal sabiam definir se continuavam juntos ou se separavam. Por isso ele assumira uma condição um tanto quanto incomum para os garotos da nossa idade atualmente; ele não era mais do tipo que se divertia, que pulava de um namoro para outro, sem muitos precedentes. Aos 16 anos, Matthew buscava a pessoa certa para ele. Que grande idiota.
Eu? Eu estava bem. Ninguém nunca se lembrava muito de mim (exceto Sunny, mas ela, bom, não conta); eu estava ali, na minha, aceitando e sempre gostando de tudo. Eu não dera muito trabalho até ali.
Claro, até ali praticamente tudo estava bem. Até ali eu não tinha escutado Gavin no telefone conversando com o seu amigo Billy (que eu me lembrava vagamente) sobre fazer uma visita a Warrenton, sua cidade natal. Até ali eu não havia visto que, quando Gavin voltara de sua pequena viagem de três dias para Warrenton, ele voltara sorridente e animado. Até ali eu não havia visto que ele trazia consigo mais quatro passagens aéreas para lá, só de ida. Até ali eu não havia notado que Debra pedia transferência da faculdade, juntamente com uma carta de recomendações, e que Gavin estava na mesma situação.Basicamente, até ali ninguém havia nos dado a notícia que nos mudaríamos para a maldita Warrenton. Então eu comecei a causar problemas.
O Condado de Clatsop, no Oregon, envolve três cidades: Astoria, Cannon Beach e Warrenton. E era ali que Gavin havia nascido e vivido até os 17 anos, quando ele e os pais se mudaram para a Califórnia. Ele voltara lá, no mínimo, uma vez ao ano para visitar os antigos amigos e familiares; Billy era um desses, ele não morava exatamente em Warrenton, mas sim em uma reserva ou vila (ou qualquer nome que aquele lugar tinha) depois de uma floresta de pinheiros que rodeava o lago Cullaby. E nessa reserva/vila havia um pequeno hospital, onde vagas para médicos de pronto atendimento estavam sobrando. Na infeliz data que Gavin resolvera visitar Billy, ele comentara sobre a tal vaga e isso despertou seu interesse. Gavin tinha a oportunidade de “voltar às raízes” e a boa proposta de emprego, então não pensou duas vezes: em uma semana, já estava de licença do Hospital de Santa Cruz. Debra havia gostado da ideia, Billy até conseguira que ela pegasse a vaga professora de História para o Ensino Médio na escola do lugar (a gama de empregos por aquela cidade me assustava, ou então as pessoas dali realmente queriam meu pai por perto).
Para a minha total surpresa, Matthew aceitou tudo muito bem. Ele parecia eu, otimista e confortável com a situação toda. Eu esperava exatamento o contrário: que ele me apoiasse, que concordasse que aquela ideia era estúpida, que os dois já tinham tudo que queriam em Santa Cruz, que não havia necessidade alguma de um “recomeço” em outra cidade. Mas o maldito não ficou do meu lado.Usei todos os argumentos possíveis para evitar a mudança, mas era em vão. Claro, era apenas eu fazendo militância sobre um assunto que já havia sido decidido. Não tinha a menor chance. A ideia de ir para Warrenton me soava devastadora, aquela cidade significava outra vida, outro mundo completamente oposto à Santa Cruz. Frio, chuva, neve, verde, cinza o ano inteiro, temporada de caça aos ursos, nada disso era agradável.
Eu havia me adaptado a tudo: brigas, separação, volta do casamento... Mas tudo aquilo era a minha vida, era o lugar que eu amava, com os amigos que eu amava, na casa que eu amava. Por trás de todas as questões fúteis (clima, vida social, tempo livre), aquela era a verdade: eu sentiria falta das coisas de antes. Preferia enfrentar mil brigas, mil separações, mil irmãos contrariados e rebeldes, desde que estivesse na minha zona de conforto, no meu mundo. Eu não sabia se odiaria, mas tinha certeza que não me sentiria bem, ou então que demoraria a me acostumar. No momento em que entramos no avião com destino a Portland, que ficava mais próxima de Warrenton, eu já estava vulnerável, sensível ao menor toque ou informação, já sentindo saudades de tudo que deixaria por ali.
Deixamos Santa Cruz na madrugada de uma quinta-feira que prometia ser ensolarada. Se foi ou não, eu não tinha como saber; chegamos em Portland às onze da manhã e tudo que eu via era o céu nublado e escuro. Como viemos em um desses aviões monstro que transportam passageiros e suas cargas, enquanto Matthew e eu buscávamos Sunny no “despache de animais”, Gavin e Debra nos esperavam no estacionamento em seus respectivos carros (resquícios do divórcio, eles nunca andavam no mesmo carro, alegando independência) e fomos seguidos por um caminhão de mudanças que levava todos os nossos móveis e objetos.
De Portland até Warrenton eram duas horas. Duas horas de Gavin me contando sobre como a família de Billy era legal, que todos na reserva eram como irmãos e que, quando eu era criança, eu sempre pedia para que nos levassem lá nas férias.
- Eu não me lembro de nada disso – eu dizia, quando ele tentava forçar essas memórias para minha cabeça, contra a minha vontade.
- Ah, claro que lembra – ele insistia, aumentando o tom de voz e sorrindo – Você adorava brincar com o filho de Billy.
- Então tá – concordei, de má vontade, mesmo que não lembrasse direito nem do Billy, quanto mais se ele tinha um filho ou se eu gostava de brincar com ele (essa ideia era tão ridícula que me constrangia).
O caminho até Warrenton com Gavin se resumiu nele contando histórias sobre a reserva e sobre seus amigos, enquanto eu tentava me concentrar na música que tocava no carro como ruído de fundo. Me agarrava a qualquer oportunidade de não pensar naquela cidade e em sua maldita reserva.
- Nós vamos morar lá? - eu perguntei, incrédula, arregalando os olhos – Na reserva?
- Ah não – ele respondeu, dando uma olhada para o carro de Debra e o caminhão da mudança pelo retrovisor – Nós vamos ficar em Warrenton, mesmo. A reserva já é uma espécie de patrimônio, só as famílias antigas podem ficar por lá.
Relaxei os ombros e suspirei, pelo menos uma notícia razoável na coisa toda. Virei para o banco de trás, pegando meus fones de ouvido na mochila, e vi Sunny aranhando o carpete de couro do carro; pelo visto, ela providenciara sua vingança contra o meu pai, já que longas viagens eram mais estressantes para animais do que para pessoas. Sorri quando vi o pequeno estrago no chão.
Tudo em Oregon era igual, só que em diferentes proporções. Veja Portland, a maior cidade, e o Condado de Clatsop: Portland é basicamente cinza pelo céu nublado e verde pelas florestas de pinheiro, e tudo fica bem embaçado pela chuva fina que não para de cair nessa época do ano. Warrenton é exatamente assim, mas numa escala cem vezes menor – tanto em termos de espaço quanto em termos de população. 30 mil pessoas residem no Condado de Clatsop, onde apenas 8 mil estão em Warrenton e na reserva.Só o meu bairro em Santa Cruz deveria ter mais que 30 mil habitantes. Minha antiga escola tinha 5 mil alunos no total. Difícil.
Depois de passarmos pela placa de Bem-vindos a Warrenton!, a cidade já começava a aparecer. Dali da entrada eu já conseguia ver as velas dos barcos que ficavam no píer, a comprida ponte que dava para o outro lado da cidade, as lojas de turismo e equipamentos esportivos e postos de gasolina. Logo depois, o centro da cidade apareceu, bem cheio de outras lojas (que eu mal lembrava que existiam desde a última vez que eu fora até ali) e o único hotel da cidade, cercado por um muro branco e azul que destoava do cenário ao redor. Parada ali no semáforo, olhando para a minha esquerda eu via a floresta de pinheiros e o lago Cullaby (imaginando que, logo após, viria Sunset Beach) e, olhando para a direita, eu via a baía cheia de barcos de transporte. Eu odiava tudo, até mesmo aquilo que já era vagamente conhecido.
Passamos pelo centro e entramos na, digamos, área residencial da cidade. Basicamente era um conjunto de casas vitorianas antigas (pra variar, rodeadas por pinheiros) dos dois lados das ruas, o que com certeza me faria quase entrar na casa errada um dia desses.
Gavin estacionou em frente a uma das casas, seguido por Debra e pelo caminhão de mudança. Gavin ainda acrescentou um sorriso e um suspiro animado antes de abrir a porta do motorista. Eu, no estágio mais avançado de lentidão, peguei Sunny e sua almofada vermelha no banco de trás, coloquei meus fones de ouvido e andei até Matthew, que estava parado na calçada, observando tudo a seu redor. Acompanhei seu olhar, acrescentando reprovação.
- Então... - eu disse, depois de desistir de analisar o ambiente com olhos que não fossem de total crítica e censura.
- Então o quê? - Matt perguntou, desligado, olhando pra mim.
Encarei-o, tentando entender de onde toda aquela aceitação vinha. Na visão periférica, eu vi Gavin, Debra e três homens da mudança carregando os móveis pra dentro da casa. Aquilo demoraria um século, pra variar. Andei até a varanda que havia por ali e me sentei no canto da escadinha de madeira pintada de tinta branca, colocando Sunny no meu colo. Matt veio em seguida, mas só parou ao meu lado e começou a rir bem baixinho.
- Que foi? - perguntei, já irritada.
- Não é nada – ele respondeu, mas ainda sorria – É que nós meio que trocamos de lugar, não acha? Antes, eu era o garoto problema e você era a otimista.
- É, um fato memorável, digno de risadas – eu disse, dobrando minhas pernas e abraçando meus joelhos, colocando a cabeça entre eles.
- Argh, não suporto esse senso de humor mórbido! - Matt reclamou, com uma voz igualmente irritada, dando dois passos e entrando dentro da casa.
- É um lugar mórbido – respondi em voz baixa, praticamente pra mim mesma do que para Matt. - O senso de humor é pra combinar.
Ele me ignorou. Ouvi o eco de seus passos vindos de dentro da casa. Achei que fosse ter alguns minutos, talvez até uma hora, em paz naquela escadinha, mas logo ouvi Debra gritando:
- Vocês dois! Matthew, seja homem e venha carregar os móveis também! , me ajude com as caixas!
Suspirei pesarosamente, coloquei Sunny de lado e andei até o caminhão, onde Debra pegava as caixas com etiquetas do tipo COISAS DO MATTHEW ou COZINHA e fazia sinal para que eu pegasse uma delas também e levasse até dentro da casa. Com uma grande caixa cheia de pequenos quadros e coisinhas de artesanato que Debra comprava, andei até a casa e, pela primeira vez, entrei. Não era de todo ruim; quer dizer, era completamente diferente da nossa casa de apenas um andar e paredes brancas e grandes janelas de vidro em Santa Cruz, mas até que era legal. O piso era escuro de madeira corrida, o papel de parede vintage variava de cor em cada cômodo (algo que minha mãe mudaria imediatamente, deixando todas os cômodos brancos, apenas com um lado coberto pelo papel).
Pelos passos de Matthew, ele estava na cozinha. Andei até lá com a grande caixa equilibrada nos dois braços; assim que eu pisei, ele a pegou e colocou em cima da bancada de mármore. A cozinha tinha o mesmo piso de madeira escura, mas sem papel de parede, apenas azulejos brancos com florzinhas amarelas pintadas nos lados. Revirei os olhos para toda aquela decoração imbecil e marchei até o caminhão para pegar outra caixa.
Mais de duas horas depois, os móveis estavam devidamente colocados e montados em seus respectivos cômodos (até mesmo nos quartos, Debra havia insistido que nenhum de nós deveria dormir em colchões logo na primeira noite na casa nova). Eram quatro da tarde e o caminhão de mudança já havia ido embora, deixando a parte de “organização e decoração” por nossa conta. Hora das caixas.
Cada um ficou responsável por seus respectivos objetos – levei minhas caixas até o meu quarto (pelo menos onde eu supunha que era, já que minha cama, meu armário, minha mesa com o grande espelho redondo, minha escrivaninha, meu pequeno sofá de couro já um pouco gasto e minha estante estavam por ali) e comecei a guardar meus pertences. Livros na estante, roupas no armário, objetos pequenos na escrivaninha e pequenas cosinhas de decoração que Debra vive comprando. Depois de arrumar tudo, desci as escadas (que eu tinha achado especialmente apertadas e claustrofóbicas demais) e fui até a sala, tentando ajudar com alguma coisa.
Gavin havia elogiado o meu comportamento desde que chegara ali; nenhuma reclamação, sem resistência ou algo do tipo. A verdade é que eu queria me manter o mais ocupada o possível, assim adiaria toda a tristeza e raiva para a noite – ou para o dia seguinte na escola, já que Debra havia nos premiado com a incrível notícia que começaríamos as aulas logo no dia seguinte, na sexta-feira.
Eram sete ou oito da noite quando a maior parte da casa já estava organizada com, pelo menos, uma parte dos objetos e pertences de cada cômodo. Como ainda não tínhamos telefone, internet ou TV instaladas, Gavin e Debra saíram para buscar algo para o jantar. Enquanto eu brincava com minhas unhas no balcão frio da cozinha, Matthew se sentou ao meu lado, com uma expressão que sugeria que ele queria conversar.
- Não é tão ruim – ele começou, com uma voz que parecia suplicar por alguma coisa.
- Você diz isso o tempo todo – respondi, ainda encarando o balcão – Já virou um mantra.
Ele riu, desconfortável. Passou a mão pelos cabelos escuros um pouco compridos demais e suspirou; Matt era cheio de pequenas manias e, quando queria expressar alguma coisa contida, ficava inquieto e se mexendo sem parar. Levantei meus olhos sugestivamente, dando espaço para ele finalmente falar o que queria.
- Ok – ele me olhou um pouco desconfiado, com certeza prevendo que eu reagiria mal depois do que ele dissesse – Eu acho que você está sendo egoísta e ingrata demais.
- Quê?
- Isso aí – ele ergueu as sobrancelhas, se arrumando no banco e ficando de frente pra mim. - Eu entendo perfeitamente a raiva, eu guardei raiva durante anos e...
- Acredite – eu interrompi – você não teve raiva “guardada”. - fiz aspas com os dedos – Todo mundo precisou lidar com o seu mau humor insuportável e seus problemas na escola. Não teve nada de guardado em você.
- Posso terminar?
Ele me olhou com raiva e eu assenti que sim.
- Você era a otimista de tudo, você via tudo como uma, sei lá, oportunidade de mudança, de que as coisas melhorariam, e eu nunca acreditei porque eu só queria que a gente fosse uma família normal. – ele foi dizendo, piscando várias vezes à medida que colocava as palavras pra fora – E isso foi egoísta da minha parte.
“Eu ainda tenho tanta raiva acumulada quanto você tem a sua raiva agora. Eu não concordo nem um pouco com o jeito que nossos pais estão juntos, pra começar que não significa que eles estão equilibrados só porque estão mais velhos, mas sabe o que é? Eu acho que essa mudança, toda essa coisa de mudar de cidade pode fazer bem, isso sim pode transformar a cabeça dos velhos. Pela primeira vez sou eu quem quer que as coisas melhorem e você é a egoísta da história. Nós não nos mudamos só por causa deles, nos mudamos pela família toda”.
Fiquei um minuto pensando no que Matt acabara de dizer. Eu jamais admitiria em voz alta, mas ele estava certo em partes. Era mesmo egoísmo da minha parte, mas eu simplesmente não enxergava nenhuma melhoria na cidade, e não era só pelos motivos fúteis como o clima, as pessoas e coisas assim. Eu só... não via.
- Pode até ser. – eu disse, depois de pensar um pouco – Mas, sabe, eu cansei de só acreditar, queria ver alguma mudança de verdade, só pra variar. Quem garante que, a partir de agora, eles não vão começar a brigar mais uma vez? Que vão ficar ocupados demais nos novos empregos e vão esquecer da família mais uma vez?
Achei que ele fosse me passar mais um discurso a respeito de tudo, mas não. Ele olhou pra mim por 5 segundos e riu.
O idiota começou a rir.
Ficou rindo por uns bons momentos, depois deu mais um suspiro, relaxou os ombros e, ainda sorrindo, disse:
- Olha só, esse é o mesmo discurso de anos atrás, quando nossos pais se separaram. - ele disse, erguendo as sobrancelhas – Só que você que me passou o sermão e eu escutei. Quem diria, EU sou o sensato da história.
Revirei os olhos para aquela estupidez. Já ia dizer o que pensava, mas a porta da sala se abriu e Debra e Gavin entraram com uma caixa de pizza nas mãos. Que original.
Comi em silêncio, mas afastando qualquer pensamento que viesse, apenas me distraí com a comida. Os três riam de algo que eu preferi não saber o que era, parecia que contavam alguma coisa que havia acontecido no caminho quando foram comprar a pizza. Evitando o máximo qualquer informação antecipada sobre aquela cidade.
Quando eu já estava prestes a subir para o quarto e tomar um banho, Debra fez o favor de me lembrar que eu tinha que arrumar minha mochila para a aula no dia seguinte. Poderiam ao menos dar um desconto, certo? É coisa demais para a minha cabeça; mudança de cidade e, imediatamente, mudança de escola.
Arrumei, então, uma mochila com apenas dois cadernos e um estojo que. Até duas semanas antes, em Santa Cruz, uniforme era obrigatório onde eu estudava; como ninguém havia mencionado nada disso, separei apenas uma calça jeans, uma camiseta branca, um par de tênis e uma blusa de frio preta e fina para o dia seguinte. Não estava chovendo e, pelo menos isso, era algo bom. Do meu novo quarto, ouvi Matthew conversando com sua namorada, Hayden, por celular. Eles usavam aliança de compromisso e tudo, o que ainda me surpreendia, mesmo que Matt tivesse adotado a política de “amor verdadeiro” há algum tempo.
Não sei bem que horas fui dormir, mas já era bem tarde. Eu olhei pela janela e tudo que pude ver foram as luzes que vinham da baía e, logo em seguida, da reserva/vila depois da floresta de pinheiros. Eu escutava todo o tipo de barulho dali do quarto: folhas balançando, um galho de árvore batendo na minha janela, uma coruja que parecia estar bem no telhado. Some isso à minha insônia. Levantei-me pela última vez para fechar o vidro e as cortinas que também faziam barulho. Deixei que Sunny subisse na minha cama e se ajeitasse perto de meu travesseiro. Eu era contra essa coisa de animais serem tratados como parte da família, mas parecia que Sunny era a única lembrança boa de Santa Cruz que andava comigo.
Consegui afastar os pensamentos ruins que eu tanto evitei durante o dia, mas as lágrimas foram inevitáveis. Chorei por um tempo, mas acabei pegando no sono. Me lembro de ter sonhado com a minha janela aberta e Sunny andando em sua direção, conforme uma sobra grande se aproximava rapidamente.
Quando acordei na manhã seguinte, a janela estava aberta.
Quando eu era pequena, Debra costumava cortar meu cabelo bem curto porque eu vivia puxando-o, prendendo nas portas ou mesmo cortando por minha conta com essas tesouras escolares. Então, desde o jardim de infância até a primeira série, as criancinhas me encaravam e pensavam que eu era um garoto, a não ser pela mochila de Barbie que eu carregava. Ao lado de Matthew, nos confundiam com gêmeos idênticos. Eu odiava que me encarassem daquele jeito, odiava o jeito como erguiam as sobrancelhas e viravam o pescoço para ver direito, como se não acreditassem no que estava ali. Foi um período muito traumático pra mim.
Foi só pisar na Warrenton High School que eu senti todos aqueles olhares novamente. Matt e eu ainda estávamos descendo do carro de Debra (que ela havia gentilmente cedido, já que ela iria para a escola da reserva com Gavin quando ele fosse para o hospital de lá) quando percebi os olhares. Até achei que fosse pelo carro vermelho exagerado de Debra, mas vi que outros alunos tinham carros até mais chamativos. Só quando eu passei a observar as pessoas pelo caminho do estacionamento até a recepção que comecei a entender. Todo mundo ali era muito branco e pálido, a maioria das meninas era bem mais baixa que eu, haviam poucas exceções. Matt e eu éramos mais corados pelo sol da Califórnia, o rosto com um pouco mais de vida. Realmente era incomum alguém daquele jeito, já que a incidência de sol em Warrenton era, o quê, inexistente?
A recepcionista morena sorriu de maneira simpática quando Matt e eu passamos pela porta giratória. Ela já estava com duas pastas nas mãos e nos entregou quando nos aproximamos de sua mesa.
- Matthew e – ela disse, nos entregando as pastas – Aqui tem o horário de aulas de cada um e uma ficha que vocês devem entregar a cada professor. No final do dia, tragam essas fichas assinadas para mim, por favor.
- Certo e... - disse Matt, observando os próprios horários – Por um acaso nós temos a mesma grade de aulas?
- Ah, não. - a recepcionista respondeu, negando com a cabeça – Vocês estão em aulas diferentes por pedido dos seus pais.
- Hum, certo – eu falei, revirando os olhos.
Peguei meu horário e dei uma olhada rápida. A mulher nos encarava, ela parecia legal, mas obviamente queria que nós dois fossemos logo para nossas aulas e a deixássemos em paz.
- Bom, tenham um bom primeiro dia – ela disse, abaixando a cabeça e indicando a saída.
Matt fez sinal para que eu o acompanhasse. A porta pela qual nós saímos deu direto em um corredor pequeno e apinhado de alunos (alguns ainda nos encaravam). Guardei a pasta que recebera na mochila e tentei identificar alguma placa apontando para a sala 16, onde eu teria aula de Química em Laboratório.
- É bem a cara deles – disse Matt, interrompendo a atenção que eu tinha no corredor – Colocar nós dois em salas separadas, só para nenhum depender do outro.
- Realmente... - eu respondi, ainda procurando alguma placa.
Naquele momento, um sinal tocou e nós dois nos entreolhamos.
- Bom... boa sorte. - ele desejou, com um sorriso amarelo.
- É, pra você também – eu agradeci, de cara fechada.
Ele deu meia volta e entrou numa sala no fim do corredor. Olhei à minha volta, aflita por ajuda ou alguma orientação. Quando estava no segundo degrau da escada perto da recepção, ouvi dois garotos comentando um com o outro:
- Ei, quero matar Química hoje. – dizia um loiro muito alto – Vamos?
- Não dá. - respondeu o colega – Se eu perder mais aulas, o Mason me faz repetir o ano.
- Você quem sabe... - o loiro disse, virando de costas e indo na minha direção e subindo os degraus. Ele parou o olhar no meu rosto por dois segundos e disse bem baixo – E aí? - e continuou subindo.
Olhei de volta para o outro garoto, que já estava descendo o outro lance de escadas. Fui atrás dele, esperando que ele realmente fosse à aula de Química. Ele virou à direita em um outro corredor e abriu a porta de uma sala branca. Antes que a porta se fechasse, a empurrei e entrei, meus olhos procurando pelo professor.
Ele era muito magro e usava um jaleco branco, como se fosse um médico. Não falou nada quando me viu, apenas estendeu a mão e eu lhe entreguei a ficha. Ele assinou e me indicou com um gesto uma bancada que estava livre. Sentei e observei a sala inquieta, praticamente ninguém estava sentado, todos conversavam em pequenos grupos. Larguei minha mochila sobre a tampa de mármore e comecei a olhar distraidamente a paisagem pela janela de vidro ao meu lado.
- Conheço você?
Me virei para a voz fina ao meu lado que me interrompera dos pensamentos. Era uma garota de estatura mediana, cabelos castanhos quase loiros, bem compridos, olhos verdes que pareciam transbordar felicidade. Ela largara uma mochila cor de rosa na bancada, assim como eu, então supus que eu seria sua parceira de laboratório. Enquanto eu a analisava, ela me olhava ansiosamente, esperando uma resposta.
- Ah, provavelmente não. - eu finalmente respondi, me arrumando na cadeira e ficando de frente para ela – Eu me mudei, hã, ontem.
- Bom, meu nome é Ellie Hastings. - ela estendeu a mão e eu a segurei por dois segundos – Se precisar de qualquer coisa por aqui, me chame.
- Obrigada. - eu respondi, meio sem jeito – Ah, meu nome é ... , me chame de .
- Ok, . – ela sorriu mais uma vez e se virou pra frente – Então, de onde você é?
Quando eu ia responder, o professor disse o meu nome na chamada, eu levantei a mão timidamente (enquanto toda a sala se virava para me ver), enquanto ele escrevia alguma coisa na folha da chamada. Havia uma bancada na frente de onde eu me sentava, era ocupada por uma menina ruiva muito bonita e um garoto, cujas únicas características que eu conseguia ver eram o cabelo castanho escuro cortado bem curto, talvez meio centímetro, e os traços do rosto, muito retos e duros, ele parecia algum soldado, refugiado ou algo assim. E, quando o professor chamou meu nome, ele se virou pra trás. O “soldado” girou metade do corpo na cadeira e me encarou por um momento. Ele tinha olhos verdes como os de Ellie, só que mais escuros e nem um pouco vivos e atentos. Quando meu olhar encontrou o seu, um leve arrepio subiu pelo meu braço; aquele cara praticamente exalava medo. Mas era bonito. E muito.
- Santa Cruz, na Califórnia... - eu respondi vagamente, quando o “soldado” se virou pra frente. Voltei a minha atenção para Ellie, que ainda me olhava com empolgação. - É nosso primeiro dia aqui, meu e do meu irmão.
- Ah, você tem um irmão? - ela perguntou, com um tom um pouco mais animado na voz
- Sim, irmão gêmeo, Matthew.
- Legal, legal – ela disse, mas não como se estivesse desinteressada, ela tinha olhos sonhadores.
Até que foi fácil manter um pequeno diálogo com Ellie, ela não era desinteressante, chata ou qualquer coisa assim; era a primeira pessoa que fora simpática comigo por ali, ela até se oferecera para me mostrar a escola, assim eu não ficaria perdida. Ela falava muito, na verdade, era dessas pessoas que se aprofunda num determinado assunto até que ele acabe. Isso era bom, me mantinha distraída.
- Daniel Handler? - chamou o professor, ainda verificando a lista de chamadas.
O “soldado” ergueu uma mão e deixou ali parada no ar, uniu a outra, entrelaçando-as, e espreguiçou os braços largos e muito brancos, cobertos por uma camisa azul escura.
- Elaine Hastings? - ele chamou mais uma vez, e Ellie, ao meu lado, levantou a mão rapidamente.
Daniel Handler. Daniel Handler. Daniel Handler. Era um nome muito bonito, e combinava com ele. Fiquei repetindo seu nome mentalmente várias vezes, até que ele se virou para a nossa bancada e nos entregou um bloco de folhas que deveríamos passar para a bancada de trás. Pisquei os olhos duas vezes, e ele ainda me encarava; não sorria, como eu achei que qualquer outra pessoa dali faria se eu pegasse me encarando. Pelo contrário, ele ainda tinha a cara fechada e sombria, era quase dor, mas bem mais parecida com raiva ou algo do tipo. É assim que sociopatas surgem, pensei comigo mesma, e, a não ser que eu queira acabar como ele, melhor seguir o conselho de Matthew e ver as coisas sob uma nova perspectiva.
A aula foi basicamente o que eu havia aprendido no mês anterior em San Diego, mas me agarrei à oportunidade de prestar atenção no assunto e ainda me dividi em escutar Ellie falando sobre a escola sem parar. Também não pude evitar dar algumas olhadas para o “soldado” e sua colega; ela parecia extremamente agitada e nervosa, colocando o cabelo atrás das orelhas e esbarrando em vários vidros, enquanto ele fazia sua parte calmamente e arrumava a bagunça que sobrava, trocando apenas algumas palavras com a menina.
Achei que fosse demorar muito mais, mas logo o sinal do fim da aula tocou. Ajudei Ellie a arrumar a bancada, peguei minha mochila e fui na direção da porta. Consultei meu horário novamente, teria dois horários de Cálculo, então esperei Ellie em frente ao laboratório para que ela pudesse me indicar o caminho.
- Cálculo com Dennis. – ela disse, analisando a folhinha onde estavam anotados os meus horários – Bom, eu tenho Inglês agora... Olha, sua sala é no terceiro andar, vire à direita assim que subir as escadas e é bem ali, sala 31. - ela terminou de explicar, apontando com gestos - Eu te encontro, vejamos, na escada do segundo andar, pode ser?
- Claro, sem problemas. Obrigada, Ellie. - eu respondi, dando um sorriso leve.
- Até mais tarde. - ela sorriu de volta, apertando os olhos verdes.
O professor entrou, este tinha cara muito mais simpática que o de Química. Ele correu os olhos pela sala, ainda um pouco vazia, e ergueu as sobrancelhas quando me viu. Andou até mim com uma expressão determinada e parou ao meu lado:- ? ? - ele perguntou, basicamente convicto de quem eu era.
- É, sim. - respondi, um pouco confusa. Peguei uma das folhas que estavam na pasta e entreguei a ele.
Ele leu por um momento, assinou e me entregou de volta.
- Acabei de dar aula para o seu irmão, Matthew, certo? - ele comentou, com a voz simpática, e eu assenti, em silêncio. - Conheço Gavin desde criança.
- Ah... - eu disse, sem muita certeza do que teria de responder a esse comentário.
Acho que ele deve ter entendido o meu desconforto; ele deu meia volta em direção à mesa, cumprimentando alguns alunos e, lá na frente, disse um “seja bem vinda” acrescentando um sorriso. Também sorri, só que de nervosismo.
Assim que a turma toda havia entrado, ele começou explicar um conteúdo que eu também já vira no mês anterior em San Diego. Antes que fosse tomada por pensamentos ruins, comecei a anotar numa folha tudo que ele dizia, de vez em quando olhando para os lados só pra ter certeza que não havia ninguém me encarando de novo.
A garota sentada do meu lado realmente me era familiar, mas não porque eu já tinha visto, e sim pelos traços; ela era branca de feições finas, de olhos verdes bem escuros e arredondados, cobertos por cílios grandes, o cabelo castanho escuro não era muito grande, batia abaixo dos ombros. Foi só ela virar um pouco de lado e eu já percebi quem ela me lembrava. E ele apareceu por ali.
Era o “soldado”. Ele andou até a carteira vaga na frente da menina ao meu lado e se sentou ali, largando a mochila no chão com um barulho.
- O que foi dessa vez? - perguntou o Sr. Dennis, com um sorriso paciente.
- Eu... estava com fome, sabe como é. - ele respondeu, erguendo as sobrancelhas e sorrindo ironicamente, fazendo a turma toda rir, exceto a garota ao lado.
Logo, o Sr. Dennis ignorou o comentário e se virou para a mesa, pegou uma folha e começou a fazer a chamada oralmente. De novo não, pensei, só de imaginar a turma toda olhando pra mim quando ele chamasse meu nome.
Mas não. Ele só deu uma breve olhada na minha direção e fez alguma anotação na lista; sorri por dentro, agradecendo por ter, pelo menos, um professor legal por ali. Abaixei um pouco a cabeça para escrever na folha do caderno, quando percebi alguém olhando novamente pra mim. Pela visão periférica, vi que era a, assim eu supunha, irmã do “soldado”, quer dizer, Daniel Handler. Ao contrário da maioria dos outros alunos, ela não me olhava daquele jeito grosseiro como se estivesse se perguntando de onde diabos eu tinha saído. Não. Ela me olhava até com um princípio de sorriso nos lábios, um pouco debochado, mas ainda era um sorriso. Quando me forcei a levantar a cabeça e olhar para ela diretamente, ela finalmente sorriu, não com a mesma intensidade imensa que Ellie sorrira pra mim, e ela disse um Oi muito baixo que só pude identificar porque li seus lábios.
- Lisa Handler? - chamou Sr. Dennis antes que eu pudesse esboçar um sorriso de volta para a garota.
E, como eu havia suspeitado, ela levantou a mão rapidamente. Era mesmo irmã dele. Talvez fossem até gêmeos, como eu e Matthew – naquele momento qualquer coisa que eu tivesse em comum com Daniel Handler me interessava, e eu ainda nem havia trocado nada mais que um olhar assustado com ele.
Lisa se virou pra mim mais uma vez e ergueu as sobrancelhas, como se me incentivasse a me apresentar também. Sua carteira estava bem próxima à minha, então eu me inclinei na sua direção, tirando o estúpido sorriso do rosto, e disse:
- Eu sou ... .
- ... - ela repetiu, como se estivesse tentando reconhecer o meu nome – Por que eu nunca te vi por aqui?
- Ah, é que eu, hum, me mudei pra cá ontem. - expliquei, um pouco perdida – Eu sou de San Diego.
Lisa deu mais um daqueles sorrisos e me observou um pouco, de olhos um pouco fechados. Com ela fora diferente, eu não me senti intimidada ou incomodada, pelo contrário, eu a esperei pacientemente até que ela se ajeitou na cadeira e disse, dessa vez com um tom mais simpático:
- Bom, então seja bem vinda, eu realmente espero que tenha sorte aqui; aguentar esse lugar mórbido e nublado sem enlouquecer ou virar um completo alienado interiorano não é pra qualquer um. - e ainda acrescentou outro sorrisinho debochado.
- Obrigada. - respondi, tentando me fazer de segura.
Ela se virou pra frente, encostou duas vezes no ombro do, assim era o que parecia irmão, e esse se virou pra trás, olhando somente para ela com cara de impaciência e desinteresse.
- Que é?
- Essa é . - disse Lisa com uma voz doce até demais, apontando pra mim e me dando um meio sorriso – Se mudou pra cá ontem, veio de San Diego.
Daniel finalmente olhou pra mim. Ele tinha erguido as sobrancelhas, piscado duas vezes na minha direção e estendera a mão esquerda, dando o exato sorriso de Lisa.
- Ah, oi . - ele me cumprimentou.
Foi ao encostar a minha mão na dele que eu meio que voltei à realidade; de alguma forma absurda e completamente incoerente, eu estava sonhando e criando expectativas em relação a ele desde que a aula fora interrompida por sua chegada. O toque rápido e firme que eu sentira me fez perceber ele com outros olhos – não olhos de gente impressionada e intimidada por beleza excepcional misturada com o medo que emanava. Soltei sua mão rapidamente e cruzei os braços no colo e me sentindo como uma garotinha estúpida e sonhadora, olhando pra frente para me distrair, os dois tinham feito a mesma coisa.
Passei os horários seguintes ainda me culpando por ser tão imbecil. Mas que merda, eu não era assim, simplesmente não era. Eu rolava os olhos a todo momento, prometendo a mim mesma que seria do mesmo jeito que eu havia me tornado desde a notícia da mudança, e nada de delírios e coisas imbecis.
Depois de duas horas que mais pareceram quatro, o sinal finalmente tocou e eu já estava juntando o meu material rapidamente, louca pra sair dali, encontrar Ellie na porta e ser guiada pela escola e ainda escutar um falatório interminável que ocuparia minha mente pelo resto dos horários.
- , pra onde você vai? - ouvi uma voz atrás de mim, quando eu estava quase na porta.
Me virei e vi Lisa andando na minha direção, carregando os livros nas mãos. Ali, quase do meu lado, vi o quanto ela era pequena e magra, de movimentos rápidos e precisos que me lembraram Daniel na aula de laboratório.
- Tem aula de que agora? - ela perguntou, já que eu não havia respondido a pergunta anterior.
- Espanhol, com... - eu li no meu horário.
- É, eu sei, com a mulher baixa que não abandonou o sotaque. - ela me interrompeu, me segurando pelo braço e me levando até o corredor – Também tenho Espanhol agora, vem logo.
Entramos no corredor apinhado de estudantes, procurei a cabeça loura de Ellie por ali, mas ela me achou primeiro.
- Ué, não me esperou? - ela disse, aparecendo na minha frente do nada. Olhou para Lisa do meu lado e sorriu. - Oi Lisa, já conheceu a ?
- Bom dia, Ellie. - ela cumprimentou de volta, sorrindo um pouco também. - Na verdade, eu ia até levá-la para a aula de Espanhol agora.
- Você também tem? - perguntei a Ellie, que afirmou com a cabeça.
Já estávamos no corredor do segundo andar, ainda meio lotado de pessoas. Ali no meio de tantos rostos desconhecidos, reconheci Matthew e fui até ele, com Ellie e Lisa atrás de mim.
- Ei! - ele disse, se virando pra mim e sorrindo – Então, tá tudo bem?
- Ah, acho que sim... e você?
- Sei lá, normal. Vou pra Educação Física agora e, olha, acho que vou fazer o teste pro futebol. - ele disse, sorrindo e destacando a pinta de nascença acima do lábio que nós dois tínhamos.
- Meu irmão é o capitão. - disse Lisa, atrás de mim, dando um passo à frente. - Fale com ele, Daniel Handler.
Matthew olhou para as duas atentamente, mas demorando o olhar em Lisa. Ela estendeu a mão e se apresentou antes que eu pudesse falar alguma coisa:
- Lisa Handler, essa é Ellie Hastings, nós já acolhemos sua irmã. - ela riu, debochada mais uma vez, como se eu fosse alguma criança desamparada.
- Hum, claro. - ele disse, assim como eu, não gostando muito dessa coisa de acolher, mas depois voltou a sorrir. - Meu nome é Matthew, prazer em conhecê-las, mas tenho que correr e procurar o seu irmão. - ele apontou para Lisa, já foi apressado pelo corredor e acenou – Até o almoço!
Matthew saiu praticamente correndo dali e desceu as escadas, sumindo de vista. Olhei para o lado e só vi Ellie, Lisa já estava a alguns passos à frente, virada para nós duas e com cara de impaciência. Nos apressamos para alcancá-la, que andava incrivelmente rápido.
- , seu irmão é muito bonito. - disse Ellie, olhando pra mim, enquanto nós seguíamos pelo corredor.
- É mesmo. - concordou Lisa, à nossa frente, em voz alta. - Parece que a família tem um sangue muito bom.
Isso foi um elogio?, pensei. Continuamos a andar, logo encontrando a sala certa. Repeti o mesmo processo cansativo de entregar a ficha para o professor assinar e receber olhares curiosos durante a chamada oral. Mais duas horas que pareciam não passar. Enquanto a professora, que realmente ainda conservava um forte sotaque, falava sem parar, me ocupei de ficar escutando Lisa, que havia se sentado atrás de mim, me dizendo sobre a escola, assim como Ellie. Aliás, fiquei me perguntando como duas pessoas tão diferentes como elas poderiam ser amigas – ou pelo menos era o que elas pareciam ser.
Bateu, então, o sinal para o almoço. Lisa, mais uma vez, nos guiou até o refeitório e, da forma mais autoritária e espontânea, nos apontou uma mesa próxima ao centro do espaço e lá nos sentamos.
Lisa carregava uma pilha de livros, todos de matérias exatas e avançadas. O que novamente me levou a pensar que ela e Daniel eram gêmeos, já que eles estavam na mesma turma. Foi só pensar nesse nome e logo ele estava por ali e, para a minha surpresa, acompanhado de Matthew e outros caras igualmente altos, provavelmente outros jogadores.
- Não se anime muito, não. - disse Lisa, com o rosto apoiado em uma das mãos e os cachos compridos balançando; ela percebera pra quem eu estava olhando. - Sem querer ofender, você é bonita e é legal, mas você não faz muito o tipo dele.
- O quê? - perguntei, arregalando os olhos para ela – Quem disse que eu...
- Ok, ok, está certo. - ela riu, revirando os olhos – Tanto faz.
Ao lado de Lisa, Ellie sorriu timidamente, como se tentasse me consolar por alguma coisa. Passei as mãos pelo rosto e me levantei da cadeira, indo em direção da cantina para pegar alguma coisa pra comer. Ellie me alcançou, me chamando pelo caminho.
- Não liga pra Lisa, ela é assim mesmo. - ela me disse, soltando uma risada mínima no fim.
- Tudo bem... mas eu não estava olhando pro irmão dela. - frisei, como se fosse adiantar alguma coisa, é claro que eu estava olhando pra ele – E eu nem sequer conheço ele, troquei uma palavra ou outra, e também...
- Já entendi! - ela riu mais ainda, o que claramente significava que ela não acreditava nem um pouco em mim. - Fica tranquila.
Suspirei fundo e olhei a mesa; em San Diego só havia junk food nas cantinas das escolas, mas não em Warrenton. Havia uma infinidade de copos térmicos e cobertos que tinham café ou chocolate, frutas e qualquer outra coisa que significasse saúde ou então carboidratos para estimular o calor corporal.
- Vocês se preparam mesmo para o inverno aqui. - comentei, pegando somente um copo de café.
- Deve começar a nevar semana que vem, e o frio daqui não é brincadeira mesmo. - Ellie respondeu, andando na direção da mesa onde estava Lisa.
Nos sentamos mais uma vez. Lisa não dera sinal algum de que comeria alguma coisa, apenas lia seus livros de cálculo extremamente complicados.
- Lisa, você e seu irmão são gêmeos? - perguntei, fazendo com que minha pergunta não interessasse apenas a Daniel, mas a ela também.
- Não. - ela respondeu, erguendo as sobrancelhas pra mim. - Por que... ah sim, é porque nós estamos nas mesmas aulas do mesmo ano, certo?
- É. - confirmei – Quantos anos você tem?
Lisa se ajeitou na cadeira, largou o livro em seu colo e ficou passando a mão nos cabelos de novo.
- Tenho 15 anos. - ela respondeu, distraída e com o olhar vagando pelas outras mesas – Aos 9 anos eu sofri um acidente de carro com minha mãe, ela morreu e eu fiquei 6 meses em coma, isso me atrasou um ano. - ela acrescentou, e eu me arrependi de ter perguntado.
“Depois, aos 14 anos, meu pai morreu de ataque cardíaco, e, para que eu não perdesse mais nada, comecei a estudar em período integral, fiz dois anos em menos de um e acabei no mesmo ano do meu irmão. Daniel e eu nos mudamos pra cá no ano passado pra morar com nossos padrinhos. Tudo bem você achar que Warrenton é o pior lugar do mundo, mas isso já vai passar. Logo a neve de 20 centímetros na primeira semana do inverno acaba camuflando você. Sei bem o que é ser nova no inferno congelado.”
Ela terminou de falar e acrescentou um meio sorriso. Ellie nem prestava atenção, estava concentrada em sua salada de frutas, ela já deveria saber essa história de cor. Ouvir Lisa contando o motivo de morar em Warrenton fez parecer as minhas reclamações mais estúpidas do que já eram. Fiquei literalmente sem palavras, o que fez Lisa rir um pouco alto.
- Tudo bem! - ela dizia, ainda rindo. - Não precisa ficar assim, prefiro que me vejam de outro modo, não que tenham pena de mim.
- Prefere que te vejam de que modo, então? - disse Ellie, ainda olhando para a própria comida.
- Você sequer sabe o que é ser temida por alguém? - indagou Ellie, agora olhando para Lisa. - Quer dizer, quem teria medo de você? E por que?
Lisa olhou bem para Ellie durante alguns segundos, piscando com descrença; fiquei estática, ainda absorvendo o que Lisa contara sobre seus pais e tentando entender aquele conflito que acabara de se formar. Ellie parou de mastigar, levantou os olhos pra Lisa, inocente e perguntou:
- O que foi?
Lisa revirou os olhos e voltou a dar atenção ao livro de cálculo. Ellie olhou pra mim como quem pergunta se entendi alguma coisa, neguei. Ela deu ombros e voltou a comer, enquanto eu fiquei atônita ainda pela história de Lisa. Eu quase senti que ela me entendia de verdade, ou vice-versa, mas o modo como ela encarava tudo era muito diferente. Eu me parecia muito com ela antes da mudança; se o meu "antigo eu" tivesse se conservado da Califórnia até Oregon, eu nem passaria pelas fases inconformação/mudez/sarcasmo sem limite/drama/negatividade e seria exatamente como Lisa era naquele momento: indiferente.
E foi assim basicamente pelo resto da tarde: Lisa demonstrando indiretamente o quanto ela era forte e independente e, em seguida, Ellie sorrindo pra mim e dizendo para eu não me importar muito com o que ela dizia. A última aula da tarde era de Inglês e nenhuma das duas era da minha sala, o que significava um pouco de paz por cinquenta minutos antes de ir pra casa.
Passei pela porta e me sentei numa das cadeiras da frente, ao lado da janela, assim ninguém se viraria para mim e me encararia na hora da chamada. Aos poucos, os outros alunos começaram a chegar e a sala logo ficou apinhada de conversas e risadas altas. Fiquei absorta nas minhas próprias coisas e nem percebi quando a professora havia entrado e já estava na frente da sala e propondo um grupo de discussões sobre os livros lidos no bimestre:
- Eu já separei os grupos por números, serão cinco pessoas em cada e vocês tem que me entregar um trabalho de, no mínimo, 500 palavras sobre o respectivo livro. - ela dizia, enquanto entregava a cada um da sala um papel com um número escrito, o meu grupo era o 3. - Grupos 1 e 2 nos fundos da sala, grupo 3 no centro, 4 e cinco aqui na frente. - e ia apontando os espaços que deveriam ser ocupados.
Peguei meu fichário transparente e me sentei numa das cadeiras no pequeno círculo no centro da sala. Haviam dois garotos ali, ambos vestidos com o casaco dos Gators de Warrenton, o time local, e uma menina de feições orientais, usava um uniforme de líder de torcida. Perfeito. Eu estava no meio de amigos íntimos, unidos pelo futebol; se isso fosse em St Cruz, eles provavelmente me olhariam com a mesma descrença que Lisa olhou para Ellie no almoço e diriam algo como tipo assim, dá pra você ir embora? e tomariam logo um F porque nenhum ali leria sequer a contracapa do livro.
Mas não. Os garotos se chamavam Stan e Neil, e a garota era Maiko. A Sra.MacMillan passou no nosso círculo e entregou um outro papel com o nome do livro sobre o qual deveríamos fazer a redação.
- - Cyrano de Bergerac. - leu Stan, levantando os olhos em seguida pra mim. - Você já leu?
- Já, já li sim. - respondi, porque eu lera por minha conta, e não pela escola.
- O grupo de vocês está completo? - perguntou a professora, olhando para cada um de nós, verificando.
- Tô indo, Alicia.- disse uma voz, do fundo da sala.
Ah, ah não.
Havia uma carteira vaga do meu lado, e foi lá mesmo que ele se sentou. Meu terceiro encontro com Daniel Handler naquele dia. Estava cada vez mais perto.
- Cyrano. - ele disse, tirando o papel das mãos de Stan e entregando-lhe de volta. - Um dos meus favoritos.
- Que ótimo. - disse Neil, tirando uma folha e uma caneta da mochila. - Vamos precisar do Handler-gênio para escrever essa redação entre os treinos de amanhã e o jogo de domingo.
- Não dá pra nenhum de nós quatro. - disse Stan, apontando para ele mesmo, Neil, Daniel e Maiko. - É temporada de jogos... e, claro, de torcidas... Menina nova, - ele se virou pra mim. - Faz essa pra gente e te damos algo em troca.
Mas era muito típico. Em St Cruz isso vivia acontecendo: os jocks da escola tentavam se encostar em mim nas provas e trabalhos mas eu nunca deixava; dois meses antes eu diria que era problema deles, que eu faria o meu próprio trabalho e ficaria com o crédito. Mas não ali, na frente do Daniel Handler. Que merda.
- Aah, por mim tudo bem. - respondi, dando ombros. - Eu me viro, eu gosto desse livro e tudo mais, não vai ser tão ruim.
- Não acho isso justo. - disse Daniel, e virando pra mim. - Eu realmente odeio pedir favores pras pessoas, mas isso realmente não dá pra evitar. Seguinte: faça o que conseguir e, antes do almoço, nós te encontramos na biblioteca e repassamos o trabalho. Pode ser, ?
Caralho, ele lembrou meu nome!
- Claro, claro. - respondi, sorrindo pra ele e pros outros. - Só preciso que vocês me falem como querem o trabalho, ou como ela - apontei para a Sra. MacMillan - costuma pedir.
- Fica tranquila. - disse Maiko. - Só me de seu telefone e eu te falo hoje à noite.
- Ok... - ela me estendeu o celular e eu digitei o meu número. - Pronto.
Daí todos sorriram pra mim e iniciaram um assunto qualquer, fingindo discutir sobre o tema. Eu só cruzei os braços e fiquei encarando as linhas de madeira da mesa, rezando para que aquela última meia hora do dia passasse logo - e, também, para que eu tivesse algo de inteligente e nada desesperado para dizer a Daniel.
- Então... Cyrano de Bergerac. - ele disse, me assustando por praticamente ler os meus pensamentos. - Alguém que aprecia os clássicos pós-Shakespeare.
- Não dou muita bola para Shakespeare. - eu respondi, torcendo um pouco as mãos de nervosismo. - Eu prefiro algo mais... contemporâneo. Poe, Mark Twain, Nabokov...
- Aposto que o primeiro que leu foi Lolita. - ele riu, me interrompendo. - Ótimo livro, filmes nem tanto.
Olhei bem pra ele, quase sem acreditar que estava mesmo tendo aquela conversa. Eu era cinéfila desde criança e ele estava ali, prestes a iniciar uma discussão interessante sobre literatura e cinema; era a oportunidade perfeita para me soltar e exibir o conhecimento que eu acumulara em anos de filmes clássicos e premiados. Primeiro ponto para Warrenton.
- A versão dos anos 60 pode ser ruim... - comecei usando o argumento que todos sempre usam. - Mas a de 1997 é impecável, sem nenhum erro de elenco, roteiro, produção e direção.
- Não acho a direção tão boa assim.
- CARA, É O KUBRICK! - eu me exaltei um pouco, fazendo ele rir. - Dois filmes para você: Laranja Mecânica e Uma Odisséia no Espaço, com esses dois títulos o Stanley Kubrick não precisava de mais nada.
- Melhor que David Fincher ele não é. - Daniel afirmou, estendendo ainda mais a conversa. - Clube da Luta, Seven... ele sim é O diretor.
Pisquei várias vezes, completamente perturbada. Eu nunca na vida tivera uma conversa sobre cinema com alguém, uma boa conversa; talvez com Hayden, mas ela era do tipo que não falava da "nova geração" e se mantinha aos clássicos. E filmes eram o meu ponto fraco, diretores, roteiros, produções... Aquela meia hora pareceu muito conveniente.
- Tarantino. - eu declarei, triunfante. - Se tratando da nova geração, ninguém ganha do Tarantino. Pode falar que Clube da Luta é um filme louco, que Donnie Darko te assombrou, Requiem Para um Sonho te deixou com insônia... Mas não há filme mais mindfuck que Cães de Aluguel ou Pulp Fiction, admita.
Agora foi a vez dele ficar calado. Enquanto ele sorria com os cantinhos dos lábios e parecia pensar em algo para dizer, senti meu rosto muito quente, o sangue subindo até a testa. Eu provavelmente estava rosa de tanto me exaltar e falar um tom mais alto que o normal, mas haviam motivos plausíveis: Daniel Handler estava conversando comigo e Daniel Handler estava conversando comigo sobre cinema.
- Quer saber, Cães de Aluguel é meu filme favorito. - ele finalmente admitiu, com a voz baixa. - Mas... é estranho que você, uma garota, goste do Tarantino. Sabe como é, é violência e sangue demais.
- Mas eu gosto de filmes assim, eu gosto de sangue. - eu sorri, como se dissesse algo muito natural.
Os olhos de Daniel brilharam como dois cristais verdes no sol, um sorriso mínimo e irritantemente debochado aparecia nos lábios dele aos poucos.
- Ah, gosta?
- Sim... - repeti, bem devagar. - Claro que em Kill Bill é um exagero. Quer dizer, quantos litros o corpo humano tem? E quantos litros saíram só daquela mulher cujo braço é decepado pela Hanzo da Noiva?
- É, é muito sangue mesmo. - ele concordou, balançando a cabeça. - Sei o que quer dizer.
E a meia hora já tinha passado. O último sinal bateu e eu logo recolhi os meus materiais e me levantei da carteira, sem saber exatamente o que fazer. Não sabia se ia embora e deixava Daniel seguir seu caminho em paz ou se eu o esperava e continuávamos a conversar sobre cinema. A primeira opção me faria parecer antissocial, como se eu já não tivesse me transformado em uma, àquela altura. A segunda me deixaria como uma desesperada por um mínimo da atenção do atleta da escola, e não era exatamente assim que eu queria parecer na frente dele. Aliás, eu não queria nem...
- Vamos logo. - disse Daniel, me interrompendo da quase disputa mental que eu travava comigo mesma. - Minha irmã já deve estar te procurando.
- Ah... tudo bem. - respondi, da melhor maneira que pude.
O acompanhei pelo corredor cheio de gente, procurando algum sinal de Lisa, Ellie ou Matt. Daniel olhou pra mim e segurou meu olhar por um tempo, de forma um pouco curiosa.
- É incrível, menos de um dia e você já consegue andar com a minha irmã. - ele disse, voltando os olhos para o corredor.
- Como assim?
- Bom, a Lisa é meio difícil de se lidar. - ele começou, pensativo. - Ela não conversa com todo mundo, anda bem fechada desde que nos mudamos pra cá.
Liguei meu estado de alerta para o que ele dissera; Lisa era... fechada? Eu era fechada, Lisa era uma intimidadora super gênia de 15 anos de idade não aparentes.
Pensei em comentar isso em voz alta, mas já estávamos no estacionamento e eu vira Matthew parado ao lado do carro de Debra, com fones de ouvido e cara de impaciente. Me virei para Daniel e acenei brevemente e ele sorriu de volta.
Sorriu pra mim.
Se isso tivesse acontecido logo na primeira aula, eu já teria acumulado todos os problemas cardíacos possíveis.
Meu deus, como eu estava ridícula.
Corri até o carro e entrei no banco do passageiro, nem mesmo perguntando o motivo de toda aquela impaciência de Matthew. Ele só deu a partida e fez o caminho de casa, chegando lá em quinze minutos.
Até que o primeiro dia não tinha sido tão ruim. Havia algo que valia a pena em Warrenton, afinal.
Me reservei o direito mais que merecido de acordar tarde no dia seguinte; era novidade demais para um dia só, somados aos comportamentos mais opostos e incomuns que eu já vira na vida: a Ellie sorridente e fEliz demais, a Lisa sincera, direta e debochada como se sempre soubesse de algo que ninguém mais sabe e, claro, Daniel que me fez entrar num quase coma emocional. E as perguntas intermináveis de Debra e Gavin sobre as aulas, o entra e sai insuportável das companhias de telefone, TV e internet, Sunny trazendo pardais mortos para dentro de casa e Matthew conversando melosamente com Hayden no celular; toda essa loucura domiciliar me consumiu até às oito da noite, quando eu desisti de comer alguma coisa qualquer que Debra havia trazido de um restaurante e fui dormir.
Assim que eu entrei no meu quarto já senti o vento gelado vindo da janela aberta. Andei até ela e, antes de fechar, dei uma olhada na vista; as luzes de Natal já começavam a aparecer pela cidade e principalmente no píer e na baía, mesmo que fosse apenas a primeira semana de dezembro. A ponte que levava a Astoria também já estava iluminada e, aparentemente, o fluxo de carros e pessoas por ali era bem maior que em Warrenton.Fechei a janela quando outro vento congelante soprou em meu rosto e caminhei até a cama.Eu estava tão esgotada que não conseguiria nem mesmo chorar, como havia feito na noite anterior, então só me deitei e praticamente apaguei assim que meu rosto tocou o travesseiro. Sem sonhos, sem sombras, sem janelas abertas por gatos extremamente inteligentes.
Não deu. Acabei acordando cedo o suficiente para ver a chuva da madrugada se esgotando lentamente, mas deixando o ar carregado de umidade. Andei até a janela e vi Sunny do lado de fora da casa, uma mancha laranja e preta imóvel sobre as folhas escuras e molhadas, à espreita de algum esquilo ou outro pardal. Desci as escadas tomando o maior cuidado do mundo, andei até a porta dos fundos e fui até onde ela estava, tirando-a de lá. Assim que pus os pés de volta na casa, vi Gavin entrando pela porta esfregando os olhos.
- Bom dia. - ele disse, fazendo sinal para que eu tirasse Sunny do meu colo e a colocasse no chão, ele não gostava muito de gatos. - Acordou cedo, é sábado.
- Eu sei. - respondi, acompanhando-o até a cozinha mais uma vez. - Mas fui dormir cedo, afinal.
Gavin colocou café em duas xícaras e me entregou uma, sentando-se ao meu lado no balcão branco. Enquanto bebia, ele tinha a testa enrugada, como se estivesse pensando num assunto específico.
- Mas que bom que acordou cedo. – ele finalmente disse, se levantando e pegando mais café. - Sua mãe quer arrumar a casa inteira, e você sabe o que limpeza significa para ela, antes de sairmos... vai levar a tarde inteira.
- Ir pra onde?
- Talapus, para a casa de Billy, aquela reserva passando pelo rio Columbia - ele respondeu. Ah, que merda. – Pai de Jacob, se lembra? Eu falei deles no carro!
- Eu sei. - respondi, afundando minha cabeça nos braços cruzados na pedra branca. - Mas por que? Você não pode aparecer lá a qualquer hora, a qualquer dia da semana?
- Na verdade, não. - ele disse, distraído. - Eu tenho muita coisa pra fazer no hospital, não dá para visitar todos os meus antigos amigos em um dia só. Sabia disso, ? Também tenho amigos, veja só! - ele fingiu a voz, tentando se parecer comigo durante meus protestos.
Essa era uma das coisas que eu não gostava nem um pouco nos meus pais: resquícios da juventude perdida. Conversas que envolviam alertas sobre doenças sexualmente transmissíveis, drogas em festas, gravidez – principalmente gravidez – eram frequentes, já que eles mesmos não tinham tomado os cuidados devidos 16 anos antes. E, quase sempre sem querer, eles faziam comentários inacreditavelmente inconvenientes, Matthew e eu passamos todo o tipo de vergonha em festas de família, reuniões de amigos e lugares públicos. Não havia timidez alguma naquela família, qualquer assunto era bem vindo, por mais escroto, bizarro, nojento, vergonhoso, incomum que fosse.
- Muito engraçado, pai. - eu ri um pouco. - Mas... precisamos ir mesmo?
- Mas é óbvio. Billy já me ligou ontem para confirmar, e aposto que você e o filho dele vão se dar bem, têm quase a mesma idade. Olha daria até pra...
- Nem vem! - eu interrompi, antes que meu pai sugerisse qualquer coisa. - Gavin , se eu ouvir qualquer comentário sobre isso eu juro que grito com você e saio dali correndo como se fosse uma criança e te mato de vergonha na frente dos amigos. - como você já fez comigo inúmeras vezes, acrescentei mentalmente.
- Feito. - ele sorriu, se levantando em seguida e indo até a sala, se sentando no sofá e ligando a TV em um noticiário. - Nós vamos assim que anoitecer, esteja pronta logo ou sua mãe vai ficar histérica.
Fiz sinal afirmativo para ele, e depois subi as escadas até o meu quarto, tomando o maior cuidado para não fazer mais barulho que o necessário e acabar acordando Debra. Sunny veio atrás de mim, subindo na cama antes mesmo que eu entrasse no quarto. Fiz o mesmo e acabei dormindo de novo.
- Mãe, qual é a lógica de varrer as folhas do jardim se, logo em seguida, outras vão cair? - Matthew dizia bem lentamente, como se Debra tivesse algum problema de confusão mental.
- Mas você vai varrer as folhas quantas vezes eu mandar. - ela respondeu, enquanto tirava uma pilha de pratos do lava-louças e me entregava para secar. - Se for preciso, passe o dia pegando folha por folha.
À medida que Debra dava tarefas completamente desnecessárias e apenas consideráveis para alguém que tem obsessão por limpeza como ela própria, Matthew ficava mais e mais vermelho de raiva; passavam de quatro da tarde e estávamos naquela de arrumar a casa desde dez da manhã. Debra queria cada canto daquela casa reluzindo e, se precisássemos usar escovas de dentes para limpar o chão para que ele brilhasse, era isso que teríamos que fazer. Gavin fingia arrumar a garagem, na verdade estava por lá com uma TV portátil assistindo a final de futebol americano universitário entre os Gators e os Tritons de Miami.
Matthew marchou para o jardim segurando uma vassoura, uma pá e um saco de lixo gigante. Antes que eu pudesse rir, Debra apontou para duas caixas em cima da mesa e disse que deveriam estar desempacotadas e o conteúdo devidamente guardado em vinte minutos. Terminei de secar os pratos e já fui abrindo as caixas, encontrando livros de ensino médio que ela usaria na escola em Talapus.
- Onde é que eu guardo isso? - perguntei, tirando um livro da caixa e mostrando para ela.
- Não sei, só ache um lugar onde não vá acumular poeira e que seja fora do alcance desse gato tarado por papéis. - ela respondeu indicando Sunny com as sobrancelhas, que estava deitada no chão observando toda a cena com tédio.
E então ela se voltou para uma janela manchada e começou a limpar o vidro caprichosamente, o que significava que ela não me daria mais atenção nenhuma até terminar. Levei as caixas até um dos quartos vazios da casa e as coloquei no chão; abri a janela para que entrasse um pouco de ar por ali, parando para observar Matthew xingando baixo enquanto varria as folhas grudadas na grama. Ele certamente era o preferido de Debra, principalmente porque ele não criara problemas para se mudar para Warrenton, mas ali ele parecia amaldiçoar o dia em que essa ideia surgira na cabeça de Gavin.Debra só parou de nos atormentar quando tudo estava como ela queria. Eram cinco da tarde quando eu entrei no quarto de Matthew e o vi jogado na cama, completamente acabado e com uma folha presa nos cabelos.
- Acorda, princesa. - eu disse, me sentando na ponta da cama e puxando seu travesseiro. - A gente tem que ir para aquele lugar de índios em uma hora.
- Não, eu não quero ir. - ele resmungou, a voz abafada pelo travesseiro recuperado. - Eu me matei catando folha por folha naquele jardim durante horas, pendurei cortinas em todas as janelas dessa casa... eu mereço dormir.
- Se eu tenho que ir, você também tem. - eu respondi, empurrando ele pra fora da cama. - Andem logo!
- Eu quero todo mundo pronto, contente e aqui embaixo em menos de meia hora, entenderam? - gritou a voz de Debra das escadas.
- Isso parece mais uma ameaça, é melhor não ir contra o sistema. - reclamou Matthew mais uma vez, saindo da cama e praticamente se arrastando até o banheiro. - Anda logo você também. - e atirou o travesseiro em mim.
Deixei o quarto dele e fui até o meu, escolhendo qualquer blusa e jeans para vestir e levando até o outro banheiro. Quinze minutos depois eu já estava sentada no último degrau da escada arrumando o zíper das botas que Debra pedira (mandara) eu colocar. Tive que sofrer com seu olhar de reprovação até que Matthew descesse as escadas e se tornasse a próxima vítima. Debra colocou as mãos na cintura e o observou de cima a baixo.
- Qual é o problema de vocês dois? Não podem nem se esforçar e sorrir um pouco?!
- Sério, mãe? - Matt praticamente gritou, passando por cima de mim e se sentando no sofá.
Gavin desceu logo em seguida, parecendo bem satisfeito que todos estivessem esperando por ele. Eu sabia que era inútil reclamar com Debra que até ele estava atrasado, portanto ela não tinha que gritar comigo ou com Matt, mas ela não daria atenção alguma.
- Dá pra vocês andarem logo? - ele perguntou, sobrando a gola da camisa que usava, como se ele não estivesse atrasado. - E não me olhem assim.
Em silêncio, Matt e eu saímos primeiro e andamos até o carro de Gavin, entrando no carro e batendo a porta com todo aquele ar de frustração. Debra veio em seguida, entrando no banco do carona e ligando o rádio. Tocava Heartbreaker, de Led Zeppelin, na única estação que realmente presta, a The Bone. Mas é claro que ela não ia deixar assim; imediatamente começou a apertar os botões até estacionar em uma estação de clássicos dos anos 80. E eu não quero dizer clássicos dos 80 do tipo Run DMC ou Beastie Boys. Era Rick Springfield. É o tipo de artista que você não consegue acreditar que seus pais escutam, o motivo pelo qual você sente vergonha alheia e pensa no quanto tem sorte por não receber a influência musical deles. Matthew fazia a grande cara de desgosto que todos os filhos fazem em situações como essa.
Gavin entrou no carro, finalmente, e logo saímos da garagem. De Woodlands Golf até Talapus eram vinte minutos de carro, e provavelmente alguns 5 até a casa de Billy. Eu me lembrava muito pouco do lugar, sabia que brincava por ali, mas nada além de pequenos flashes de Matthew gritando para eu parar de me esconder porque já estava ficando sem graça. Ele sempre perdia.
Passamos pelo píer lotado de barcos, a maioria de pesca. Não pude deixar de olhar, aquilo me lembrava St.Pete [N/A: Eu sei. Nos capítulos 1 e 2 eu escrevi que a cidade anterior dela era Santa Cruz, na Califórnia. Mas mudei para St.Petersburg, na Florida, porque é uma cidade que eu posso descrever melhor futuramente. Nada muito comprometedor.], mas em Warrenton tudo era cinza, escuro e com aquele ar triste e gelado. Sentia uma falta terrível dos turistas andando pra todo lado, os alunos da escola naval no restaurante do píer Skyline, da água do mar esverdeada que ficava ainda mais bonita quando a luz do sol batia - eu sentia falta do sol no geral. Eu estava morrendo de frio.
Tenho que admitir que fui um pouco injusta; a reserva Talapus não é tão ruim assim. Tudo bem, é longe de qualquer sinal de civilização (se é que Warrenton é o que posso chamar de civilização), o sol parece ainda menos intenso por ali, passando por todos os pinheiros de 4 metros de altura, a areia da praia era basicamente composta por conchas pontiagudas trituradas que machucavam os pés e praticamente todas as ruas do lugar eram cercadas por árvores e florestas fechadas, dando sempre a impressão de que um maníaco sairia dali com um um machado prestes a te matar. Mas, particularmente, a casa de Billy era um lugar muito bom. Era mais afastado da escola, das pequenas lojas e lanchonetes e do hospital onde Gavin trabalhava, mas valia a pena a caminhada. Estávamos na parte alta da estrada, dando a volta pela floresta, olhei pela janela e vi uma fogueira crescendo na praia, haviam algumas pessoas conversando por ali. Gavin contornou o caminho todo, desceu até a parte plana e parando em frente a uma casa de madeira pequena, pintada de vermelho e branco. Debra foi a primeira a descer do carro, Gavin foi em seguida, mas não sem antes dar o seguinte recado:
- Sejam agradáveis.
Agradáveis, pensei, o que é um pai pedir para que seus filhos sejam agradáveis? Não educados, não comportados, mas agradáveis. Olhei para Matthew, ele com a mesma expressão confusa. Descemos juntos, tentando bater a porta do carro sem fazer muito barulho para não chamar a atenção. Andamos até onde as pessoas estavam, algumas delas se levantando e cumprimentando Debra e Gavin.
- Billy!
Um homem moreno de cabelos compridos e lisos, traços sorridentes e sorriso simpático e, bom, numa cadeira de rodas, acenou para Gavin. Era Billy, imediatamente tinha me lembrado dele. Seguiu-se aquela coisa que todos fazem quando não se vêem há muito tempo. Olha só quem apareceu! ou Quanto tempo! Você está diferente, andou se exercitando? Esses são os seus filhos? Veja só quanto tempo passou, eles estão enormes! blá blá blá. Quando toda a chateação de abraços e perguntas sobre como está a vida, eles pareceram notar que Matt e eu estávamos por ali ainda.
- Ei, acho que e Matthew deviam ir para a praia, os garotos fizeram uma fogueira por lá. - disse Sue Clearwater, eu tinha acabado de lembrar seu nome. - Seth, por que você não leva eles pra lá?
Basicamente do nada, um garoto um pouco maior que eu, corpulento mas com o rosto quase infantil surgiu na minha frente, me fazendo dar um pulo para trás. Ele riu de mim, mas estendeu a mão, fazendo o mesmo com Matthew, e se apresentou:
- E aí? Seth Clearwater. - ele disse, a voz realmente denunciando que ele não deveria passar dos 14, 15 anos.
- Clearwater - repetiu Matt, sorrindo amigavelmente - Nós morávamos perto de uma cidade chamada Clearwater. Matthew .
Eu também tinha certeza de que conhecia aquele garoto pelo nome e quase disse isso em voz alta, mas, também do nada, outra mulher surgiu na minha frente. Só que ela me chamou a atenção por outro motivo. Seu rosto deveria ter sido harmonioso um dia, mas era marcado por uma longa cicatriz da testa até o pescoço, o traço profundo deixava seus olhos desiguais. Mas ela ainda era bonita, o cabelo preto e brilhante caía em seus ombros, uma franja presa por um grampo a deixava com um ar de menina, ela sorria suavemente com a boca fechada.
- Já vi que conheceram o Seth. - ela disse, equilibrando uma pilha de copos plásticos vermelhos em uma mão e segurando duas garrafas de refrigerante com o outro braço. - Ele é o mais novo da, humm, turma. - ela e Seth se entreolharam rapidamente. - Eu sou Emily. e Matthew, certo?
Nós dois confirmamos com a cabeça. Seth pegou as duas garrafas das mãos de Emily e apontou em direção à praia.
- Nós estávamos indo para a Sunset Beach, o resto dos garotos estão por lá. Querem ir?
- Claro. - respondeu Matthew, seguindo na direção da floresta.
Já estava escuro e no meio daquelas árvores pesadas seria impossível enxergar sequer um palmo à frente, mas haviam colocado lanternas de papel por todo o caminho, e havia uma espécie de trilha aberta por ali, assim ninguém correria o risco de cair e ficar como um imbecil se debatendo sozinho. Fiquei alguns passos para trás, sem forças para andar rápido contra o vento gelado que corria. Matthew mexia no celular, só Deus sabe como ele conseguira sinal, e provavelmente estava mandando mensagens de texto para Hayden. Eu conseguia escutar algumas vozes altas e muitas risadas vindas da praia, mas sem entender as palavras. Seth diminuiu o passo para que eu o alcançasse. Ah não, ele quer conversar.
- Então... Flórida! - ele disse, acrescentando energia. - Deve ser uma tristeza sair de um lugar tão quente e vir pra cá.
- É, você não faz ideia. - respondi, olhando para o chão. - Aqui é muito frio.
- Não se preocupe... - ele comentou de volta. Reparei que ele estava usando apenas uma camisa azul fina, bermuda e tênis, enquanto eu estava de calça jeans, botas sem salto que iam até o joelho e uma blusa branca de mangas compridas, me segurando para não esfregar as mãos de tanto frio. - Logo você se acostuma.
- É esse o meu medo. - disse, bem baixinho, pra mim mesma, mas Seth escutou e deu uma risada.
Estávamos chegando perto da praia, logo depois de algumas árvores eu já via a fogueira e vários garotos andando por ali, alguns sentados nas pedras. Emily apressou o passo e chegou lá primeiro, deixando os copos em cima de uma toalha e foi ao encontro de um dos caras por ali. Matthew ficou ao meu lado, enquanto Seth nos guiava até onde a maioria se concentrava. Andamos atrás dele, onde vários outros garotos estavam juntos, conversando e rindo alto. Matthew e eu ficamos um tanto quanto deslocados por alguns segundos, até que Emily apareceu do meu lado e fez o favor de nos apresentar.
- Fiquem quietos por um minuto! - ela dizia, em meio ao falatório. - Esses são Matt e , filhos do Dr.. - ela começou a apontar um por um dos garotos que estavam por ali. - Esses são Quil, Jared, Sam, Paul, Embry... aqueles dois excluídos são Brady e Collin. - ela apontou para dois outros garotos, ainda mais novos que Seth, mas que eram bem maiores que eu.
Olhei atentamente para cada um dos rostos, todos idênticos não só na aparência mas na gentileza e nos sorrisos divertidos. Eu não sabia se eu até tentava participar da conversa que acabara surgindo ou se continuava calada, apenas esperando o glorioso momento em que Gavin nos chamaria para ir embora. Infelizmente, a segunda opção era a mais improvável, já que ele estava saltitando de felicidade em voltar pro maldito lugar onde passara a infância. Enquanto todos - menos eu - já estavam envolvidos num assunto, me sentei em uma pedra mais afastada das vozes e mais perto do fogo, eu parecia a única a morrer de frio por ali. Mas tudo bem, pensei, uma hora a gente vai embora e eu nunca mais vou ter que voltar aqui... aliás, eu só preciso ficar um ano e meio nessa cidade, não é tanto tempo assim. Nada adiantava. A cada "pensamento estimulante" que eu tinha, uma imagem de mim mesma, deitada no chão frio da nossa casa em St.Pete, olhando para a TV e assistindo a um filme do François Truffaut surgia só pra me deixar mais deprimida.
- Oi, .- alguém me interrompeu do devaneio.
Antes mesmo de poder olhar pra cima, quem havia me interrompido já estava sentado ao meu lado. De todos os rostos vagamente familiares (e parecidos) que eu já tinha visto ali, esse era o que eu mais me lembrava. Olhos muito pretos e pequenos, pele avermelhada e bonita, cabelos castanhos curtos - mas não tão curtos quanto os de Daniel... e eu prometera não pensar nele - e o mesmo sorriso perfeito e largo que eu já vira tantas vezes quando criança, só que mais bonito.
- Oi... espera aí, Jake? Jacob Black?
- ? - ele riu, me olhando de cima, ele claramente tinha o dobro do meu tamanho.
Me inclinei em sua direção para lhe dar um abraço e, por uma fração de segundo, algo como uma imensa surpresa passou pelo seu rosto, coisa que eu vi antes de encostar nele. Assim que ele percebeu o que eu tinha feito, senti que seus braços estavam contraídos mas, depois, os senti de maneira amigável. Só de ficar ao seu lado eu já sentia o calor, parecia que Jake o exalava. Isso era ótimo, já que eu era a única idiota ali que viera com a roupa que a mamãe mandara e agora estava prestes a morrer de hipotermia ou, sei lá, gangrena.
Quando nos soltamos dei uma boa olhada em seu rosto mais uma vez; os traços ainda eram os mesmos, só que bem mais maduros e desenvolvidos. Mais uma vez eu me senti a única imbecil dali, todos haviam mudado (pra melhor) e eu continuava com a mesma cara, nem alta e nem baixa demais, ainda lembrando uma criança. E morrendo de frio.
- Então seu pai resolveu parar por aqui? - ele perguntou, brincando com uma pedra que tinha pegado no chão.
- É, mais ou menos. - respondi. - Quer dizer, até essa semana a gente estava em St.Pete e... - parei por um momento pra pensar bem no que ia dizer. - Bom, não é bem isso. Ele só veio ver seu pai há algum tempo atrás, ofereceram um emprego a ele e à minha mãe também então... aqui estamos.
- Eu sei disso, meu pai me contou. - Jacob riu, ainda concentrado na pedra em suas mãos. - Aliás, ele deve ter falado umas milhões de vezes que você estava vindo. O velho não parava de dizer que poderíamos sair correndo e brincando de novo.
- Meu Deus, é sério? - eu ri de verdade, uma das primeiras desde que chegara em Warrenton. - Os nossos pais é que parecem prestes a sair revivendo o tempo deles; Gavin ama esse lugar e, agora que está aqui, não sai nem por decreto.
Jacob abriu outro sorriso e começou a rir. Ele concordou com um aceno, largando a pedra na areia e olhando em nossa volta. Os outros garotos jogavam, que novidade, futebol com Matt. Emily parecia conversar com uma garota muito séria e com cara irritada do outro lado da fogueira; ela devia ter chegado há pouco tempo, não me lembrava dela.
Me surpreendi de verdade quando eu soltei uma risada pra valer. Eu tinha me lembrado de sorrir algumas vezes - provavelmente com Matt ou com Daniel na escola, mas eu NÃO VOU PENSAR NELE - mas essa em especial me chamou a atenção. Eu sabia que todos ali eram legais, bem mais legais que as pessoas do centro de Warrenton (centro, não consigo associar a palavra à imagem), mas eu sentia vergonha de ir lá e puxar um assunto qualquer. Agradeci mentalmente que Jake existisse e se lembrasse de mim, fez com que a minha noite fosse muito mais suportável. Fora que ele era ótima companhia e aquela não foi a única vez que eu ri na noite.
Alguns minutos mais tarde, um dos garotos decidiu sair do jogo e juntou-se a nós perto das pedras enormes. Era o... Embry, isso aí. Ele se sentou de frente para nós dois e começou a falar rapidamente:
- Dá pra acreditar que alguém quer morar logo aqui por vontade própria? Seu pai é louco, sabia?
- Aqui não é tão ruim assim... - Jacob disse, bem baixinho, com a cabeça voltada para os próprios pés.
- Não é? - eu falei, alto, até me erguendo um pouco. - Tá brincando? Talapus pode ser, digamos, legal, mas Warrenton com certeza não é. A cidade é mórbida, o ar é morto, nada tem cor, as pessoas são todas iguais. Eu não vejo a hora de acabar o colegial e ir para a faculdade, bem longe daqui e para algum lugar onde tenha uma média de incidência solar maior. - fiquei com a impressão de soar meio rude e revoltadinha demais, mas Embry riu logo em seguida.
- É só ficar por aqui. - ele disse, dando ombros. - Olha só quanta felicidade. - ele apontou para os que ainda estavam jogando futebol. - E nem precisa ficar aqui pra sempre.
Jacob continuou calado. Ele tinha virado seu rosto na minha direção enquanto eu falava mas, mesmo quando já tinha acabado, ele continuou me olhando. Eu fiz o favor de evitar, já tinha ficado constrangida demais de tudo e de todos naquela noite. Embry não disse nada por um instante, também, e ele encarava Jake com cuidado, como se estivesse tomando algum cuidado. Sua expressão mudou, foi de cauteloso para desentendido e, finalmente, deu ombros mais uma vez e respondeu:
- Eu tenho a sensação de que vamos todos ficar aqui pra sempre. Quem pisa aqui uma vez acaba ficando. Tipo uma... maldição.
E então Jake levantou o olhar para Embry, como se o repreendesse por alguma coisa. Eu fingi não ver, não era bem da minha conta, afinal.
- Preparem-se para me ver pro resto de suas vidas então. - eu sorri, numa tentativa muito, mas muito ridícula de fazer graça.
- Posso me acostumar com isso. - disse Jacob, mais uma vez, olhando para o chão.
Passavam das onze da noite e Gavin já tinha nos chamado para ir embora algumas vezes. Matthew não queria ir, ele e os outros garotos estavam tão concentrados em jogar alguma coisa que arrumaram equipamento de lacrosse, tacos de baseball e uma bola de futebol americano. E eu também não queria ir - e custei a aceitar isso na minha mente, eu não queria ir embora -, Jake e eu havíamos conversado muito, ele havia perguntado sobre a Flórida, falamos sobre quando éramos pequenos... foi muita coisa, mas nunca sobre ele. Assim que Gavin fora nos chamar pela quarta vez, me levantei e fui caminhando até a trilha iluminada. Jacob viera atrás, me alcançando rapidamente. Comecei a dar passos lentos, na esperança de surgir um assunto a ser esticado ali. Qualquer coisa que me distraísse era bem vinda. Mas foi só silêncio. Eu tinha os braços cruzados sobre o peito, tentando ao máximo não sentir frio, mas estava bem difícil. Ele, obviamente, percebeu e soltou uma risada de deboche, parecendo bem relaxado.
- Gente da Flórida... - ele riu.
- Olha só, eu não tenho tanta camada lipídica quanto você. - respondi, também sorrindo. - Tenho que dar o meu jeito de não morrer de frio.
- Tanta camada lipídica quanto eu? - ele perguntou, fingindo estar ofendido. - Você acabou de me chamar de gordo!
- Eu não falei isso!
- Eu também vou à escola, , eu sei pra quê serve uma camada lipídica e você tá me chamando de gordo!
Sorri de novo, mas deve ter parecido meio forçado, já que meus músculos estavam travados de frio. Ainda estávamos um pouco distante da casa. Um vento mais do que gelado bateu onde estávamos, levantando as lanternas de papel pregadas nas árvores e me fazendo tremer.
É claro que Jacob riu. Ele não mudara nadinha, sempre fazendo graça dos outros. Quando achei que ele fosse fazer mais um comentário no estilo "Gente da Flórida" eu senti praticamente um choque. Ele havia se colocado do meu lado, encostando em mim. Seu braço direito cobria meus ombros e sua mão me segurava abaixo do ombro. Olhei para ele e percebi o quanto estava próximo. Eu ia protestar ou xingar ele de alguma coisa, mas fiquei tão instantaneamente aquecida que esqueci o que ia dizer.
- Uau, parece que eu passei a minha vida toda sem saber o que é calor. - eu ri, provavelmente soando como uma retardada, e relaxando por finalmente me aquecer. Ele só riu, e ficamos em silêncio pelo caminho todo.
Quando as luzes da casa já estavam a vista, Jake tirou seu braço do meu ombros, me deixando com frio de imediato. Ele riu alto quando me viu tremendo mais uma vez, eu tive que acompanhá-lo - porque era realmente muito idiota da minha parte deixar que Debra opinasse no que eu deveria vestir. Jacob era legal demais para simplesmente ignorá-lo.
- Vê se traz um casaco de verdade da próxima vez que vier aqui. - ele disse, enquanto atravessávamos a parte aberta até a casa iluminada e cheia de gente.
- Próxima vez? Isso já é um convite? - eu brinquei, mas na verdade queria que fosse sério. - Não se preocupe, eu ainda vou voltar muito aqui pra poder atormentar você e o Embry.
- Embry? - ele perguntou, desfazendo o sorriso do rosto. Quando eu disse que estava brincando ele deixou a expressão séria. - Chegamos.
Gavin e Debra já estavam devidamente se despedindo de todos. Matthew chegara atrás de nós, correndo ofegante e acompanhado de Jared, Paul e Quil, eu acho. Eles ainda falavam de futebol, aparentemente.
- Te vejo depois então, . - disse Jake, abrindo um sorriso.
- Boa noite.
Entrei no carro ao mesmo tempo que Debra, que estava radiante, porém, morta de cansaço - não sei de que, só ficou dando ordens enquanto Matt e eu fazíamos a maior parte do trabalho duro. Gavin e Matt vieram em seguida, e então logo saímos do largo campo aberto em volta da casa. Pelo vidro da janela, vi Jacob se unindo ao resto do grupo, ele não tirava os olhos do carro. Antes de virar uma esquina, Gavin buzinou uma última vez, e então fechei os olhos e senti o efeito do aquecimento do carro antes que meus dedos ficassem roxos.
- Finalmente alguém se divertiu aqui. - ele disse, nos olhando pelo retrovisor. - Matthew e , bom trabalho, vocês foram mesmo agradáveis.
Senti que Matthew virava a cabeça para me encarar, mas minhas pálpebras estavam quase se fechando, nem me dei ao trabalho de olhar de volta. Antes eu só queria ter ficado em casa assistindo uma maratona de Truffaut, agora eu estava ansiosa para voltar ali e ter uma conversa decente com alguém que não fosse o meu irmão ou Sunny.
Não me lembro exatamente como eu saí do carro, entrei no quarto e nem mesmo coloquei meus pijamas de tão sonolenta que eu estava. Mas só de sentir a minha cama eu já estava bem. Eu ainda sentia o toque de Jacob e o choque que foi me sentir tão quente do nada, só de encostar nele. Ele era uma dessas pessoas de um jeito tão educado e simples que te faz sorrir o tempo todo, mas, na verdade, era só esperar uma oportunidade e lá estava ele rindo da sua cara. Eu descobri que gostava disso mais do que me lembrava. Ponto para um dia que não foi infeliz.
Há certas situações em que você realmente deveria parar pra avaliar o quadro geral. Como no domingo seguinte à noite em Talapus - a tão constrangedora noite em Talapus. Eu me lembro perfeitamente de chegar em casa e logo desabar na cama, com a roupa que estava e tudo. E de ter combinado com Debra, enquanto ela observava a trilha que passava pelo rio Necanicum, que deveríamos caminhar por ali. Claro, eu lhe disse, vamos amanhã. Na hora não me passou pela cabeça que ela levara a sério o meu falso entusiasmo. Antes eu tivesse realmente dito que não, eu não queria correr por ali no chão coberto de folhas escorregadias e respirando o ar pesado e úmido.
Eu estava perdida. Bem longe eu sentia que Debra estava me chamando, mas podiam ser apenas ecos no meio de todas aquelas árvores. Em um segundo eu estava seguindo a trilha com Debra, no outro eu já estava embrenhada naqueles pinheiros altos e cheios, tentando enxergar o céu pra saber pra que lado o sol estava se pondo - Jacob tinha feito o favor de me lembrar que era assim que nós sempre descobríamos o caminho de volta pra casa quando brincávamos de esconde-esconde. Eu brincava de esconde-esconde com Jacob. Que vergonha.
Já eram quase seis da tarde, eu estava ali andando em círculos há pelo menos meia hora e nada de trilha, nada de Debra, nada de rio, nada de nada. Eu me dividia entre tentar me equilibrar em cima dos troncos caídos, andar olhando pra cima até enxergar o sol e me xingar por, sabe-se lá porquê, ter entrado no meio do mato. A roupa do tipo segunda pele não ajudava mais, eu estava começando a ficar com frio e sem esperanças de chegar em casa antes do jantar. Debra provavelmente teria ido pra casa de carro pensando que me encontraria por lá. Isso era a cara dela. Continuei andando e olhando pra cima, quando finalmente achei uma brecha naqueles galhos e folhas imensos. Dei passos largos na direção da luz e... caí. Meu falso tênis de corrida me traiu e saiu do meu pé exatamente no ponto em que eu podia enxergar o sol. Sentada no chão, olhei para minha roupa: suja.
- Maravilha!
Me levantei num pulo e andei na direção oposta a que o sol estava - ou seja, andava em direção à marina, de lá eu levaria cinco minutos até o centro da cidade e pegaria um táxi até Woodlands Golf; não estava nos meus planos caminhar mais meia hora a pé só pra chegar em casa e encontrar todos felizes, limpos e comendo pizza (que era, provavelmente, o que Gavin ia pedir, Debra ainda nem se dera ao trabalho de cozinhar). À medida que eu andava para o lado contrário o lugar ficava cada vez mais escuro, exatamente por eu me afastar tanto da claridade. Haviam poucos postes pela trilha, e certamente não seriam acesos às seis da tarde. Apressei o passo, já escutando o barulho do rio correndo ao lado da rodovia. Mas alguma coisa me fez parar.
Eu já estava suja, morta de fome, cansada, paranoica... e depois fiquei assustada. Parei imediatamente ao ouvir um barulho de folhas sendo esmagadas no chão; eu sabia que haviam animais por ali, sim, mas nunca imaginei que eles ficassem tão perto da rodovia. Mais um motivo para eu sair dali correndo - se eu não soubesse que isso chamaria a antenção deles, o que quer que eles fossem.
Me virei lentamente para a floresta atrás de mim. Não havia sinal algum de nenhum animal. Haviam ursos ali, mas era o começo do inverno e eles estavam hibernando. Bom, e haviam lobos - mas esses eram os que se afastavam da rodovia. Algo que eu nunca tivera antes chamado coragem tomou conta de mim e eu prossegui para a floresta, contrariando todo aquele desespero de antes para ir embora. Era como se uma corrente tivesse sido amarrada na minha cintura e me puxasse, ou como se eu estivesse hipnotizada, apenas controlada por uma única pessoa. Eu desci pelos troncos de árvore mais uma vez e depois parei, tentando escutar mais um barulho. A cada momento eu sentia espasmos de dor e de leveza, como se fosse uma bad trip. A cada sinal de dor, eu "acordava", o medo tomava conta de mim novamente, minhas pernas travavam e eu sentia o sangue saindo do meu rosto. E quando a dor sumia, eu dava alguns passos no meio da floresta, seguindo a direção dos barulhos dos animais. Eu tentava ficar acordada, mas era como se eu não pudesse sair dali; como se houvessem dois lados me puxando e eu permanecesse imóvel porque eles eram igualmente fortes.
Foi exatamente na hora que eu tentei correr que tudo ficou mais perturbador ainda; eu girei meu corpo com pressa para trás e quase dei um passo. Senti algo muito grande passando pelo meu lado, algo que quase encostou em mim, mas que passou rápido demais pra isso. Quase ao mesmo tempo, senti um tipo de sopro frio - um vento - batendo na minha nuca e nos meus ombros, como se eu tivesse acabado de abrir a minha janela e as cortinas tivessem trazido o ar gelado do lado de fora. Me causou um arrepio lento e terrível, eu senti cada mínimo músculo do meu corpo se contraindo.
Prendi a respiração; passei alguns segundos ali completamente imóvel, apenas tentando escutar o que viria em seguida.
A "coisa" ficou me rodeando. Ora era o barulho de um animal andando em círculos em volta de mim, ora era o vento frio no meu rosto e atrás de mim, me causando arrepios que subiam pelas costas. Eu estava correndo antes, já sentia algo que poderia chamar de calor, mas depois comecei a tremer. Continuei ofegante, mas não de cansaço. Eu virava meu corpo para todos os lados, tentando encontrar aquilo, mas era impossível, era muito rápido. Comecei a ficar tonta, já sem forças nenhuma para sair correndo. Me sentia completamente sufocada.
E depois acabou. Simplesmente, de uma hora para outra, não senti ou ouvi mais nada. O sopro frio, os passos, as folhas esmagadas... nadinha. Talvez eu estivesse com fome demais e tudo aquilo não tinha passado de uma alucinação, combinada com o meu desconforto de andar num lugar onde o ar era tão úmido e pesado. Dei passos largos na direção da rodovia, finalmente alcançando-a. Quando passei pelas árvores e vi o primeiro sinal da cidade, mudei rapidamente de lado, onde não havia árvore alguma, só para garantir. Eu realmente não tinha muita força para sair correndo dali, mas como eu desejei que tivesse...
Levei quase 15 minutos até chegar no centro, minhas pernas estavam dormentes de tanto caminhar. O caminho parecia ficar cada vez maior conforme eu andava. Quando finalmente cheguei ao restaurante do píer, havia um casal saindo de um táxi, a minha salvação. Entrei no banco de trás e o motorista me olhou por algum tempo.
- Mocinha, você está bem? Quer que eu te leve ao hospital? - ele perguntou, gentilmente.
- Não precisa. - respondi, pegando uma nota de vinte no minúsculo bolso da calça de corrida e entregando a ele. - Woodlands, Rua Iredale.
- Tudo bem... - ele concordou, levantando as sobrancelhas brancas e dando partida no carro.
Tinha começado a chover. Os pingos grossos batiam na janela, onde eu havia encostado minha cabeça. Eu havia desmoronado ali, sem perceber o quanto estava exausta. Eu quase podia sentir o sopro frio perto de mim, ainda escutava e sentia como se alguém estivesse atrás de mim ou andando à minha volta. Fiquei tonta só de me imaginar virando o corpo para todos os lados. Minhas pálpebras ficaram pesadas e eu simplesmente apaguei ali, não antes de ver a lua cheia bloqueada por uma nuvem escura e carregada. Pelo menos eu tinha conseguido voltar antes que chovesse.
Abri os olhos.
Definitivamente eu não estava no táxi.
Eu estava em casa. Melhor dizendo, eu estava no meu quarto, sentada no chão embaixo da minha janela aberta, as cortinas caindo nos meus ombros. Fiquei de pé em um pulo, cambaleei até a minha cama, me deitando e encarando o teto. Sunny estava na ponta, em cima de sua almofada puída que ela arrastava para toda parte. Ela me olhou daquele jeito que só os gatos olham, me censurando. Ela se aproximou de mim e parecia farejar alguma coisa... alguma coisa ruim, porque logo ela mostrou os dentes e saiu correndo pela porta. Eu devia estar muito mal para o meu próprio gato ver que tinha algo de errado.
- Mas que horas são? - eu perguntei em voz alta, me levantando da cama. Olhei para o despertador que havia na cômoda. 07:35 p.m. - O QUÊ?
Levantei da cama, desci as escadas correndo e encontrei todos no andar de baixo, Gavin colocando uma toalha na mesa e Debra trazendo 4 pratos. Matthew estava deitado no sofá assistindo TV. Debra olhou para mim assim que eu entrei ali e deu um grito de reprovação:
- Você chegou há mais de 3 horas dessa maldita caminhada e ainda não foi tomar banho? Anda, suba logo e troque essa roupa, o jantar já está pronto.
3 horas. Eu havia chegado há 3 horas? Mas isso era impossível. Há 3 horas eu estava ainda andando pela rodovia com ela, sem nem passar perto da floresta fechada. Como era possível que eu tivesse chegado há mais de 3 horas??
Sem entender absolutamente nada e sentindo minhas pernas dormentes mais uma vez, subi as escadas e fui tomar banho. A água quente melhorou a dor, mas minha cabeça praticamente girava me forçando a entender como eu poderia ter chegado em casa há tanto tempo. Aliás, como eu tinha saído do táxi? Como eu entrei em casa? POR QUE EU ESTAVA SENTADA NO CHÃO?
Então, do nada, eu tive uma perda de memória? Assim? Não podia ser. De onde viera a lembrança daquela experiência horrível na floresta, da chuva que havia começado logo quando eu entrei no táxi... a última coisa que eu me lembrava era da lua cheia coberta pela nuvem. Como eu poderia ver a lua às, sei lá, 4 da tarde?
Tudo começou a pesar mais uma vez. Saí do banheiro todo tomado por vapor quente e corri para o meu quarto, trocando de roupa depressa. Debra me chamou, terminei de pentear o cabelo molhado e desci as escadas mais uma vez. Me sentei à mesa, pela primeira vez jantando de verdade desde a mudança.
- Gostou da trilha? - perguntou Debra, olhando para mim.
- O quê? Ah, ah sim, claro. É... legal, cheia de árvores.
- Que pena que eu tive que ficar aqui. - ela disse, erguendo as sobrancelhas um pouco. - Mas nós duas podemos ir semana que vem.
- Hum, claro.
Então Debra não havia ido comigo? Mas isso era insano. Eu sei o que eu vi, eu sei que ela estava comigo... mas o que aconteceu? Que merda é essa, agora estou com amnésia parcial? eu pensava enquanto comia. Aquilo simplesmente não se encaixava. Eu ficava processando as lembranças mentalmente, tentando encontrar alguma coisa que fizesse sentido com o que eu tinha visto e com o que Debra havia dito. Nada. Só me trouxe mais dor de cabeça.
Assim que terminei de comer, me levantei, fui até a cozinha e coloquei o prato e os talheres no lava-louças. Peguei um remédio para dor de cabeça e engoli, com um gole d'água por cima. Sunny estava do lado de fora, arranhando a porta do jardim que dava para a cozinha. Abri e ela entrou correndo, subindo as escadas. Assim que ela sumiu de vista, a campainha tocou. Como eu já estava perto, atendi.
- Estou interrompendo alguma coisa?
Pela segunda vez no dia, meus olhos não acreditavam no que viam. Se as imagens da caminhada bizarra da tarde me faziam pensar que estava louca, aquela visão bem ali, real e totalmente palpável também estava me transtornando bastante.
- ? - disse Daniel, olhando pra mim com as sobrancelhas unidas. Lembrei que tinha de me mover.
- Oi... oi! Daniel! - eu disse, repetidas vezes, muito idiota. - O que você... ah, o que você está fazendo aqui?
Ele sorriu sem graça, parecendo não ter exatamente uma boa desculpa para estar ali. E não deveria ser mesmo uma boa desculpa, que raios ele estaria fazendo na minha casa? Logo na minha? Era algo tão surreal quanto um best seller adolescente, e essas coisas surreais não aconteciam comigo. De qualquer forma, ele ficou lá parado na porta, passando a mão pelos cabelos muito curtos, sem dizer nada e só desviando o olhar. Conforme ele gaguejava explicações, tudo foi ficando um pouco chato de acompanhar - e eu tinha muito que pensar naquele momento.
- Quer entrar? - perguntei de uma vez, surpreendentemente impaciente e com pressa.
- Obrigado. - ele respondeu simplesmente, passando pela porta com dois passos bem lentos.
Matthew apareceu na sala, prestes a subir as escadas quando viu Daniel ali. A única explicação plausível para aquela inesperada visita era alguma coisa relacionada a futebol. Matthew estava louco para jogar de novo, e ele era muito bom; ele faria qualquer coisa para convencer Daniel que ele merecia fazer parte do time.
- Perdi alguma coisa? - ele perguntou, parando ao meu lado, no meio da sala.
- Não, eu...
- Quem chegou? - interrompeu a voz de Gavin, vinda da cozinha e se aproximando da sala. Ele apareceu e ficou parado ao lado da mesa de jantar, aguardando alguma resposta. - Oi?
- Ah... Dr., sou Daniel Handler, eu estudo com Matthew e . - Daniel se apresentou rapidamente.
Gavin fez cara de pensativo por um momento, depois olhou para Daniel com o rosto muito sério.
- Conheço cada família dessa cidade e nunca ouvi falar de nenhum Handler.
Se tudo fosse mesmo como um best seller adolescente, eu provavelmente diria algo como Pai!, como toda garota faz quando o pai faz algum comentário inconveniente ou rude sobre o cara que vai levar sua filha para sair. Mas como não era um best seller - e, obviamente, aquele não era o cara que me levaria pra sair - o devaneio foi só mental.
- Minha família é de Salem, senhor, minha irmã e eu nos mudamos pra Warrenton no ano passado. - Daniel respondeu, sem parecer pretensioso ou ficar na defensiva. - Na verdade, nós moramos com nossos padrinhos, Adam e Amerie Darius.
- Ah, sim sim, Darius. - Gavin logo concordou, piscando várias vezes. - Moram em Fort Stevens, certo?
- Sim, senhor.
Quando eu estava prestes a me manifestar no meio daquele interrogatório, Debra apareceu, também querendo saber quem havia chegado. Ela deve ter deduzido rapidamente que Daniel estudava com Matthew e eu, já que ela pulou aquele interrogatório todo e perguntou gentilmente e com um sorriso simpático no rosto:
- Oh, olá querido, não quer jantar?
Daniel sorriu, encarou o chão com nervosismo por um momento e depois depositou seu olhar em cada um de nós até parar em Debra, que ainda sorria esperando uma resposta. Era difícil saber quem estava mais confuso, Matt ou eu. Ele, certamente, só pensava a respeito do futebol e de como ele havia se saído - ele fora brilhante, é claro, mas atletas em geral não parecem escutar o que os outros dizem a respeito do seu desempenho. E eu nem sequer tinha uma conexão com Daniel para explicar o motivo da visita, eu já estava esperando o assunto ENTRAR PARA O TIME se tornar o tópico de discussão da noite.
- Não, obrigada, sra.. - respondeu ele, educadamente. - Acabei de comer fora da cidade e parece que foi o suficiente para o resto da semana.
Risadas simpáticas. Debra voltou para a cozinha, enquanto Gavin, Matthew e eu continuamos na frente de Daniel.
- Então...? - perguntei sugestivamente.
- Ah sim, claro! - Daniel parecia ter voltado a si. Abriu a mochila preta que carregava em um ombro só e tirou um papel de lá, entregando para Matthew. - Parabéns, Matthew , o novo lançador dos Gators de Warrenton!
Matthew arregalou os olhos e pegou o papel: ali estava basicamente o que Daniel dissera, mas também com uma tabela de horários de treino, formulário de autorização para participar do time... coisas de jocks. Gavin ficou entusiasmado na mesma hora; ele próprio sempre gostara tanto de futebol e sempre quis que Matthew parasse de pagar de rebelde sem causa e voltasse logo para algum time. Ele agradecia, quase berrava e um sorriso de orelha a orelha estampou-se no seu rosto, quase deslocando a pinta de nascença que nós dois tínhamos iguais. É claro que eu estava feliz por Matt mas, pelo amor de Deus, como se eu não soubesse que ele era bom o suficiente para se juntar ao time de Warrenton.
- Bem vindo ao time, cara... - parabenizou Daniel, mais uma vez, estendendo a mão a Matthew.
Ele agradeceu e subiu as escadas correndo, provavelmente para ligar para Hayden e contar a novidade. Daniel continuou ali, de frente pra mim. Gavin ainda de braços cruzados, encarando-o.
- Bom... eu também vim ajudar a com o trabalho de Inglês. - ele prosseguiu, depois de Gavin pigarrear e interromper o silêncio.
- Veio? - perguntei, sem entender. - AH! O trabalho de Inglês, claro.
Pensei em dizer que eu já havia feito praticamente tudo, mas que mal faria se Daniel me ajudasse a terminar? Ou, quem sabe, refazer o trabalho todo. Provavelmente levaria uma hora, talvez duas, ou mais. Poderíamos preparar uma apresentação, algo bem trabalhoso e demorado de se fazer.
- Então... - disse Gavin, se virando para a cozinha mais uma vez. - Usem o protótipo de escritório aqui embaixo, tem espaço o suficiente na mesa. Trabalho sobre...?
- Cyrano de Bergerac. - respondi, gaguejando um pouco.
Gavin só revirou os olhos, ele odiava qualquer tipo de livro clássico romancezinho, ainda mais as peças teatrais. Ele era mais o tipo... Stephen King. Assim que ele bateu a porta da cozinha, eu andei em direção ao "protótipo de escritório", que era basicamente uma sala que ele ainda queria arrumar para que ele pudesse organizar seus livros de medicina, os arquivos dos pacientes e qualquer coisa assim. A sala se resumia a uma mesa de centro redonda com tampo de vidro, uma escrivaninha de madeira completamente vazia e séries de livros sobre doenças empilhados pelo chão, em cima das peças de estante que deveria ter sido montada há muito tempo.
- Eu vou lá em cima pegar o que eu já fiz do trabalho... não demoro. - eu disse, e Daniel só se acomodou em uma cadeira e assentiu levemente.
Fechei a porta e subi as escadas quase correndo. Passei pela porta de Matthew e ele estava praticamente pulando na cama, com uma mão segurando o celular.
- Dá pra acreditar, Hay? No time! DE NOVO!
Não pude deixar de sorrir e pensar no quanto eu já sentia falta de Hayden. Entrei no quarto e fui em busca da pasta cheia de plásticos onde eu havia guardado o trabalho (quando se é filha de professora não dá pra evitar esse tipo de organização, a qualquer hora ela pode querer ver como você arruma as suas coisas). Contrariando qualquer tipo de comportamento típico meu, parei em frente ao espelho e tentei fazer algo com o cabelo; sem resultados produtivos. Eu ainda estava com cara de cansada e desorientada com o que acontecera nas últimas 4 horas. Decidi que isso ficaria para mais tarde. Desci as escadas mais uma vez e entrei na sala. Daniel continuava no mesmo lugar, mas havia tirado o casaco azul marinho, ficando apenas de camisa preta.
Me sentei ao seu lado, espalhando os papéis pela mesa. Eu tinha feito um trabalho muito bom, modéstia à parte. Sorte de principiante, eu pensei, porque aquele era um dos meus livros favoritos. Era só uma questão de tempo até chegar na literatura chata e repetitiva de Shakespeare.
- Parece que você não precisa muito de ajuda por aqui... - ele riu, passando as páginas do trabalho impecável. - Gosta de Cyrano tanto quanto gosta de cinema?
- N-não não, não é pra tanto... - sorri de nervosismo, colocando insistentemente uma mecha de cabelo atrás da orelha. - Como é que eu vou comparar a literatura do final do século XIX com a invenção do cinema na mesma época?
- Justo. - ele concordou, os olhos verdes muito escuros brilhando de divertimento. Ele fechou a pasta com o trabalho e se encostou na cadeira. - E literatura pós-guerra e cinema pós-guerra? Quem vence?
Continuei sorrindo. Aquilo era surreal demais para a minha vida, para Oregon, para Warrenton. Era realmente um fato inédito e deveria ser aproveitado até o último momento possível.
- Difícil. - respondi. Na minha mente, eu estava correndo contra o tempo para buscar os mais variados tipos de informações acumuladas que eu tinha sobre cinema e literatura, eu não queria parecer uma completa idiota. - Sei lá, acho que a literatura ganha, mas o cinema durante a guerra foi muito bom. Por muito bom eu quero dizer excelente.
- Eu também acho! - ele exclamou, se sentando mais perto de mim. - Tinha Keaton, Chaplin, Riefenstahl, Pabst...
- O Grande Ditador é meu filme preferido. - comentei, deixando meus olhos vagarem no rosto de Daniel. Era um conjunto muito bonito.
- Drácula, o de 1939. O único filme de vampiros que valeu a pena.
- Nem Drácula de Bram Stocker? - perguntei, focando-me no assunto.
- Nem Drácula de Bram Stocker. E, por favor, nem fale de Um Drink no Inferno.
Imediatamente, começamos a rir. Daniel pegou um caderno de sua própria mochila e começou a copiar algumas coisas que eu havia escrito nas anotações. Eu continuei parada apenas o observando, principalmente a expressão concentrada que ele tinha, a letra quadrada não muito bonita. E aí surgiu algo digno da fala da Mia Wallace em Pulp Fiction: um silêncio desconfortável. Quando você fica ali com uma pessoa, sem falar nada mas torcendo para que a outra fale. Secretamente, a outra pessoa não sabe o que falar e quer que você fale e, no final, ninguém diz nada. Não sei se ele chegou a perceber isso, ele continuava virando as páginas e anotando o máximo de detalhes possíveis daquele trabalho.
Daniel fechou o trabalho logo depois de copiar a bibliografia na última página. Haviam se passado alguns poucos minutos de silêncio, mas fora tempo o suficiente pra eu começar a pensar furiosamente em um assunto para começar. Quem sabe sobre filmes e diretores de cinema, já que aquela era basicamente a única coisa que nós tínhamos em comum. Quando ele finalmente ergueu a cabeça na minha direção e deu uma olhada no jardim pela janela, a tensão ficou ainda pior. Eu praticamente gritava mentalmente pra poder achar qualquer motivo para mantê-lo por mais tempo na minha casa.
- Eu acho que eu devia ir. - minhas esperanças foram destruídas. - Amanhã tem aula e tudo mais...
- É, você tá certo. - concordei rapidamente, juntando todas as folhas soltas do trabalho pela mesa. - Eu devia...
- Ah...
- O quê?
- Bom... - ele continuou sentado, sombrio, enquanto eu já tinha me levantado de nervosismo. - A verdade é que eu não quero exatamente ir embora. Pra minha casa, quer dizer. Alguns problemas por lá, meus padrinhos estão se estressando com a minha irmã e comigo, principalmente comigo.
- E por que? - me sentei novamente.
- Faculdade. - ele respondeu, rindo mas não como se achasse qualquer graça. - E futebol. E... hum, outras coisas.
Olhei para baixo sem saber o que responder. Tá, eu não era nenhuma deslocada social mas também não sabia aconselhar ninguém nesse tipo de aspecto. Nunca tive o que podemos chamar de tato ou sensibilidade, tudo pra mim sempre podia ser resolvido com muita prática. E ali estava eu prestes a deixar bem claro para Daniel que não era na minha casa que ele gostaria de estar para fugir dos problemas.
- Tudo bem, não precisa dizer nada. - ele riu mais uma vez e se levantou da cadeira. - Eu acho que vou dar uma volta antes de ir pra casa, não quero te incomodar.
- Não! Você não...
- Calma. - ele segurou minha mão e eu instantaneamente arregalei os olhos, me lembrando que ele fizera exatamente a mesma coisa quando nos conhecemos. - Já falei, tá de boa.
Ele andou em direção a porta do pseudo escritório e eu fui atrás. Ele deu uma última olhada na casa abarrotada de livros de história e medicina e abriu a porta da frente para si. Ele ficou de costas para o jardim com uma das mãos no batente, perto do meu rosto. Os olhos verdes ficaram ainda mais escuros com a luz fraca e bem mais bonitos. Eu não havia dito praticamente nada e ele começou a sorrir, agora sim achando graça em alguma coisa.
- Não vai chegar em casa um pouco tarde? - perguntei, erguendo as sobrancelhas. - E, sei lá, não tem tantas coisas para se fazer em Warrenton quando o objetivo é se acalmar ou espairecer. A não ser que seja se matar.
- Relaxa, eu só vou dar uma volta. Prometo que não vou morrer. - e sorriu mais ainda.
- Já foi em Talapus? Ah, claro que já, eu particularmente acho que lá é a única parte de Warrenton que vale a pena.
A expressão dele mudou, fechou completamente. O sorriso debochado sumiu e ele começou a olhar para os lados distraidamente. A mão que ainda estava no batente ficou mais firme, os nós dos dedos pareciam firmemente apertados.
- Bom, eu não vou lá. Eu... ah, não gosto muito de árvores ou de praia.
- Entendi... - olhei mais uma vez a sua mão próxima ao meu rosto, pela primeira vez prestando atenção. Havia um anel de prata impecável em seu dedo do meio. Bem no centro tinha uma pedra redonda muito vermelha, deduzi que fosse um rubi.
- Anel bonito.
Ele piscou algumas vezes, tentando entender do que eu falava. Ele desencostou da porta e olhou sua própria mão, com o rosto mais amigável.
- Ah, gostou? É meio que de família, a Lisa também tem um. Só pessoas muito valiosas os têm. - ele sorriu, levantando uma sobrancelha. - Um dia você consegue um também. Boa noite.
E foi isso. Ele se virou de costas pra mim e andou até o carro, entrou e sumiu pela rua, sem olhar para trás ou para o lado nenhuma vez. Tinha me deixado com cara de idiota e uma impressão de que ele era um bocado prepotente, talvez orgulhoso demais. Pessoas muito valiosas , pelo amor de Deus.
Fui pro meu quarto depois de dar boa noite a Gavin, ainda assistindo E.R na sala. Sunny estava em cima da minha cama, quando me viu, desceu imediatamente e veio até mim, ronronando e fazendo manha. Ponto totalmente negativo para gatos: só te procuram quando precisam.
- Agora você vem pra mim? Mais cedo até saiu correndo quando me viu, que ordinária. - eu ri, a colocando em cima do pequeno sofá ao lado da estante de livros.
Me deparei com a janela aberta mais uma vez. Tinha ficado tão absorta em Daniel que havia me esquecido completamente do que tinha acontecido à tarde. Me inclinei pelas cortinas e coloquei a cabeça para fora, observando tudo que havia em volta. Eu não enxergava dois palmos na minha frente, só via as luzes da ponte bem de longe. Logo abaixo havia a base do telhado plano, se eu tivesse um pequeno apoio lá embaixo daria para escapar de casa facilmente. O que não me deixava mais tranquila, agora que a única explicação plausível para eu ter entrado em casa sozinha era passando pela janela. Eu não tinha nem altura, nem força nem coordenação motora para pular do telhado plano para o jardim, ainda mais subir.
Fechei o vidro rapidamente e arrastei as cortinas. Sem nem pensar em outras explicações, coloquei um pijama e peguei um livro para ler, evitando Cyrano de Bergerac ou Lolita ou Laranja Mecânica, qualquer coisa que tivesse sido adaptada para o cinema. Porque aí me lembraria de Daniel, no quão reservado, mas alegre, ele era e, agora, no quão prepotente ele parecia ser. Mas isso não me deixou menos, digamos, interessada nele. Prova disso é que, a partir daquele momento, ele passou a fazer parte de todos os meus sonhos. Dos mais bobos aos mais perturbadores.
- Você ao menos está me escutando? - senti uma mão fria me dar um tapa na testa com muita força. Pisquei e olhei na direção de onde viera, de Lisa, é claro. Ela me olhava indignada, ao lado de uma Ellie perfeitamente concentrada num grosso volume de Os Miseráveis no colo. - Sério, repete o que eu acabei de falar.
Eu não estava prestando atenção mesmo, coisa que eu viera fazendo com Lisa desde o começo da semana. Ela era boa pessoa, mas a necessidade de falar e ser superior em tudo já me irritava até demais. Seus assuntos eram dos mais variados possíveis: ir para Salem, a equipe masculina de corrida, suas notas altas demais, Daniel... geralmente esse último assunto me despertava. Eu ainda não sabia se ele havia comentado com ela alguma coisa sobre ter ido lá em casa no fim de semana, mas eu não seria a primeira a falar, com certeza. Só seria mais um motivo para Lisa implicar comigo até me deixar roxa de vergonha cada vez que ele estivesse por perto.
- Desculpa, acho que eu tenho narcolepsia. - respondi sorrindo da mesma forma arrogante que ela fazia, levantei meus braços para me espreguiçar na cadeira dura do refeitório e voltei à posição inicial.
- Narcolepsia? - ela me olhou com escárnio. - De olhos abertos? Não insulte a minha inteligência, por favor. O que eu estava dizendo era sobre a festa de Natal que eu e Daniel iremos no fim de semana.
- E daí? - perguntou Ellie, sem erguer os olhos do livro.
- E daí - Lisa respondeu, falando mais alto e se virando para ela também - Que eu queria que vocês duas fossem com a gente. , é claro que você tem que levar o seu irmão. - ela sorriu torto no final.
Revirei os olhos. Estávamos na cidade há pouco menos de uma semana e Lisa já criara um tipo de obsessão por Matthew, outro assunto que me irritava.
- Você sabe que eu não posso. - disse Ellie com a voz baixa e uma expressão de desculpas. - Eu vou ficar em Astoria o feriado inteiro, como sempre.
- Ok, tudo bem. - ela disse rapidamente, entediada. - E você? Vocês vem, não é?
- Eu preciso perguntar Debra e Gavin antes - respondi, torcendo para que eles tivessem algum plano em mente que pudesse me salvar. - Supondo que eles deixariam, a Hayden iria também.
- Quem é Hayden?
- Eu já te falei várias vezes, Lisa. Hayden, a namorada do meu irmão. Ela vem passar o Natal e o ano novo aqui por causa dele. Fala sério, você sabe disso, até ele já te falou dela.
Lisa não parecia escutar o que eu dizia sobre a Hayden, de novo. Era a quinta ou sexta vez que eu explicava que ela não teria chance alguma com o meu irmão porque ele já tinha namorada, era algo bem sério mesmo, aliança, promessas de amor e tudo mais. Claro, Lisa só prestava atenção na parte que lhe dizia respeito.
- Bom, eu não lembro disso... - ela disse simplesmente, Ellie a olhou da mesma forma que eu. - Enfim, que leve a namorada então. Dan e eu não queremos ir só nós dois esse ano, foi ele mesmo que me disse para convidar vocês duas.
- Ele disse para me convidar também? - perguntei sem pensar, depois me veio à mente que teria saído com encantamento demais.
- Sim, qual o problema? - ela perguntou, erguendo a sobrancelha, mas falando mais uma vez antes que eu pudesse responder. - Se o problema for os seus pais, Adam pode ligar para eles e explicar tudo.
Adam. Então esse era o nome do tio ou padrinho que cuidava deles. Eu sempre morri de vontade de perguntar um pouco mais sobre a vida dos dois, mas seria demais. Lisa provavelmente ia rir na minha cara, e eu não tinha exatamente o que se chama de intimidade com Daniel para perguntar.
- A festa vai ser na Sunset Beach, mas nós vamos ficar em um hotel bem perto da praia. - ela continuava a falar, embora eu não estivesse 100% atenta. - É só de um dia para o outro, saímos na sexta depois da escola e voltamos no sábado à tarde, a diária não é tão cara e as entradas para a festa o Dan sempre ganha aos montes. Não tem erro, seus pais só precisam deixar.
- Eu vou falar com eles, mas posso dar o seu número para eles ligarem para o seu...
- Padrinho, Adam Darius. - Lisa respondeu, pegando uma caneta e um pedaço de papel da mochila e anotando o número. Escreveu Adam e Amerie Darius embaixo do telefone e me entregou. - Pode ligar a qualquer hora, a gente vai dormir bem tarde.
- Tudo bem, valeu. - respondi.
Guardei o número dentro de um caderno e me levantei da mesa, Lisa e Ellie ficariam pois tinham aula na mesma sala e só começaria em meia hora. Avistei Matt e Daniel conversando com outros jogadores em uma mesa, falando alto e rindo sem parar. Ele parecia bastante enturmado e contente de estar em um time, nem pensei em parar para dizer oi, provavelmente ia me engasgar assim que tivesse que cumprimentar Daniel. Eu não havia trocado nem 3 palavras com ele depois do dia na minha casa, só na hora de apresentar o trabalho na aula de Inglês. Depois disso o vi ou com Lisa ou com meu irmão, e nessas ocasiões tudo que eu pude fazer foi dizer um Olá muito baixo.
Entrei na sala atrasada e o professor me olhou com cara feia enquanto eu andava até a carteira vazia ao lado da parede. Tentei me concentrar na Revolução Francesa, mas o que me vinha à mente era a Kirsten Dunst como Maria Antonieta sendo decapitada e depois seu sangue sendo usado para fazer calda em um dos bolos servidos em Versalhes. A desconcentração da minha mente foi tão longe que eu cheguei a imaginar o Monsieur Thénardier de Os Miseráveis (que Ellie estava lendo) comendo o bolo com o sangue da rainha morta. Quando o sinal bateu, copiei as páginas do livro que estava no quadro e saí rapidamente para alcançar Matt no corredor debaixo.
Para a minha frlicidade, ele estava sozinho arrumando os livros do armário. Ele virou o rosto e me viu, fechou o armário e andou na minha direção.
- E aí? O Daniel nos chamou para...
- Uma festa em Sunset Beach? - completei, sorrindo. - Lisa me chamou. E então... o que você acha?
- Não sei, vamos falar com eles no caminho para o aeroporto. - ele respondeu, andando ao meu lado.
- Aeroporto?
- A Hay chega hoje. A gente tem que buscá-la às sete, na volta nós falamos com ela e com Gavin ou Debra.
- Tudo bem então. Mas eu só vou se vocês dois forem também, sabe, eu não quero ficar... deslocada.
Matt não respondeu, mas ficou rindo. O sinal bateu e nós já estávamos na porta da sala de Física, nossa única aula juntos.
- Não, a gente vai sim. - ele sorriu. - Olha só pra você, a primeira oportunidade de sair de Warrenton e você aceita de cara.
Rolei os olhos, empurrando-o pelos ombros de brincadeira. Realmente, em St.Petersburg eu não era assim, meus planos para feriados se resumiam em assistir filmes de terror originais e seus respectivos remakes logo em seguida. Eu quase nunca saía e muito menos ia em festas. Mas era Warrenton e qualquer coisa fora de Warrenton era boa.
Entramos na sala e dessa vez me obriguei a prestar atenção na matéria, não era tão boa assim em Física e não podia me dar ao luxo de ficar pensando em 2001: Uma Odisséia no Espaço como eu sempre fazia na outra escola - algo que sempre me fazia correr atrás da matéria nos últimos minutos da aula.
Meu Deus, mas ela não vai embora nunca? era a frase que martelava na minha cabeça enquanto eu estava dentro do carro com Matt, ainda parado no estacionamento da escola. Parado porque Lisa estava do lado de fora, conversando comigo pela janela aberta sobre a festa e pedindo desesperadamente para eu convencer meus pais a nos deixarem ir. Até Matt já perdera a paciência.
- Mas não esquece de falar com os seus pais que é uma festa de gente ci-vi-li-za-da, entende? Senão eles vão achar que é um evento qualquer e não vão deixar você ir com a gente. Fala tudo do jeito que eu te disse, bem explicado, se quiser liga para o meu...
-Eu acho que eles já entenderam.
A voz que interrompeu Lisa não era de Matt, era mais alta e mais firme, mas tinha um tom divertido. Daniel logo apareceu ao seu lado, usando o mesmo uniforme que Matt agora tinha. Ele era visivelmente mais alto que a irmã, assim que parou ao lado dela fez uma sombra.
- Matt, vocês vão? - ele perguntou, me ignorando na janela.
- Te damos resposta amanhã. - ele respondeu, se inclinando para frente para olhá-lo diretamente.
- Tudo bem, só não deixem a minha irmã ocupar o tempo de vocês falando merda. - ele sorriu, finalmente olhando para mim. - Oi.
Não tive chance de falar Oi de volta. Lisa puxou Daniel na direção oposta e se despediu com um grito, Matt ligou o carro e o rádio em uma estação razoável.
- E você, hein? - ele perguntou assim que viramos o quarteirão.
- O que tem eu?
- O Daniel é um cara legal, meio estranho, estressado e sério, mas é legal.
- E o que isso tem a ver comigo?
Ele não respondeu, só olhou pra mim e sorriu, aumentando o volume da música, ainda cantando junto.
Chegamos em casa depois de 10 minutos, na Flórida eu levava no mínimo 40 minutos no carro só para chegar no nosso bairro. Sunny estava do lado de fora da casa, provavelmente Debra havia colocado ela no jardim de propósito. Coloquei ela no meu colo e entrei na sala atrás de Matt, que já tinha ido em direção à cozinha. Subi as escadas e entrei no quarto, largando Sunny em cima de sua almofada vermelha.
Tirei o livro de Física da mochila e comecei a fazer os exercícios que o professor havia passado naquele dia. Deixei metade em branco, pensando em pedir ajuda para Lisa ou Ellie no dia seguinte. Também tentei estudar História, mas tudo aquilo eu já sabia de cor. Não havia nenhum trabalho para fazer, nada da escola que pudesse ocupar a minha mente por no mínimo 3 horas.
Desisti de tentar ser uma aluna exemplar como Lisa e peguei A Hora do Vampiro de Stephen King para ler pela terceira vez. O plano era ler 100 páginas e voltar para os exercícios de Física, mas dormi com o livro na cara antes que a Parte I acabasse.
Acordei com Matt tirando o cobertor do sofá de cima de mim. Ele me sacudiu com as duas mãos até eu abrir os olhos; o retardado morria de rir da minha cara de sono e ainda levou o cobertor para si.
- Anda logo, são seis e meia. - ele gritou assim que saiu do meu quarto.
Escutei as vozes de Debra e Gavin no andar debaixo. Levantei do sofá pequeno do meu quarto e dei um jeito no cabelo enquanto descia as escadas.
- Onde você estava? - perguntou Debra quando me viu pela primeira vez no dia.
- Estudando Física. - menti. Bom, não era 100% mentira.
- Sei, sei... - ela me olhou desconfiada.
Gavin já estava lá fora ao lado de seu carro e Debra foi atrás, entrando no banco do passageiro - um milagre não andarem em carros separados - seguida por mim. Matthew correu nervoso até a porta da frente e a trancou, esbarrando em mim ao entrar no banco de trás do carro. Ele estava respirando alto e piscava sem parar, quase dava pra ouvir o coração pulando. Era só atravessar a ponte para Astoria que chegaríamos no pequeno aeroporto de lá, desses só para voos curtos. Hayden ficaria só até o fim do recesso escolar depois do ano novo, ela tinha que voltar para as aulas em St.Petersburg - e eu a invejava loucamente.
- Ei, sossega aí. - reclamei quando Matt começou a batucar na janela de tanto nervosismo.
Mas é claro que ele não me escutou, não escutaria mais nada até que chegássemos em Astoria. Depois de pouco tempo já vi as luzes na cidade, definitivamente mais movimentada que Warrenton. O aeroporto ficava perto da ponte, então logo descemos e o Matthew praticamente pulou do carro antes mesmo que Gavin pudesse estacionar direito.
- Alguém sabe onde é o portão de desembarque? - perguntou Debra depois de descermos, olhando em volta.
- É só seguir o rastro do Forrest Gump. - apontei para o pontinho distante que era Matt correndo.
Gavin parou para tomar um café em uma lanchonete, me deixando sozinha com Debra e um silêncio desconfortável. Eu sempre me dei melhor com ele, com Debra ainda era estranho. Essa de encarar alguém que tinha lapsos de mentalidade adolescente não era pra mim, ela vivia testando o meu humor e andava praticando seu tom autoritário de mãe - insuportável e exagerado, o que me irritava mais ainda. Com Gavin era muito mais fácil, ele era mais natural e não precisava "testar" nada. Ao contrário de muita gente, eu não queria pais relaxados, flexíveis demais ou desses que tentam ser melhores amigos dos filhos. Eu só queria gente normal, que ia brigar comigo por uma nota ruim em Física ou desaprovar o cara que eu arrumei pra sair - e não tentar fazer um casamento arranjado com o filho do melhor amigo.
Fui pensando nesse assunto até chegarmos no último portão do aeroporto, onde vi a cabeça ruiva de Hayden ao lado de Matt extremamente sorridente. Ela se virou e veio de braços abertos na minha direção.
- !! - ela gritou no meu ouvido enquanto girávamos em um abraço. Ela era menor que eu e ficou na ponta dos pés para me ver direito. Fazia só uma semana que nós havíamos nos mudado, mas todos já sentíamos sua falta. Bom, eu sentia falta de tudo, mas isso não vem ao caso. - Que merda de cidade, não é? Logo que cheguei em Portland já comecei a tremer de frio, que loucura isso aqui. - ela riu me soltando em seguida.
Matthew era um cidadão muito estranho. Depois da sua fase de rebeldia, ele resolveu ser um garoto de família e assumiu um compromisso sério com Hayden, até então só uma colega de sala. Eu nunca achei que realmente fosse pra frente mas, conforme ela começou a frequentar nossa casa em St.Pete, nós duas acabamos amigas, ela era uma das poucas pessoas que compartilhava opiniões sobre cinema comigo. Hayden de volta, mesmo que por pouco tempo, era uma parte da vida que eu tanto gostava.
- Uma semana nesse lugar e eu já enlouqueci. - respondi sorrindo. Hayden então foi em direção à minha mãe, que lhe deu um abraço e perguntou como as coisas estavam; Matt observava de perto, os olhinhos brilhando de felicidade. - Uma semana também foi tempo o suficiente para o Matt morrer de saudades.
- Eu também! - ela riu alto, soltando minha mãe e indo ao lado dele. - Vocês estão perdendo a temporada dos tornados, olha só que divertido.
- Divertido igual bater em velho. - disse baixo o suficiente para ninguém ouvir.
Andamos até onde Gavin tinha parado para tomar café. Ele já estava de pé com um copo para viagem na mão e sorria cordialmente para Hayden.
- Olá, querida, que bom que voltou. - eles se deram um breve abraço. - Como estão seus pais?
- Tudo ótimo... - ela respondeu, visivelmente sem graça com essas normas de educação padrão.
Só na volta para o carro percebemos o quanto o aeroporto era grande. Já ventava muito, mas pelo menos a neve tinha derretido com a chuva que havia durado 4 dias. Assim que entramos no carro me lembrei da tal festa que Lisa tanto me aborrecera para ir; chamei Matthew e olhei para ele significativamente e ele assentiu.
- Mãe, pai, a quer perguntar uma coisa. - ele disse, sem olhar pra mim.
- Que??
- Pergunta logo, não precisa ter vergonha.
- Bastardo traíra. - xinguei e ele riu na minha cara. Respirei fundo e cheguei pra frente para eles me escutarem melhor. - Então, folks, se lembram daquele meu, ahn, amigo... o Daniel Handler? O do time de futebol que foi lá em casa no domingo.
- Sim, o que tem ele? - Debra perguntou, virando o rosto levemente para onde eu estava.
- Ele e a irmã dele nos chamaram, quer dizer, Matthew e eu... e Hayden também - apontei para ela - Para ir em uma festa de Natal em Sunset Beach amanhã depois da aula.
Não tive nenhuma resposta. Debra nem parecia estar ouvindo direito, estava aérea como sempre. Gavin arrumou o espelho do carro na minha direção.
- Festa... - ele refletiu. - Que tipo de festa?
- Não sei, pai. É uma festa na praia em Sunset Beach, nós ficaríamos em um hotel a um quarteirão do lugar. Não é uma festa aberta, a Lisa já tem convites para todos nós...
- E voltaríamos no sábado à tarde. - Matt completou, finalmente me ajudando. - E eu teria que pegar um carro emprestado também...
- Eu tenho o telefone dos padrinhos deles, se vocês quiserem - me lembrei, tirando o celular do bolso, onde eu havia gravado o número. - Amerie e Adam Darius, a Lisa disse que vocês podem ligar a qualquer hora.
- Se os pais deles sabem...
- Não são pais, são padrinhos. - interrompi.
- Se os pais deles sabem - Debra continuou mesmo assim. - Eu não vejo motivos para não irem. Ainda mais você, filha, você parece um fantasma amargurado andando pelas sombras na casa... você bem que precisa de sair um pouco, não acha?
- Nossa, mãe, que amor.
- Vocês não mudam nunca! - Hay riu no meio do silêncio constrangedor. Realmente, se tirar a cidade, a casa, o clima, a chuva, o cinza pra todo lado... nós não havíamos mudado nada.
Mal havia pisado na escola e já tinha visto uma avalanche de cabelos loiros balançando na minha frente. Eu havia ligado para Lisa assim que chegamos do aeroporto, dizendo que nossos pais deixaram e que com certeza ligariam para seus padrinhos. Gavin realmente ligou, com toda a pose de pai responsável e tudo mais. Não foi nada difícil convencê-los que era uma festa "inofensiva", talvez Daniel tenha aprendido a ser tão persuasivo com os seus padrinhos.
- Você vem!! - Lisa disse bem alto na minha frente, saltitando e, surpresa, me dando um abraço.
- É, é, eu sei, nós vamos. Não esquece que o meu irmão vai levar a namorada dele.
- Ah é, tanto faz. Cadê ele, falando nisso?
- Ficou em casa. - respondi, olhando pra ela com tédio. - Ele teve a cara de pau de falar com nossos pais que iria mostrar a cidade para a Hayden, por isso não podia vir para a aula hoje.
- Ah claro, mostrar a cidade. - ela imitou a minha expressão, logo entendendo o que eu quis dizer. - Há muito o que se mostrar por aqui mesmo.
Fomos para a nossa primeira aula e encontramos Ellie no caminho. Ela prometera me dar carona para casa, já que Debra não quis me emprestar o carro com a desculpa de "você não tem muita prática." Que desculpa era essa, afinal? Eu tinha carteira, não tinha?
O intervalo chegou rápido, Lisa e Ellie me ocuparam durante quase todas as nossas aulas juntas sobre a festa. Ellie queria que eu me divertisse por ela enquanto ela aguentava o namorado esnobe da irmã mais velha numa reunião de família. Ellie era uma dessas pessoas que, assim que morresse, ia direto para o paraíso - se é que existia um - porque haja sistema neurológico para aguentar gente testando sua paciência a todo momento.
Na última aula, ela resolveu prestar atenção na matéria enquanto Lisa fez uma pequena lista de coisas que eu deveria levar na mala. Eu mal queria levar uma mochila, quanto mais uma mala.
- Pijama para frio, pijama para o calor, vestido, saia, blusa branca, blusa de cor neutra, blusa com estampa, blusa sem estampa, jeans, shorts... - fui recitando baixinho, para o professor não escutar. - Lisa, pra que eu preciso de tênis de corrida?
- Eu já vi gente usando de tudo nessa festa. - ela respondeu, sem se virar para trás. - O que cair melhor, você usa.
- Se você diz... - fingi concordar, mas obviamente ignoraria a lista na hora de arrumar as minhas coisas.
Quando estávamos no estacionamento para ir embora, vi Lisa ao lado de Daniel, muito sério como sempre, mas um pouco menos sombrio. Ele sorriu quando Lisa gritou tchau para Ellie e eu e acenou brevemente. Entrei no carro mal conseguindo destravar a maçaneta.
- Eu também já tive uma paixão platônica por ele... - disse Ellie, colocando sua xará, Ellie Goulding, para tocar no rádio.
- "Também?" Por que "também?" - perguntei, já de saco cheia disso.
Ela me olhou séria e revirou os olhos. Ellie era toda calma e amável, até seu escárnio era delicado. Ela batia os dedos no volante ao ritmo da música, sem me responder, assim como Matt fizera.
- Ei, me responde!
- Tá bom, o que eu quero dizer é que você é descaradamente louca por ele. E ele já notou.
- Isso é... bom?
Ellie refletiu por um instante, abaixando a música quando parou em um sinal vermelho.
- Pode ser que sim... Ele é esquisito, sabe?
- Esquisito tipo... sério demais, distante, que dá medo em todo mundo? - tentei, porque aquela foi a primeira visão que tive dele.
- Não, do tipo que tem uns assuntos esquisitos, age esquisito e tem reações esquisitas. Vai ver que, no mundo dele, alguém apaixonada de forma tão explícita é um atrativo.
Abri a boca, indignada. Não era possível que eu tinha deixado isso tão na cara. Era vergonhoso por tantos lados... eu mal o conhecia e já tinha uma adoração tão grande.
- Mas tudo bem. - Ellie continuou, sorrindo. - Você também é esquisita. Um casal esquisito deve se dar bem, certo?
Certo?
- Posso saber por que você não trouxe, tipo assim, nada do que eu disse pra você trazer? - Lisa já começou a reclamar, jogando minha mochila no banco de trás do carro de Daniel, que era onde eu estava.
Eu implorei para não ir no mesmo carro de Matt e Hayden, aquele clima de amor me deixava muito aborrecida, eu não queria ser contaminada por aquilo mesmo que o trajeto fosse de meia hora. Eu provavelmente devia ter ido a pé, nem havíamos saído de Warrenton e Lisa já estava me xingando.
- Você pediu pra eu trazer alguma coisa? - perguntei, inocentemente. - Desculpa, já falei que eu tenho narcolepsia?
Daniel riu alto, me olhando pelo espelho do carro. Lisa revirou os olhos, voltando sua atenção para as estações no rádio. Achou uma bem ruim e deixou por lá. Peguei meu livro na mochila e abri na parte onde havia parado, mas é claro que eu não teria paz assim tão fácil.
- Meu Deus, como você é antissocial! - ela gritou de novo. - Que livro é?
- A Hora do Vampiro, do Stephen King. - respondi sem tirar os olhos da página.
Pela visão periférica vi Dan lançar um olhar para Lisa, que sorriu de lado e virou para trás.
- Ah, Dan adooora Stephen King, não é? - ela se dirigiu a ele, que se limitou a confirmar com um aceno.
Voltei minha atenção para o livro, desistindo de tentar entender aqueles olhares entre os dois. Depois de pouquíssmo tempo já estávamos em Sunset Beach. Ali sim eu me senti à vontade.
Por algum motivo que eu nunca ia chegar a descobrir, o sol chegava naquela cidade. Não tanto quanto eu gostaria, mas aquilo definitivamente era sol. Vitamina D, raios ultravioleta, o suficiente para ter que colocar protetor solar no rosto. Sun sweet sun.
Daniel parou na pequena garagem de um hotel e descemos do carro, Matt estacionou logo em seguida e nos encontramos na recepção abarrotada de gente, provavelmente indo para a festa também. Não demorou muito, logo nos registramos e fizemos a divisão de quartos.
- Então, Dan e Matthew em um quarto, , Hayden e eu em outro. - Lisa disse, já pegando uma chave da mão da recepcionista.
- Na verdade... - Daniel interrompeu, falando depois de tanto tempo. - Eu quero um quarto só pra mim. Não é nada com você, Matt, mas eu durmo muito mal, fico inquieto... não quero te atrapalhar.
- Sem problemas, mas então como vai ser?
- Você e Hayden ficam com um quarto, Lisa e em outro, eu pego um pra mim. - ele disse, se virando para a recepcionista mais uma vez. - Me dê mais uma chave, por favor.
A mulher baixinha e mal humorada lhe deu outra chave, ele pegou e saiu andando pelo corredor cheio de turistas, deixando aquela sensação estranha de sempre. Talvez só eu sentisse...
Matt e Hayden foram na direção do quarto designado, Lisa e eu seguimos para o outro, na direção que Daniel fora. Não era muito grande, tinha duas camas de solteiro cobertas por um lençol branco bem claro, embaixo de duas janelas de madeira clara, combinando com os móveis do resto do quarto. Havia um banheiro minúsculo, eu já estava prevendo Lisa tomar conta dele em segundos.
- Não é tão ruim... - comentei, me sentando em uma das camas e deixando minha mochila no chão. - Dá pra viver por uma noite.
Lisa deixou sua mala - isso mesmo, mala - sob a cama e começou a tirar de lá vários tipos de peças de roupas, até mesmo um vestido longo e preto. Eu queria me deitar e dormir um pouco até a hora de ir para a festa... Eu nem sabia porque essas ideias de paz surgiam na minha cabeça. Era LISA ali comigo, eu não teria descanso nem se quisesse.
- Levanta! Já são quase seis da tarde, a festa começa ás oito. Não sei você, mas eu demoro a me arrumar e vou precisar do banheiro inteiro.
Que surpresa...
Ela pegou a minha mochila e tirou as peças de lá. Juntou com as suas próprias e me estendeu uma roupa que eu não usaria normalmente, mas que parecia bonita.
- Você vai usar isso. - ela declarou, não era como se eu tivesse escolha. - Pode me agradecer.
Fechei os olhos para ignorá-la, mas eu agradeceria mais tarde. Eu escutava seus passos nervosos pelo quarto, a todo momento voltando e buscando alguma coisa da mala; eu não teria nem metado do trabalho que ela estava fazendo, caprichar demais não era comigo, não dava para melhorar muito. Antes que ela viesse mexer comigo mais uma vez, me levantei para tomar meu banho logo. Em menos de 10 minutos eu já estava saindo e pegando a roupa para vestir. Tinha caído bem, isso não dava pra negar, mas era tudo obra de Lisa.
- Não sei porque você fica se arrumando tanto. - comentei em frente ao espelho vendo ela com uma maleta de maquiagem aberta. - Como se você precisasse...
- Obrigada. - ela sorriu, só escutando o elogio e continuou a se maquiar.
Fiquei tanto, mas tanto tempo esperando ela terminar que realmente já passavam das oito da noite. Todo mundo já devia estar pronto há séculos e eu ali parada por causa dela. Quando finalmente saiu já eram quase oito e meia e, claro, estava linda.
- Vai ficar aí parada? - ela perguntou indo para a porta. Me levantei de má vontade e a segui, esbarrando com Daniel no corredor.
- Demoraram. - ele disse, simplesmente, olhando para mim.
- Culpa dela. - apontei e Lisa sorriu, mostrando a língua e saiu andando na nossa frente.
Estávamos nós dois no pequeno corredor do hotel encarando um ao outro. Não sabia o que fazer com as mãos então comecei a balançá-las levemente ao redor do corpo para disfarçar o nervosismo. Dan sorriu sem graça e apontou para mim, tentando ser simpático:
- Você ficou bonita.
- Humm... obrigada. É da sua cor.
- O que?
- Não da sua cor, quer dizer, da cor dos seus olhos, o verde... da cor dos olhos da Lisa também. Ah, deixa pra lá...
Ele balançou a cabeça e abriu espaço para eu passar, andando atrás de mim. Meu Deus, que merda foi aquela? Eu podia tanto ter calado a boca e só ter saído, mas não, tive que ficar ali fazendo papel de idiota. Não é a toa que todo mundo vê que eu gosto dele, eu faço questão de deixar tudo tão na cara, que retardada! pensei durante o caminho até a recepção, me martirizando. Matt e Hayden já haviam ido na frente depois que Daniel os entregou os convites para a festa. E Lisa havia sumido.
- Cadê ela?
- Deve ter ido correndo na nossa frente. - ele respondeu, abrindo a porta de vidro e me deixando atravessar. - Ela gosta muito dessa festa.
- Sei, sei...
- E você?
- Eu o que?
- Você ia muito em festas em... onde você morava? St.Petersburg? - ele perguntou parecendo interessado de verdade, confirmei com um aceno e ele prosseguiu. - E então?
- Quem? Eu? Festas? - repeti, me matando mentalmente logo em seguida. - Não, não mesmo. Eu não sei como aproveitar festa nenhuma.
Olhei para cima e ele estava sorrindo, sorrindo mesmo, não por educação. Batia um vento bem agradável no caminho até a praia, já podia ver as luzes e escutar uma música eletrônica ruim.
- Eu também. - ele riu, deixando o tom de voz sério.
- Você? - perguntei desconfiada. - Eu duvido.
- Você acha que eu gosto de festas? - ele apontou para si mesmo, se divertindo. - Eu não gosto nem de festa de aniversário, ainda mais uma dessas!
Ri junto com ele, adorando o som que fazia. Não me senti mais tão idiota, pelo menos aquela era uma conversa normal e sem nenhum deslize meu. Logo chegamos no lugar, muito iluminado por luzes amarelas e vermelhas; a maioria das pessoas estava em uma parte coberta e com chão branco iluminado, mas algumas estavam andando na areia ao lado de tendas de bebidas. Toda a orla tinha uma iluminação até chegar em uma floresta, de longe eu podia ver algumas pedras grandes, mas não havia ninguém por lá. Passamos pela entrada e Daniel entregou os convites para o segurança. Não estava muito abarrotado, mas o suficiente para não conseguir andar sem esbarrar em pelo menos uma pessoa.
- Acho que eu te vejo por aí... - Daniel disse me tocando no ombro.
- Claro, a gente se vê até a hora de ir embora. - respondi, profundamente desapontada por saber que ele tinha outros planos.
Ele deu uma volta e sumiu no meio das pessoas e eu fui fazer o mesmo. Uma música conhecida começou a tocar, mas só serviu para me desanimar mais ainda. Não senti vontade de me enturmar, beber alguma coisa... nada. Desejei tantas vezes ter a chave do hotel para poder ficar lá na paz e no silêncio.
Eu estava andando sem rumo há pelo menos duas horas, sem sinal nenhum de pessoas conhecidas. Peguei um copo ou outro de alguma bebida colorida, mas nada demais, nada suficiente para me deixar sociável. Desci até a orla da praia, tirando a sapatilha verde de Lisa e sentindo as ondas quentes quebrando nos meus pés. Era um barulho indiscutivelmente mais agradável que a música da festa. Sem perceber, acabei caminhando até as pedras enormes, mas ainda estava perto o suficiente para escutar a música com clareza, então fui além. A floresta, bosque ou qualquer coisa ficava mais na frente, uma distância como três quarteirões; ali a música seria mais baixa, então foi para lá que eu andei. Aos poucos o silêncio foi tomando conta e eu fiquei mais calma, podendo organizar os pensamentos. Queria sair dali logo, mas eram só onze da noite, Lisa, Hay e Matt deveriam estar no começo da "diversão."
Coloquei as sapatilhas de volta e entrei para a parte verde, pisando nas folhas úmidas e sentindo o cheiro do lugar, uma mistura de sal e madeira molhada. As árvores de Sunset Beach eram mais largas que as de Warrenton e tão altas quanto, dei mais alguns passos até que escutei um outro barulho, muito mais alto e perceptível que a música da festa.
Parei imediatamente, paralisada. Eu nunca tinha escutado algo assim, era alto e bem próximo, como se fosse alguma pessoa sendo jogada em cima de um tronco e se despedaçando. Dei meia volta e dei passos largos para um lado, mas vi que tinha ido um pouco longe demais naquela floresta. Quando comecei a ver um pedaço da praia além das folhas e galhos, escutei o mesmo barulho a alguns metros de onde eu estava, dessa vez eu podia dizer perfeitamente o que era. Parecia um animal sendo atacado por outro, desses que a gente vê no National Geographic Channel. Um lobo comendo algum veado, qualquer coisa assim. E estava muito perto.
Escutei pequenos galhos se partindo na mesma distância de onde eu tinha escutado o barulho, depois outro som diferente. Era como água escorrendo no chão e depois... um gemido. Poderia ser alguém da festa que havia se machucado, eu tinha que ir ali conferir de estava tudo bem. Afastei galhos cheios de folhas da minha frente e finalmente vi do que se tratava. Não era uma pessoa. Bom, era sim, mas não parecia estar machucada.
Era Daniel com uma cabeça de um animal nas mãos cheias de sangue, que também escorria dos seus lábios abertos de espanto. Não tive coragem de olhar para o que estava morto, e ainda bem que não o fiz. Senti o sangue sumir do meu rosto e minhas mãos tremendo loucamente. Dei dois passos para trás enquanto ele me encarava com os olhos cheios de susto e atenção. Fui saindo bem aos poucos da floresta, dando passos largos de costas. Quando senti a claridade da praia, me virei e saí correndo o mais rápido que podia, sentindo as lágrimas se formando nos meus olhos de puro choque.
N/A: Olá! Então, esse capítulo tem uma música! É Bloodstream - Stateless. Clique aqui e coloque para carregar, depois dê o play quando for indicado. Boa leitura!
- , me escuta!
Eu não tinha coragem de olhar para trás, é claro que não. Tinha corrido até uma parte mais afastada da praia perto de pedras enormes onde as ondas batiam com força. Entre uma pedra e outra me sentei, tentando recuperar o fôlego. Eu não tinha exatamente corrido, aliás, fazia pouca ideia de como tinha chegado ali tão rápido, mas era ali que estava. Dava pra escutar a música eletrônica vinda da casa, as luzes piscavam e algumas risadas altas eram perceptíveis, mas, é claro, nenhum sinal de Matt ou Lisa - e eu não tinha certeza se era bem ela que eu queria ver.
É algo que a gente não conta como uma possibilidade de acontecer na vida. Tudo bem, você vai a uma festa de Natal onde praticamente ninguém tem o espírito tradicional de comemoração, por isso as pessoas resolvem se acabar de beber e dançar. E é normal ficar enjoada de tanta piração e sair para caminhar um pouco, longe do barulho e das pessoas pulando. Aí você anda sem rumo, mais calma e sem aquelas batidas na sua cabeça. E escuta um barulho consideravelmente alto em relação à música na festa. Todo mundo é curioso, a reação natural seria olhar na direção que o barulho vinha.
Mas é claro que ninguém espera encontrar o irmão da sua amiga - sua mais recente paixão platônica, para dizer o mínimo, no meu caso - com a cabeça de um animal nas mãos, a blusa e o rosto ensanguentados e... presas. Dentes caninos longos e afiados, sujos daquele mesmo sangue que pingava de seu rosto para o chão. A expressão de susto e desespero dele provavelmente não foram piores que as minhas, eu sim estava em pânico e aterrorizada.
Assim que me sentei em uma das pedras comecei a lembrar daquela imagem. Não era... não era nada que eu tivesse visto antes, e olha que eu era perita quando o assunto era filmes de terror, trash e todas essas coisas. O impacto que a visão e o susto causaram em mim era digno de um filme do David Cronemberg. O choque e o estranhamento foram tão grandes que eu não sabia nem se eu tinha mesmo visto aquilo, ou se eu estava exagerando. Ilusão ou não, eu tinha que ficar o mais longe daquela parte, mas não foi o suficiente.
Logo ele apareceu. Não sujo de sangue, não com a expressão aterrorizante no rosto. Aliás, tinha trocado de roupa e estava com a aparência limpa, mas isso não ia exatamente contribuir para a minha calma. Assim que vi ele se aproximando, atrás das pedras onde eu estava sentada e respirando ofegante, eu já senti meu batimento cardíaco ficar louco (e não era a paixão platônica) e minhas pernas ficarem bambas. Me apoiei nos braços e fiquei em pé, mas mal consegui dar um passo.
- Por favor, por favor fique calma! - Daniel já começou a pedir, com as mãos (limpas) estendidas na minha direção.
Calma? A última coisa que eu pensaria naquele momento era em ter calma. Ele viu que eu estava prestes a surtar mais uma vez, então ficou parado, sem dar mais um passo para perto de onde eu estava. Virei o rosto para olhar a movimentação da festa lá em cima, nem sinal de Matthew, Hayden ou Lisa, se bem que eu não tinha certeza se essa última era alguém que poderia me ajudar. Então era isso, ou eu escutava o que ele ia dizer ou... ou seja lá o que for.
Me sentei mais uma vez na pedra, dessa vez olhando para ele, eu sentia as lágrimas se formando. Ele deu mais alguns passos para frente, talvez achando que eu estivesse mais calma.
- Olha só... você é uma garota inteligente. - ele começou.
Soltei um suspiro de indignação. Que tipo de explicação era aquela?
- , eu não vou te machucar. Você não tem motivo nenhum pra ter medo de mim. - ele continuou e eu arregalei os olhos ainda mais indignada. - Tá, isso foi muito imbecil. Eu não... hm, eu não queria exatamente que você me visse, aah, daquele jeito. Digamos que eu não sou exatamente o que você chamaria de normal.
- É isso que você tem pra dizer? - falei, com a voz falha e quase gritando. - "Não sou exatamente o que você chamaria de normal"? Falar sozinho não é normal, odiar chocolate não é normal... o que eu acabei de ver eu não classificaria como "não normal", tem outro nome pra isso.
- Que nome você dá, então? - ele falou mais alto, me desafiando e perdendo a paciência. - Vamos lá, entretenha-me com o seu conhecimento.
O tom dele me assustou mais ainda (se é que era possível), me tirando qualquer intenção de falar. Ele me olhava com raiva, perturbação e impaciência, embora parecesse se controlar ao máximo.
- O que? Monstruosidade? Aberração? Qual parece mais apropriado? - Daniel continuou, abaixando o tom de voz. - Não dá, não dá pra dar um nome. Eu estou tentando encontrar a definição perfeita há mais de 200 anos e ainda não sei qual é!
E sorriu.
- 200 anos?
Ele tomou uma expressão divertida (lê-se piscopata) e se sentou ao meu lado, ignorando qualquer limite imaginário que havíamos traçado para a minha própria segurança.
- Sabe por que eu gosto de você, ? Você é mesmo inteligente... e gosta de cinema. Isso é incrível, hoje em dia todo mundo gosta daquelas porcarias de romances baseados em best-sellers. Você não... você assiste o que é bom. - ele piscou algumas vezes para avaliar a minha expressão, provavelmente de pânico ou de imbecilidade mesmo. - Vamos lá. O que o personagem de Bela Lugosi e eu temos em comum?
Aquilo ali era conversa de gente louca. Meu cérebro parecia fundir enquanto eu tentava associar o que eu tinha visto e o que ele estava falando, mas nada tinha sentido. Tentei soltar algumas palavras, mas todas eram incoerentes. Tudo que ele falava entrava na minha mente e ficava por ali fazendo efeito, mas não tinha uma reação, não conseguia tirar algum proveito. Era insanidade.
Bela Lugosi?
- Bela Lugosi o ator? - me virei para ele, piscando rapidamente. - O que isso tem a ver?
- "Estamos lidando com um Nosferatu." - Daniel repetiu, usando o exato tom de voz esganiçado que o Dr. Van Helsing do filme Drácula. - Você está lidando com um morto-vivo, Nosferatu, ou qualquer nome que queira dar.
Tá bom.
- Eu não sei que tipo de brincadeira é essa, Daniel, mas é melhor parar. - eu sussurrei, realmente com medo.
- Não é brincadeira! - ele gritou. Sem que eu pudesse perceber ou evitar, ele puxou a minha mão e a segurou firme, perto do próprio rosto. - Isso aqui parece de brincadeira?
A maneira violenta de como ele tinha me puxado que me assustou de verdade, e não a sua temperatura gelada. Ele separou os lábios muito vermelhos e, meu coração praticamente parou, revelando dois dentes caninos que se alongavam lentamente, ficando com uma ponta muito fina, parecendo agulha. Ele puxou minha mão até elas e roçou a ponta dos dedos. Se estivesse um pouco mais perto poderia furar a minha pele.
Ok, aquilo ali era real, muito real.
- Isso levanta mais perguntas do que respostas...
- Sério mesmo, ? - ele riu com vontade, relaxando. - Achei que você fosse ficar com medo - mas eu estou! - ou assustada - isso também . - Tudo que você me diz é isso? Quer ouvir uma historinha?
Levantei as sobrancelhas, como se realmente uma historinha fosse clarear a minha mente.
- Uma hora ou outra você vai ter que falar mais do que meia frase, , e usar a palavra vampiro quando pensar no que viu há alguns minutos atrás. - e sorriu malicioso mais uma vez.
Se eu não tivesse realmente visto aquilo eu provavelmente ia rir. Mas todo o sangue, a cabeça do animal morto, as, uh, presas que eu mesma tinha acabado de tocar... Por algum motivo, eu não estava apavorada ao extremo ou tendo um colapso nervoso. Aliás, aquilo explicava muita coisa... mesmo que fosse, para dizer o mínimo, inacreditável.
- Vou te contar a história então. - ele prosseguiu, sem receber nenhuma resposta minha. - Daniel Jorde, apenas um morador de Derby e aspirante a marinheiro do Serviço Naval Inglês. Mark Twain e Jack London sabiam o que escrever, toda a Grã-Bretanha da época era um caos, doenças se espalhando, guerra de não sei o quê... - ele olhou para cima, como se estivesse tentando se lembrar de alguma coisa, depois estalou os lábios em reprovação. - Para encurtar a história: à noite, voltei sozinho de uma partida e minha criadora me encontrou. O nome dela é Helaina Handler, ela disse que estava se sentindo um pouco solitária e a maior desilusão de sua vida foi nunca poder ter visto seu filho mais velho, mais ou menos da minha idade. Ela é extremamente passional e impulsiva, então, uma coisa leva à outra e aqui estou.
Ele nem piscou, sabe? Como se estivesse contando um caso engraçado do almoço de família no Dia de Ação de Graças.
- E tem a Lisa. - ele prosseguiu, provavelmente achou que a minha passividade era um sinal para que ele continuasse falando. - Quase cem anos antes de me criar, Helaina havia fugido da Rússia e abandonado seu próprio criador, Ivan Jordanova, e veio para Derby, uma cidade relativamente grande, onde uma pessoa ou outra desparecida em um intervalo de tempo não faria diferença. Helaina e eu, ainda um vampiro bebê, como queira chamar, viajamos como nômades por um tempo. Era excelente, conhecer a Europa de um jeito que poucos teriam o prazer de aproveitar, os sangues mais delicados, fortes e marcantes que se possa imaginar... - Daniel deixou que seus olhos verdes vagassem um pouco, depois piscou algumas vezes, se recuperando e voltando ali. - Até que Ivan nos encontrou, em Bratislava. Ele poderia ter nos matado, mas não, ele pediu... implorou para que Helaina voltasse, que nunca mais o abandonasse e blá blá blá. Enfim, ela voltou. E como prova dessa devoção, Ivan escolheu uma garotinha de 15, no máximo 16 anos, vinda de Estocolmo para ser transformada com os dois sangues, dele e de Helaina. Essa é Lisa.
"Depois de um tempo, há 90 anos, para ser mais preciso, Lisa e eu começamos a ter curiosidade sobre o mundo, sobre viver o mundo segundo ele, fazer parte de um grupo social (principalmente ela, pobrezinha, fora arrancada de sua vida sem a menor cerimônia, ela merecia essas férias da vida sombria). Passamos as últmas 9 décadas aprendendo a controlar a nossa forma de caçar, não é algo que se aprende de uma hora para outra. É difícil, meu amor, é um desafio e tanto. Agora mesmo é uma tortura para mim..."
- C-Como assim agora?
Daniel sorriu mais uma vez, mas não foi nada malicioso, psicopata ou cruel. Foi bem humano e delicado, aquele tipo de sorriso torto que a gente dá para confortar ou ao menos mostrar a uma pessoa que nós compreendemos o que ela está passando. Ele se arrumou na pedra, curvando-se para frente e mais próximo do meu rosto, mas as mãos cruzadas no peito e muito apertadas. Prendi a respiração, inconscientemente fechando os olhos pela metade.
- Eu não vou encostar em você... se você não quiser. - ele finalmente falou, dessa vez parecendo muito mais com o Daniel sério e breve que eu conhecia antes, e não o louco psicótico/vampiro/o que quer que isso tenha significado. - Para falar a verdade, eu não posso fazer nada com ninguém, com humano algum, faz parte do acordo.
Ele olhou para baixo e soltou as mãos, examinando os dedos e parando bem naquele que tinha o anel de prata tão bonito. E foi essa mesma peça que ele tirou rapidamente e colocou mais uma vez, brincando e girando-a com um sorriso mínimo nos lábios vermelhos. Levantou a cabeça na minha direção e estendeu a mão, exibindo o anel.
- Você é mais esperta do que pensa, . Aposto o que você quiser que, por dentro, você está tentando negar o que viu e o que está ouvindo, mas lá no fundo já se convenceu da verdade. E, uma hora ou outra, vai ficar com medo. Não o medo que você sentiu quando me viu daquele jeito, aquilo foi um susto. Não... você vai se sentir ameaçada a qualquer momento, mas estou te dizendo que não há motivos pra isso. O anel que você achou legal, bom, ele é como um controle. É feito de prata, porque isso nos dá um "atraso" na força, nos movimentos, na velocidade... para que fiquemos mais próximos dos humanos. E essa parte vermelha - ele tocou a pedrinha pequena - é o sangue da Helaina... funciona como uma identidade. É daí que ela pode me encontrar. E, ah, eu não posso tirar esse anel durante o dia, caso contrário eu morro queimado pelo sol.
Um. Dois. Três minutos.
Meena Van Helsing teve uma vida mais tranquila que a minha.
Ele estava certo. Eu continuava negando tudo na minha cabeça, mas ali, se eu passasse por cima de todos os pensamentos céticos, ali estava: Daniel era um vampiro e eu estava perfeitamente consciente e crente disso, sem hesitar, sem questionar. Aliás, era bastante, uh, apropriado. Como se um indivíduo - no caso dois, contando Lisa - tão incomum e excepcional em várias formas poderia ser humano, meramente um humano? Se fosse, esse era um grande mundo injusto. Tinha seu sentido.
Mas não seria tão fácil assim, nada mais justo que ele (e Lisa, mais tarde) me dessem explicações, não era algo que pudesse ser despejado em uma noite só. Encarei os olhos verdes e um tanto quanto perdidos de Daniel; ele pacientemente havia voltado à posição inicial e me encarava de volta.
- Não sei se eu procuro palavras ou coragem para perguntar o que eu quero, ah... - pensei em voz alta até demais. Olhei significativamente em direção à florestazinha que dava para a praia, do outro lado de onde estávamos. - Entende...? Como é que...?
Eu queria loucamente perguntar o que ele estava fazendo com todo aquele sangue nas roupas e no rosto, mas era meio óbvio...
- Ah sim. - ele disse, entendendo o que eu queria dizer, com um breve aceno. - Você me viu no meu pior estado. Nós, Lisa e eu, não podemos nos alimentar de sangue humano, então somos algo parecido com vegetarianos. Nós bebemos sangue animal... é horrível, se você quer saber.
Não, eu não queria saber.
Provavelmente a minha reação era a mais bizarra o possível. Quer dizer, qualquer pessoa com a cabeça no lugar estaria ou rindo pela insanidade do outro ou gritando de medo. Eu não. Como já disse, era algo plausível. Tantos livros e filmes deveriam ter algo a que se basear, certo? Nada melhor que uma realidade oculta, um segredo obscuro e que poderia custar a vida das pessoas. O que eu não conseguia processar era por que diabos Daniel estava me contando aquilo. Ele poderia inventar uma desculpa das mais mirabolantes - eu fico fascinada muito facilmente, dizer que eu vi coisas demais não era algo muito raro - mas não, ele me disse tudo. E me chamou de meu amor, é claro que eu notei isso. Daniel começou a aparentar desconforto, eu continuava calada e encarando os meus próprios pés afundando na areia branca e fina. Não havia muito o que falar, aliás, o que se fala em algo assim? Uma piadinha espirituosa a respeito do sangue? É claro, é por isso que ele disse que não gosta de filmes de vampiros!, pensei, arregalando os olhos ao ter essa ideia.
- Por favor... - ele começou, me interrompendo do devaneio sobre filmes de vampiros. - , me diz o que eu faço. Quer ir embora? Quer que eu vá embora? Eu peço o Matthew pra te levar, ou então eu...
- Não não. - interrompi, mostrando a palma das mãos. Tomei ar duas vezes e relaxei os ombros. - É que... eu não sei o que eu digo. Você pode muito bem estar se divertindo por dentro, acabou de pregar uma brincadeira em mim, eu me impressiono muito fácil. Mas se isso que você está dizendo é verdade...
- Você sabe que é verdade!
- Ok, ok... Mesmo assim, eu não sei se eu estou agindo da forma certa. Eu não deveria, sei lá, estar com medo? Você falou sobre sentir insegurança, medo, instabilidade, ameaça... Honestamente, não consigo ver ou sentir nada disso. Me desculpe, mas acho que nasci com um ou dois parafusos a menos na cabeça!
Minha voz saía como um pedido de desculpas mesmo, esganiçada e infantil, até indignada. Tudo que ele fez foi jogar a cabeça para trás e rir. Rir mesmo, de se segurar para não cair. Ainda estava incerta sobre as normas socias nesse tipo de acontecimento, mas tinha certeza que rir pra caralho não era exatamente algo dentro do padrão.
- O que foi? - perguntei, cansada de vê-lo daquele jeito.
- Não é nada! - ele ainda estava rindo, mas mais controlado. - Eu é que peço desculpas, , eu subestimei você. Exatamente, tantas pessoas entram em pânico ou ficam descrentes... mas não você. É por isso que gosto tanto de você.
É por isso que gosto tanto de você. É por isso que gosto tanto de você. É por isso que gosto tanto de você. É por isso que gosto tanto de você. Eu tinha 100% de certeza que estava ficando vermelha nas maçãs do rosto, senão roxa.
- Já que você gosta de mim - sorri, tirando essa cara de pau sabe-se lá de onde - Vai ter que me explicar muita coisa.
- O que você quiser. - ele concordou, se levantando da pedra. - Mas acho melhor ir caminhando, aí o sangue flui por todo o corpo, seus batimentos ficam mais ritmados e fica mais fácil correr se você se assustar com alguma coisa que descobrir.
Não sabia se isso era algo para rir ou para levar a sério.
Ele estendeu a mão para mim, eu a peguei, entrelaçando nossos dedos... e assim ficaram. Assim que demos o primeiro passo veio o turbilhão de perguntas.
- Você dorme?
- Sim, pouquíssimo e só quando estou muito esgotado, mas durmo.
- Dorme onde? Armário? Porão? Baú? Caixão?
- Em uma cama, onde mais seria? É por isso que não gosto de filmes sobre vampiros...
- Precisa de convite para entrar em qualquer lugar?
- Na verdade, preciso de convites para em lares, onde humanos comam e durmam. Aí sim, só entro se me convidarem. Exceto em igrejas, não podemos entrar nelas.
- Em nenhuma?
- Vai ver Jesus nunca foi nosso fã...
Depois de um tempo caminhando com Daniel naquela praia minhas perguntas haviam se esgotado, pelo menos as mais bobas e de respostas rápidas. Ele respondera tudo com calma e na maioria daz vezes achava muita graça; o que há de engraçado em querer saber se era seguro andar ao lado de um vampiro, isso eu nunca cheguei a descobrir.
- Suas perguntas são fáceis demais, sabia? - ele ainda sorria.
- É que agora eu quero saber de você. Você mesmo, não sobre vampiros no geral. - abaixei meu tom de voz, começando a ficar com vergonha.
Ele desviou o olhar para a areia, onde ainda estávamos andando. Ficou sério de repente e mordia os lábios com nervosismo. Já estava esperando um não como resposta, mas ele só deu um breve aceno e então eu comecei:
- Você disse que está aqui em um... acordo? Você e a Lisa estão morando aqui, seus criadores deram essa liberdade para vocês dois... Como foi isso? Quer dizer, como vocês conheceram os seus, hum, padrinhos?
Daniel demorou um pouco para responder, ele havia unido as sobrancelhas quase beirando a raiva. Ele deu a entender que queria perguntas melhores que "onde você dorme?" então aí estava.
- Ivan e Helaina escolheram o lugar mais afastado e apagado o possível para nós dois, assim viemos parar em Warrenton. - ele começou. - Adam e Amerie fazem parte de um tipo de sociedade humana que guarda esse segredo, são pouquíssimas pessoas, mas elas estão por aí garantindo que ataques, mortes... tudo isso seja abafado. O motivo deles fazerem isso eu não sei, talvez esconder o que nós somos seja uma forma de proteção.
"Eles conhecem Ivan e Helaina há um tempo - um tempo considerável para humanos, claro - e aceitaram ficar comigo e com Lisa por um tempo. Aliás, eles ainda acham que integração é a chave para a convivência pacífica, eu não poderia concordar mais. Eles são ótimas pessoas, são como dois pais para nós. Dizem que estamos aprendendo bastante e que estão perfeitamente satisfeitos com o nosso sucesso em sociedade. Claro, eles sabem nos controlar, qualquer morte ou acidente suspeito por aqui e eles logo chamariam nossos criadores."
- Então os seus criadores também são a favor dessa integração entre humanos e vampiros?
- Sim, são sim. - ele concordou, balançando a cabeça com firmeza. - Mas isso é muito difícil. Nós não existimos aos montes, a maioria vive afastada de grandes tumultos e se alimentando em lugares pequenos. É praticamente impossível fazer com que essa "filosofia" chegue a todos.
- Muito mais difícil convencer 7 bilhões de pessoas que vampiros existem. - concluí, com um sorriso fraco.
- Não seria se todos fossem como você. - Daniel olhou para mim, abrindo um sorriso torto. - Mas prossiga, agora as perguntas estão interessantes.
Soltei uma risada. Eram várias pessoas dentro de uma só: o Daniel sério, o psicopata (não dá para esquecer), o calmo e aquele era o sincero, aberto. É claro que, quando se é uma criatura mítica cuja natureza é beber sangue humano, a discrição e o instinto de repelir as pessoas é normal. Aquela primeira impressão que todos tinham sobre ele era uma proteção implícita.
- Vamos ver... - sorri, olhando para os lados, vigiando o ambiente da festa lá em cima. Já passavam das duas da manhã e nem Matthew ou Hayden haviam dado nossa falta. - Essa é uma pergunta um pouco difícil, não é a toa que eu quis deixar pra mais tarde. Ah... bom, você já bebeu sangue humano?
- Já, já tomei. - ele respondeu imediantamente. Limpou a garganta e soltou o ar, antes de sorrir. - Eu imaginei que você fosse perguntar isso. Sim, eu já bebi sangue humano, aliás muitas vezes. Eu só bebia sangue humano há 90 anos atrás, foi quando surgiu a ideia de tentar essa integração, por isso Lisa foi criada apenas com sangue animal e eu tive que parar com o humano.
Fiquei em silêncio. É claro que essa resposta era previsível, eu não podia ser ingênua de pensar que ele nunca teria matado alguém. Isso ainda não me deixava com medo, mas eu sentia que deveria ter, ficar perfeitamente à vontade não era uma reação normal.
- Você ainda sente vontade de sangue humano?
Daniel parou de andar. Soltou a minha mão depois de tanto tempo a segurando e colocou atrás do corpo, juntando o outro braço. Ele ficou sério mais uma vez e falou com o tom de voz controlado:
- Não o tempo todo. Na verdade, não qualquer um. Depois de um tempo, qualquer sangue de qualquer pessoa não me atraía mais, só os muito chamativos e especiais. É assim até agora, mas eu tenho que manter o controle, tenho que resistir. Às vezes sentir o perfume do seu sangue é o que me conforma.
- O-o meu? - minha voz falhou e eu arregalei os olhos.
- Por que a surpresa? - ele sorriu, compreensivo. - Você acha que eu saio por aí fazendo amizade com as pessoas se eu não tiver realmente um motivo? Honestamente, eu não quis ser seu amigo à toa. Seu cheiro chama a atenção, é diferente. Caso contrário, eu nem teria olhado para você.
Continuei calada, ele praticamente havia dito que "ah, se não fosse pelos meus criadores, eu provavelmente já teria te drenado porque o seu sangue parece ser bom pra caralho." Agora era a hora certa de sentir uma pontadinha de medo.
- Ah não! Não, não é isso! - ele disse rapidamente, colocando as mãos para frente e voltando a andar. - Não é só pelo seu sangue que eu... É difícil de explicar. Um sangue diferente chama a atenção, e aí eu passei a andar com você e vi que você era boa pessoa, não tem a cabeça vazia como muita gente por aí. Quase ninguém vale a pena hoje em dia, mas você vale.
"Seu irmão também, mas não nesse sentido. Quer dizer, eu não dou a mínima para o sangue dele, mas ele é um ótimo cara. E um ótimo jogador, pra dizer o mínimo. Ele vai ser muito bom no time, só precisa de um pouco mais de disciplina, deu pra ver que ele gosta de ultrapassar os próprios limites."
- Futebol sinceramente é a menor das minhas preocupações. - eu falei, um pouco impaciente com esse assunto. - Mas então quer dizer que, se você pudesse, você realmente beberia do meu sangue?
- Sim, absolutamente. - Daniel respondeu, como se fosse a pergunta mais simples do mundo. - Mas eu não posso, então não há nada para se preocupar. Se algum dia eu ousasse te machucar, meus criadores saberiam e me levariam para longe de Warrenton, ou seja, longe de você. Por que eu iria arriscar, hein? - ele sorriu no final e piscou, tomando a minha mão de volta e ainda andando.
Isso sim era difícil de processar. Eu estava a ponto de concluir que queria mesmo que ele desejasse o meu sangue, mas não, aí já era loucura demais. Enquanto ele estivesse em Warrenton, tornando aquele lugar um pouco mais suportável, eu estaria feliz. E sem medo algum.
- Acho que a gente devia voltar para a festa. - eu comentei, distraída. - Nós sumimos há muito tempo.
- É verdade... - ele concordou, balançando a cabeça. - Não quero que seu irmão pense que te sequestrei ou algo assim.
- Ele provavelmente está distraído com a Hayden, eles vão se ver pouco agora.
Daniel não falou mais nada, só me guiou até a parte mais alta da praia, onde a festa ainda acontecia no seu clímax. Não encontrava nem Lisa, nem Matt e nem Hayden em lugar algum. Mas não faria diferença, eu só queria ter Daniel ali, nem que seja para ficar ao meu lado e reclamar da música ruim que martelava nos ouvidos. Mas ele também logo ficou distante, querendo encontrar Lisa a qualquer momento. Por fim, ela apareceu, alegre demais e acompanhada de um cara loiro, que Daniel fez o favor de amedrontar por ele estar bêbado e dançando com a irmã. Aquilo era bem o tipo de coisa que Matthew faria comigo; eles eram irmãos, mesmo que de um jeito diferente, e sempre se tratariam do mesmo jeito. Qualquer antropólogo ficaria com a vida ganha para estudar o comportamento desse tão peculiar grupo.
- Sem graça. - ela ficava reclamando o tempo todo, enquanto ainda andávamos procurando os outros dois. - Quando é que você vai sorrir um pouco, Dan?
- Nunca, porque eu sou sem graça, sem paciência e daqui a pouco vou ser sem Lisa. - ele respondeu, desviando o olhar para algum ponto mais longe. - O cara devia ser, no mínimo, 5 anos mais velho que você, que tal isso?
- Idade mental não conta? - Lisa sorriu, provocando.
- Não nas leis desse estado.
Olha só esses dois fingindo na minha frente, eu ficava pensando, agora que eu já sei de tudo essa história de idade fica meio boba. Será que ele não pode contar logo pra ela?
- O Matt não trouxe celular? Ou a Hayden? - Daniel se virou pra mim, demonstrando profunda irritação na voz e no rosto.
- E-eu não sei, acho que sim. - respondi, um pouco assustada com a reação dele. Tirei o celular do bolso da minha bolsa e procurei o número de Matthew. Chamou por algumas vezes até ele finalmente atender. - Matt? Onde vocês estão?
- O que? Onde VOCÊS estão? - ele gritava, mal dava para ouvir a voz dele pelo barulho do outro lado.
- Ao lado da mesa de bebidas, a gente ainda está na festa. - respondi, olhando em volta. - Dá pra me falar onde vocês estão?
- A gente já chega. - ele disse rapidamente e logo desligou.
Lisa sorria com superioridade, como sempre. Ela provavelmente ficara convencida e prepotente ao ser transformada em vampira porque eu mesma passaria direto por ela sem nunca perceber algo a mais.
Ficamos mais vinte minutos parados no mesmo lugar esperando Matthew e Hayden, até que eles chegaram no meio da multidão. Daniel parecia mais calmo e amigável, ele era o que mais queria voltar para o hotel.
- A gente se perdeu. - começou Hayden, assim que eles apareceram na nossa frente. - Achamos que vocês já tinham voltado, nós demoramos?
- Não, na verdade é so o Dan que quer ir embora. - respondeu Lisa, apontando para o irmão.
- Lisa, eu já falei várias vezes - Daniel falou, olhando para ela com impaciência - Hotéis de praia ficam fechados durante a madrugada, se nós não formos embora agora todos vamos dormir na rua. Qual a dificuldade de entender?
- Você é insuportável. - ela cantarolou sem se importar com a raiva dele, e depois apontou para mim - Ei, onde vocês dois estavam? Estavam juntos? APOSTO QUE SIM!
Daniel pegou Lisa pelo braço e começou a andar com ela. Eu fui atrás, seguida por Matt e Hayden juntos. O hotel não ficava longe da praia, só andamos um quarteirão e chegamos lá, onde as luzes da entrada realmente estavam apagadas. Lisa bateu no vidro e uma mulher apareceu, a mesma recepcionista que nos recebera de manhã, e ela destrancou a porta, abrindo-a com raiva e dizendo:
- Entrem logo, nós acabamos de fechar. Eu não posso ficar abrindo o hotel a madrugada inteira para vocês.
Todos passaram sem dizer uma palavra, mas sorrindo amarelo como se pedissem desculpas. Eu fui a última a a entrar, dizendo obrigada para a mulher, que só revirou os olhos e trancou a porta mais uma vez.
Matt e Hayden fora para o quarto deles e Lisa e eu fomos para o nosso. Eu ainda não sabia se deveria dizer que eu sabia de tudo, que Daniel havia me contado, mas cada fingimento dos dois na minha frente começava a parecer ridículo. Daniel andou em direção ao deck do hotel, dizendo que ainda estava sem sono para dormir.
- Pode me falar, onde vocês estavam? - Lisa perguntou assim que eu fechei a porta do quarto, enquanto ela ascendia as luzes.
- Quem, eu?
- Não, minha mãe morta. - ela respondeu, piadinha ruim demais para o meu gosto. - Você e o Dan, eu sei que você não ficou andando pela festa sozinha.
- Mas eu fiquei! - e não era mentira, eu fiquei andando sozinha por um bom tempo na festa, até que decidi ir para aquele canto da praia... - Eu só esbarrei no seu irmão um pouco antes de encontrarmos você. Aliás, quem era aquele cara?
Ela riu alto e se jogou na cama, abrindo a janela atrás de si. Então eu havia conseguido que ela desviasse o assunto, muito bom.
- Eu nem sei o nome dele. - ela sorria. - Só sei que eu estava parada em uma outra mesa de bebidas e ele chegou dizendo que eu era a cara da paixão platônica da turma dele no ensino médio. - depois sua expressão se transformou em puro tédio e irritação. - Mas é claro que o Daniel tinha que estragar... uma pena, ele parecia tão bom.
É claro que ela estava se referindo ao sangue dele, um sangue muito bom. Eu só assenti, fingindo que concordava. Andei até a minha cama e peguei meu pijama embaixo do travesseiro, vesti e me deitei, apagando o abajur ao meu lado.
- Mas você já vai dormir? - Lisa perguntou, indignada.
- Eu não nasci para ir em festas, Lisa. - ri, me virando na direção da cama dela.
- Ah não! Anda, conversa comigo, eu estou sem sono nenhum...
Me limitei a apagar a luz e cobrir o rosto com o lençol branco. Lisa soltou um estalo com os lábios de reprovação e apagou seu abajur também. Só deitada na cama que eu percebi o quanto estava cansada, não só fisicamente. Comecei a me sentir mais leve e relaxada, mas na verdade também não estava com sono. Me virei para encarar o teto do quarto, respirando fundo e revivendo toda a noite mentalmente.
[N/A: Dê o play na música agora!]
Eram quase 5 da manhã quando eu finalmente vi Lisa na cama ao lado, os olhos tranquilamente fechados. Minha cabeça parecia afundar no travesseiro, minhas pernas e braços estavam dormentes e pareciam levitar... era uma sensação estranhamente conhecida para mim, mas eu não sabia de onde. Era como se eu estivesse pairando no ar, meu corpo estava na cama, mas minha mente estava no alto, o inconsciente contra a matéria. Eu tinha que me levantar.
Embora estivéssemos na parte mais quente do estado, eu sentia o vento frio do começo da manhã bater em mim. A luz não era muito escura e fazia tudo parecer meio cinza, como antes do nascer do sol. De longe eu escutava as ondas quebrando na praia, mas o hotel ficava um pouco longe do mar. Talvez fosse o silêncio mortal ali, eu não escutava nem mesmo a minha respiração... talvez não estivesse respirando mesmo.
Mas eu não estava sozinha.
- Não foi dormir?
Dei mais alguns passos e senti o chão de madeira estalando embaixo de mim. Comecei a sentir frio, já que só estava usando o pijama de calor branco e amarelo.
- ?
Eu estava andando na direção daquela voz que já era bem conhecida, não ameaçadora, nem psicopata ou séria. Era normal, preocupada e confusa. Aos poucos eu consegui enxergar melhor, ali ele estava. Havia trocado de roupa. Agora usava uma camisa branca simples e uma calça jeans azul escura. Combinava perfeitamente com os olhos verdes e o cabelo loiro escuro que agora já estava maior.
- Eu não acho que você é alguma aberração, monstro ou... ou qualquer coisa do tipo. - minha voz saiu quando eu já estava bem perto dele.
- Isso é... muita gentileza da sua parte. - ele sorria, sem muito saber o que fazer. - Olha, daqui eu estou vendo que você está morrendo de frio.
- Eu já vou entrar. - respondi - Eu só queria ver onde você estava.
- Bom, aqui. É uma boa vista, pena que o sol nasce do outro lado. Eu queria poder ver, sabe como é, sem precisar do anel.
Ele levantou a mão e analisou o pontinho vermelho sobre a prata. Agora sim ele tinha um grande significado. Daniel abaixou o punho e segurou a minha mão, que estava em cima da madeira que contornava o deck. O toque dele já não era tão frio assim, mas ainda provocava um choque.
- Quando eu falei que uma dia você teria um desses... era brincadeira. Eu não desejo essa vida, essa condição, como queira chamar, para ninguém. - ele disse, dando mais um passo na minha direção. Agora eu podia olhá-lo diretamente nos olhos. - E me desculpe se te assutei ontem, eu só... achei que você merecia saber.
- Tudo bem. Você deveria contar à Lisa. Essa atuação de vocês dois juntos na minha frente começou a ficar um pouco bobinha. - eu sorri, olhando para nossas mãos juntas.
Daniel jogou a cabeça para trás e riu com vontade. Ele ainda sorria quando eu o olhei de volta. A luz ali ainda era muito fraca, mas estávamos próximos o suficiente para que eu pudesse enxergar todos os seus detalhes.
- Pode deixar... quando chegarmos em Warrenton eu conto para ela.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, apenas nos olhando ocasionalmente. Seu sorriso foi diminuindo à medida que seus olhos pareciam ver através de mim. Quando senti o sangue chegando no meu rosto, soltei sua mão e fiz menção de me afastar.
- Eu acho que vou pro quarto. Se a sua irmã acorda e não me vê por lá...
- Lisa? Acordando antes das cinco da manhã? Não, isso nunca aconteceu em 90 anos, pode acreditar. - ele sorriu.
- Ah... mesmoa assim, acho que eu deveria ir.
Fechei os olhos e estava me virando na direção oposta a ele, mas fui impedida pela sua mão mais uma vez. Ele me segurava pela cintura e me puxou delicadamente para ainda mais perto de si, eu não teria a menor chance de evitar esse contato.
Eu podia sentir a respiração pesada de Daniel batendo no meu cabelo. Enquanto sua mão direita ainda estava na minha cintura, a outra mão foi até o meu rosto, o tão corado e ruborizado, e tocou-o levemente com a ponta dos dedos. A mesma leveza que eu senti alguns momentos antes estava voltando com muito mais intensidade; o choque que o toque frio causava já não tinha tanta importância. Ele me olhava com uma expressão concentrada, as sobrancelhas unidas e o nariz quase tocando o meu. Pisquei pela última vez e fechei os olhos finalmente. Antes que pudesse me mover, ele havia encostado os lábios muito vermelhos nos meus pela primeira vez. Para a minha surpresa, não eram frios. Eu provavelmente estava ficando vermelha de novo, meus batimentos cardíacos estavam tão altos e rápidos que me davam vergonha.
Ficamos só daquele jeito por alguns segundos, os lábios pressionados um contra outro. Ele me trouxe para mais perto com as duas mãos, eu passei meus braços em volta de seu pescoço e nos beijamos de verdade. Quando senti sua língua encostando na minha tive certeza que eu parara de respirar e meu coração já parecia dar pulos. Nos movíamos bem devagar, ele provavelmente tinha medo de me machucar, mas isso não era um problema. Passei meus dedos entre seus cabelos e senti ele sorrindo durante o beijo. Sorri junto, mas sem soltá-lo. Não era só o melhor beijo que eu recebera na minha vida, era muito mais. Não havia Lisa, nem Matthew, Hayden, recepcionista do hotel... Era só ele e eu.
Intensificamos o beijo, e eu comecei a ficar sem ar, mas isso também não importava muito. Seus lábios envolviam os meus e sua língua ainda brincava com a minha... então oxigênio não parecia muito relevante naquele momento.
Depois de alguns minutos ele me soltou, mas ainda segurava meu rosto com uma mão. Um sorriso começava a abrir aos poucos e eu ainda tentava recuperar meu fôlego. Eu devia estar muito mais vermelha do que pensava, teria de tratar essas minhas reações exageradas logo.
- Olha, isso não é o seu sangue falando. - ele disse, com a voz baixa. - Não são os meus instindos me dizendo para me aproximar de você. Se é que eu ainda tenho alguma parte humana vivendo dentro de mim... foi ela agora, fui eu e verdade. Por você, .
- Eu acredito em você, eu só não sei se estou racional o suficiente... - sorri sem graça, e ele começou a rir baixinho. - Por mais que eu queira ficar aqui... e você não tem ideia do quanto eu quero... eu acho que eu deveria voltar pra lá. Para... pensar um pouco mais.
- Tudo bem... eu também acho que vou dormir um pouco. Essa noite foi bem puxada.
Nos encaramos por alguns breves segundos, até que ele me beijou mais uma vez, mas foi muito rápido. Tão rápido que eu mal percebi o que tinha acontecido, mas sabia que tinha sido muito bom.
- Pessoas como você não aparecem sempre. - ele se explicou, me soltando totalmente. - Eu tenho que aproveitar a oportunidade.
Dizendo isso, ele colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha e voltou à sua posição inicial, de antes de eu chegar ali. Disse um boa noite e se virou de costas, mas ainda dava para ver o seu sorriso. Dei meia volta e andei na direção da porta de vidro, entrando no corredor e parando em frente à porta do quarto. Respirei fundo algumas vezes antes de entrar. Eu sentia meu coração bater rapidamente, eu mal havia voltado a respirar direito. Precisava me acalmar ou Lisa ia perceber que eu estava totalmente agitada.
Quando estava mais normal, abri a porta e entrei no quarto, tomando cuidado para não acordá-la. Ela estava na exata posição de quando eu havia saído do quarto, como uma pedra. Ela deveria dormir mais que Daniel, já que era mais nova. Essa era uma dúvida que eu ia tirar com os dois assim que ela soubesse que ele havia me contado tudo. E tomara que fosse em breve.
Me deitei mais uma vez na cama, agora mais feliz do que nunca. Fechei os olhos quando o primeiro raio de luz amarelada invadiu as janelas.
- Vocês estão muito estranhos.
Abri um olho só e olhei na direção de Lisa, no banco do passageiro do carro de Daniel. Ela estava virada para trás e me encarava com as sobrancelhas erguidas, o jeitinho metido já começava a me irritar. Maldita hora que recusei ir com Matt e Hayden no carro logo atrás. Daniel continuava calado e concentrado na estrada, não que fossemos passar mais que uma hora até Warrenton.
Não me dei ao trabalho de responder, só fechei o olho novamente e continuei concentrada na música que tocava nos meus fones de ouvido. Lisa devia estar me fuzilando com os olhos ainda, mas não me importei; eu ainda estava cheia de coisas na cabeça, muito assunto pra pensar, informações para processar... e não podia evitar de pensar em Daniel, logo ali no banco da frente. Pelo menos, até onde ele me contara, vampiros não liam mentes, então eu estava bem.
- Ei! - ouvi a voz dela mais uma vez. - Ninguém vai falar nada?
- Sim. - respondeu a voz séria e distante de Dan. - Cala a boca, Lisa.
Logo depois escutei ela estalando os lábios impacientemente e então ficou quieta. Ainda não queria abrir os olhos, naquela parte da estrada o ar úmido e frio já tomava conta e eu ainda queria guardar a lembrança do último raio de sol em Sunset Beach. Logo estaríamos em Warrenton e isso me deprimia até demais.
Daniel mal tinha olhado para mim quando nos vimos de novo pela manhã. O mais próximo disso foi um a Lisa já está pronta? ou pode deixar que eu pego sua mala. Só isso. Nem um bom dia, um sorriso, nem me chamou para conversar sobre... o que tinha acontecido antes do sol nascer. Nadinha. Claro que eu estava criando expectativas absurdas do tipo que ele iria sorrir de orelha a orelha quando me visse, andaríamos por aí como um casal feliz e tudo ficaria bem.
Esse é o problema de quem assiste filmes demais; o filme termina, a gente acorda e encara a triste realidade de, sei lá, lavar a roupa. Isso, a frustração que eu senti quando Daniel praticamente me ignorou foi a mesma de quando eu assistia todos os filmes de ação, guerra e, quando acabavam, eu tinha que escutar Debra me mandando lavar roupa. Provavelmente seria o que ela me mandaria fazer assim que chegássemos em casa.
Mais vinte minutos e chegamos em Warrenton. Mal abri os olhos e já vi as janelas vitorianas da minha casa, todas fechadas e o carro de Gavin não estava na garagem. Então alguns momentos de paz até que eles voltassem.
Desci do carro e fui direto ao porta malas, mas Daniel foi mais rápido e já havia pegado a minha mochila de viagem. Entregou pra mim com o que eu achei que era a mesma cara impassível de sempre. Assim que eu me virei para contornar o carro ele segurou meu braço com firmeza e olhou para os lados, certificando-se que Lisa ou meu irmão ou Hayden não estariam olhando.
- Foi muito bom.
Foi muito bom. Só isso?
- O que isso quer dizer? - perguntei.
- Quer dizer que a gente precisa conversar, mas não hoje. - ele respondeu, soltando meu braço. - A gente se vê depois do ano novo, , você merece uns dias livre de mim pra poder pensar.
Dito isso, ele piscou e sorriu torto, dando a volta no carro e indo ao encontro de Matthew para se despedir. Deu pra ouvir algo relacionado a futebol, então certamente não me interessava. Andei até a janela do passageiro onde Lisa ainda estava - é claro que ela não se incomodaria em descer.
- Tchau Lisa.
- Você é companhia de quarto mais estranha que eu já tive. - ela apontou para mim como se me acusasse, e depois mostrou um sorriso infantil e divertido - Mas foi divertido, não foi?
- Claro, claro. - concordei, também sorrindo. - Mas até eu conseguir acompanhar o seu ritmo vamos levar muito tempo.
- Foram anos de prática. - ela riu. distraída. Sim, anos de prática, disso eu não duvido. - Um dia você vai sair só comigo, e não com o sem graça do Dan... Claro, pra você ele não deve ser tão sem graça assim.
Eu sabia que ela não conseguiria manter o tom e a cara de adolescente normal e legal por muito tempo. Logo ela deu aquele sorriso entediado e cheio de significados ocultos que sempre me irritava. Revirei os olhos e acenei na frente de seu rosto.
Daniel e Matthew haviam se despedido então, Hayden já estava pendurada em seu ombro e eu não via a hora de deitar na minha própria cama. Quando finalmente abrimos a porta eu quase pensei que amava aquela casa. Arrumei forças para subir a escada correndo e entrei no meu quarto. A cama estava arrumada e com lençóis novos, agradeci Debra mentalmente enquanto estava deitada com a cara no travesseiro limpo. Senti Sunny subir em cima de mim e mexer no meu cabelo, como ela sempre fazia quando me via deitada.
- Olá pra você. - eu disse, tirando ela de cima de mim.
Ela já havia feito isso uma vez, mas eu não me lembrava direito e nem sabia o motivo. Sunny chegou perto de mim e parecia sentir um cheiro muito forte, cada vez que ela encostava na minha pele, dava um pulo para trás e mostrava os dentes fazendo aquele barulho que os gatos fazem. Quando vi, suas unhas estavam para fora e ela tinha os olhos de cores diferentes arregalados. Eu me sentei para observar melhor o que ela fazia, mas ela deu um salto e saiu correndo do quarto. Eu sabia que ela já tinha agido assim comigo, mas lembrava para lembrar quando e o porquê.
Um vento frio bateu onde eu estava e parecia vir do corredor. Andei por ele até chegar na janela que dava para os fundos da casa, estava aberta e as cortinhas voavam um pouco. Fechei para conter o ar gelado e...
É isso.
Sunny havia feito aquilo comigo na mesma noite que eu voltei da caminhada (se é que aquilo foi uma caminhada, ou foi coisa da minha cabeça) bizarra pela estrada e pela floresta. Eu havia chegado em casa sabe-se lá como e Sunny saiu correndo quando me viu. Eu não sabia dizer exatamente o que tinha acontecido comigo naquele dia, mas não era algo bom. E agora mais uma vez.
- !
Dei um pulo. Hayden me gritava lá de baixo sobre o som da TV ligada. Gritei de volta e desci as escadas, Sunny passou por mim muito desconfiada e correu até o meu quarto novamente.
Antes que eu chegasse na sala escutei outro carro parando na garagem, agora eram Gavin e Debra. Logo os dois entraram sorridentes por nos ver em casa mais cedo.
- E então, como foi o primeiro Natal longe da família? - Gavin perguntou, colocando algumas sacolas de supermercado na mesa da cozinha (finalmente resolveram comprar comida de verdade ao invés de pedir por telefone quase toda noite).
- Foi bom. - respondi, ajudando Debra a guardar o que havia nas sacolas. - Mas eu não sei aproveitar festas, então deve ter sido melhor para a Hay e o Matt.
- Se é assim, no ano novo você aproveita bem! - sorriu Debra, ocupada com as compras também.
- Por que? Pra onde a gente vai?
Eu já esperava uma resposta. Era um pouco óbvio, para falar a verdade.
- Casa do Billy! O pessoal de lá vive perguntando por você e pelo seu irmão. - comentou meu pai, radiante feito criança assistindo Teletubbies - Principalmente o Jake.
Sorri de volta, mas de nervosismo. Ano novo com os garotos da reserva não era exatamente o tipo de plano que eu faria, mas era o melhor que Warrenton podia oferecer.
O melhor não, o segundo melhor.
Daniel
Veja bem, você assiste Anjos da Noite, Nosferatu, Drácula com Bela Lugosi, Drácula de Bram Stocker, Entrevista com o Vampiro, True Blood, Vampire Diaries e com o maior ceticismo do mundo ainda afirma que vampiros não existem. Você obviamente não sabe do que está falando. Principalmente se nunca viu minha irmã puta da vida, gritando e se controlando ao máximo para não voar no meu pescoço ou atirar os móveis em cima de mim. E com fome.
Ela tinha sido o maior problema da minha vida pelos últimos 90 anos, pelo menos até aquele momento.
- VOCÊ TEM MERDA NA CABEÇA? - ela gritava e andava em círculos pela sala impecável de Amerie, enquanto eu preferia prestar atenção no PSP nas minhas mãos. - QUAL PARTE DO "NUNCA CONTE PRA NINGUÉM" VOCÊ SE ESQUECEU? VOCÊ TEVE MAIS DE 200 ANOS PRA ENTENDER ESSA SIMPLES REGRA DE SOBREVIVÊNCIA E ESTRAGA ISSO EM UMA NOITE?
Eu desviei os meus olhos do jogo e olhei bem para ela. Lisa era só uma vampira-criança, o que a fazia muito instável e difícil de lidar. O fato de ter "cuidado" dela por quae 70 anos longe dos nossos criadores de verdade não exatamente me fazia uma pessoa responsável. A gente sempre se mudava por causa dela, porque Lisa não se controlava direito e acabava com um desejo irrefreável de matar alguém. E agora eu tinha feito a merda, tinha contado simplesmente o segredo mais importante das nossas existências para uma humana.
- Ela me viu com sangue na roupa, com as presas pra fora... você queria que eu fizesse o que? - perguntei, levantando os braços querendo parecer inocente.
- Por que não matou ela?
- Não foi você mesma que a chamou para a festa? Até disse que ela era a primeira humana que você tinha gostado de ver comigo!
- MAS EU GOSTO MAIS DE MIM! - ela gritou, o som ecoando pela casa. Ela se sentou ao meu lado, o cabelo loiro já um pouco bagunçado de tanto ela se movimentar. - Dan, se os Darius descobrirem que você contou pra alguém, eles vão procurar nossos criadores . E isso significa morte verdadeira pra nós dois e pra ela. É isso que você quer?
Me virei, contra a minha vontade, e olhei pra ela. Os Darius ficavam com nós dois porque tinham um acordo com os nossos criadores e acreditavam cegamente que Lisa e eu não nos alimentávamos de humanos. Se eles descobrissem que sabia do nosso segredo, é claro que nossos criadores seriam informados. Eles tinham todo o direito de nos matar. É claro que eu não queria que a Lisa morresse, muito menos eu - principalmente sem sequer ter provado do sangue da . Isso sim seria um desperdício.
- Você sabe que não é isso que eu quero. - admiti. - Olha, eu nem gosto dela. Lisa, pra você é diferente, tudo que você consegue é pensar nos humanos como grandes sacos de sangue pra se alimentar na calada da noite.
- O que? - ela se levantou mais uma vez e já estava aumentando a voz. - EU que vejo eles como puro alimento? Se não fosse pela MINHA humanidade ainda restante, você nem perceberia a existência dela. Eu que tive sentimento o suficiente pra dar oi, porque eu ainda tenho a MERDA de um coração!
- Você fala como se isso fosse muito bom. - eu sorri, mas logo me arrependendo.
Então ela veio pra cima de mim. Ideia mais do que estúpida; antes que ela pudesse me encostar eu já tinha me levantado a jogado na parede só com uma mão. Por mais que ela me forçasse a ser agressivo, eu não gostava de machucá-la. Por mais irritante, difícil, temperamental e criança que ela fosse, ela ainda era a minha irmã de sangue.
- Não faça isso de novo, por favor. - pedi, voltando pro sofá. - Você não entende, Lisa. Você é que não percebe, mas nunca vai conseguir ser amiguinha de uma humana. Esse resto de "humanindade" - fiz aspas com os dedos - que você diz que tem, é só você mesma querendo ir contra o que é. Seu coração nem bate.
Lisa ficou calada, os olhos arregalados cheios de raiva. Aguardei enquanto ela respirava fundo e se acalmava, apertando as mãos uma em volta da outra. Eu sabia exatamente que ela ainda tentaria me contrariar, mas logo ia largar essa ideia estúpida de ser amiga da - além do mais, ela não teria nem tempo de se aproximar dela, se dependesse de mim.
Depois de alguns minutos, ela se acalmou. Claro, eu ainda não havia contado tudo sobre a noite na praia, mas tendo em vista a reação que ela teve, era melhor nem mencionar. Ela se encostou no sofá, soltando o ar dos pulmões e olhando pra cima. Me virei para vê-la melhor e ela riu, então estava tudo bem.
- Você acha mesmo ela legal, no tipo "vamos ser amigas"? - perguntei, só pra vê-la sorrir.
- Dan, você sabe que eu não sou de admitir esse tipo de coisa. Eu consigo ser amiga da Ellie sem nunca ter pensado nela como alimento.
- A Ellie? Da escola?
- De onde mais seria?
- Eu sei porque você gosta dela. - eu observei, sério. - Ela é exatamente igual a você antes de te transformarem. Exatamente igual, até fisicamente. Eu não entendo a ...
- Por que é que você quer tanto ela? - Lisa perguntou, me desafiando.
Desviei o olhar. Aquilo era o que me matava por dentro, não poder tê-la de imediato, ter que ganhar a confiança, ter que ser convidado para entrar na casa dela... Não poder apenas matá-la enquanto ela fica inconsciente toda maldita noite.
- Fala logo! - Lisa em chamou a atenção, impaciente.
- Não adianta eu te explicar, você é nova demais pra entender. - repeti, mas ela só revirou os olhos e continuou me encarando, esperando uma resposta melhor. - É sério! Você só se alimenta de humanos porque é sua necessidade. Você só deseja o sangue pelo sangue, eu não. Eu vou muito mais além que isso; ela tem alguma coisa de diferente. Só o fato de eu não poder... ah, não adianta.
- Você não pode o que? - ela insistiu - Você não pode simplesmente tirar ela de casa por uma noite, mordê-la, pegar um pouco do sangue e apagar a memória dela?
- Essa é a parte complicada.
Eu sabia que ela não ia entender. Lisa ia naturalmente ficar curiosa demais e estragar tudo.
- Não, não posso. - suspirei. - Ela é... Bom, tem aquela... alcatéia? Alcatéia ao redor dela.
- O que? - Lisa deu mais um grito. Eu sabia que não era boa ideia contar tudo.
- Calma, me deixa terminar. - pedi, impaciente. - Um transmorfo teve aquela coisa de amor à primeira vista, proteção eterna, devoção e blá blá blá.
- Imprinting? Um deles teve um imprinting com ela? Desde quando ela conhece eles?
- O pai dela nasceu lá, mas não é um deles, entende? - continuei. - Assim que eu senti o perfume do sangue dela pela primeira vez naquele dia, eu já comecei a planejar como pegá-la. Mas é claro que eu tinha que esperar, era o primeiro dia da família dela aqui.
"Eu vi a família dela voltando daqueles lados, no sábado depois que a conhecemos. Naquela noite eu fiquei parado na janela dela, mas aí o lobinho apaixonado apareceu. Só de ver a cara de choro e submissão dele para a imagem dela na janela me deu nojo. Ficou óbvio que ele teve o imprinting"
- Mas que má sorte a sua. - Lisa riu, apontando pra mim. - Ou que má sorte a dela. Um vampiro e um lobisomem... Se bem que ela estaria bem melhor com ele do que com você, que é sentença de morte. É, ela merece coisa melhor que você...
- Olha, a gente pode perder tempo com as suas divagações de melhor amiga da humana ou eu posso te contar a história toda, você quem sabe. - apontei, dando a última chance.
- Chato. Anda, termina de contar.
Revirei os olhos. Eu não gostava nem um pouco de como Lisa estava reagindo. Ora ela se comportava como uma vampira mesmo - sem se importar muito com o que acontece com os humanos -, ora fazia o papel da amiguinha preocupada. Eu só queria saber qual desses papeis ela faria quando eu tivesse nas minhas mãos.
- Como eu disse, na noite em que eu fui vigiá-la eu vi o lobo parado em frente à janela do quarto dela. Eles só andam juntos, não são individuais como nós. Se eu tentasse chegar mais perto, eles conseguiriam me ver e ficariam por ali vigiando a janela noite após noite. Eu já tive experiências com lobos transmorfos, não é algo que eu goste de admitir também, mas sou presa fácil. - suspirei, apertando o punho direito para conter a raiva que se formava. - E tem mais. A sua amiguinha é mesmo um tanto especial: ela tem um tipo de sonambulismo. Não desses retardados que a pessoa só sai andando enquanto dorme, é bem diferente.
- Bom, alguma coisa de excepcional ela tinha de ter mesmo. - Lisa riu pelo nariz, debochada. - Você nunca foi de querer qualquer uma.
- Eu tenho bom gosto. - sorri, deixando de propósito os dentes caninos aparecerem, ela sempre achava graça. - Ela entra num estado de sonho lúcido, não acontece só quando ela dorme, é quando ela está relaxada ou distraída. Ela começa a deixar o próprio corpo, o espaço onde está e começa a viver o que está dentro da própria mente. - parei para avaliar a expressão de Lisa, pelo visto ela estava acompanhando com atenção. - Eu descobri isso quando a segui saindo de casa, há uma semana atrás. Ela seguiu para a rodovia, perto do rio Necanicum, e foi andando sozinha. Primeiro pela trilha, depois entrando pela floresta e quase sumindo de vista. Ali eu já tinha decidido que ia pegá-la, qualquer um ia pensar num maníaco do parque ou coisa assim, certo?
"Eu chamei ela duas vezes, chamei alto, mas ela não escutava. Só caminhava sem rumo e olhava pra frente, os olhos meio fechados e que quase não piscavam. Queria fazer um drama, sabe? Assustar, amedrontar e deixá-la em desespero."Comecei a sorrir com a lembrança, Lisa revirou os olhos com pesar. Só porque ela era uma criança que ainda não entendia o prazer de sentir alguém pedindo misericórdia, mesmo sabendo que vai morrer e que não há nenhum tipo de escapatória.
- Me aproximei e ela acordou. Do nada! Simplesmente piscou e se assustou. Não chegou a me ver, mas acho que me sentiu, sabe? Ficou claro que ela não tinha a menor ideia de como tinha ido parar ali, ela só corria em círculos ou caía pra todo lado. - essa era uma lembrança que eu tinha guardado com, ah, algo que eu posso chamar de atenção; ver xingando e amaldiçoando cada pedra do caminho era divertido e tinha até seu toque adorável. - E quando eu achei que poderia assustá-la ainda mais, o maldito lobo apaixonado e os outros apareceram. Deviam ser uns dois ou três, no máximo, mas é claro que eu não ia me arriscar. Quando eles me viram, tentaram distrair para a rodovia, longe da floresta, enquanto eu a puxava pelo lado contrário.
"Ela realmente ficou doida. Eu chegava por trás e a assustava, os lobos passavam correndo ao redor dela... a coitada sem ver nada. Foi engraçado, me entreteu tanto que nem pensei em parar, atacá-la de vez ou fugir dali. Eu ouvi mais um chegando, e era definitivamente maior que os outros, então fui embora e eles tentaram vir atrás, mas eu desapareci. E ela deve ter ficado por lá, tentando entender o que aconteceu."
- Por isso você foi na casa dela aquele dia? - ela finalmente abriu a boca, depois de tanto escutar. - Quer dizer, isso tudo aconteceu quando você disse que tinha ido lá para dar a notícia pro irmão dela, sobre futebol ou sei lá o que, é isso?
Assenti, confirmando. Ela voltou a se recostar no sofá, encarando o vazio, provavelmente ainda raciocinando. Girei meu anel de prata no dedo, queimou um pouco. havia perguntado sobre ele e eu tinha dito que era de família. Tudo bem, não deixava de ser "família", uma vez que os criadores tem que fazer um para cada descendente e colocar uma gota do próprio sangue num cristal, como se fosse uma identidade. E era aquilo que nos deixava sair durante o dia sem queimar, era o que controlava nossa força extremamente superior à dos humanos, uma forma de não nos destacar. E foi uma das primeiras coisas que ela havia reparado em mim, e eu não precisava ter dito que um dia ela ganharia um.
- Meu irmão, você está um pouco ferrado.
- Por que?
- Minha querida amiga e aparentemente cunhada - ela sorriu, me provocando - já sabe da verdade toda. Ou quase toda, você chegou a comentar sobre os lobisomens pra ela? - assenti negativamente e ela continuou. - Bom, uma hora ou outra ela vai ver o transmorfo de novo, e ele vai acabar contando a verdade sobre ele também. Quem você acha que ela vai preferir: o lobisomem que promete devoção para toda a vida, amor verdadeiro e proteção ou o vampiro super velho, ruim, egoísta e que se alimenta de humanos como ela?
Bom, era essa a parte que eu não queria contar pra ela.
- Eu disse a ela que a gente se alimenta de sangue de animais.
Lisa congelou. Os olhos arregalados ficavam vermelhos com o sangue pulsando de raiva.
- Você o que?
Opa.
Antes que eu pudesse prever, ela conseguiu chegar até mim com as mãos no meu pescoço, pronta para me arranhar. Ela chegou a me derrubar no chão, mas por poucos milésimos de segundos, até que eu desse um pulo e a tirasse de cima de mim com um empurrão. Ela caiu do outro lado da sala, derrubando a pilha de livros e revistas de jardinagem de Amerie, quase tocando a parede.
- Quer fazer o favor de NUNCA MAIS tentar me bater? - eu gritei, me levantando enquanto ela ainda estava caída. - Se você quebra um mínimo copo nessa casa o Adam vai gritar até meus tímpanos estourarem, e contra ele eu não posso fazer nada!
Esperei ela se levantar mais uma vez e se acalmar. Ela só ficou em pé bem onde estava e ficou me olhando, segurando com força o anel de prata no dedo.
- Por que você disse isso pra ela?
- Ah claro, ia realmente ajudar demais se eu dissesse: ei, olha só, eu sou um vampiro e eu não vou tentar dar uma de bonzinho, eu me alimento de gente mesmo, aliás, o maior prazer da minha vida seria se você gentilmente me deixasse matar você para provar seu sangue, você se importa?, olha só Lisa, acha mesmo que ela ia confiar em mim? Em você?
- Imbecil, isso significa que eu vou ter que me alimentar longe daqui, de animais de verdade, você acha que eu consigo? - ela gritou, e depois disso parei para pensar se estaríamos brigando alto demais para os vizinhos escutarem e começarem a tirar suas conclusões.
- Em trinta segundos você chega em Astoria, Cannon Beach, ou qualquer cidade do condado. - respondi, eu já havia pensado em tudo que pudesse contribuir para a farsa dos vampiros vegetarianos.
Eu honestamente não achei que ela fosse considerar esse o maior problema, e sim o fato de eu ter contado para outra pessoa o nosso segredo. Mas era compreensível, Lisa não sabia se controlar direito quando estava com um humano sem me ter por perto, ela já havia drenado seis pessoas em Warrenton, então eu tive que arrumar umas mortes muito peculiares, só pra não tirar essa cara de cidade pacata que sempre foi. Beber sangue de animais para que nada soasse ou parecesse suspeito era demais para ela, aí era uma questão de natureza e necessidade.
- Você sabe que eu vou te ajudar. - me aproximei dela, lhe dando um abraço pelos ombros, enquando ela abaixava a cabeça e respirava de forma pesada. - Eu sempre ajudei. Adam e Amerie vão ficar felizes que, pelo menos por um tempo, nós vamos nos manter mais... saudáveis.
Lisa riu. Eu já havia me acostumado ás mudanças repentinas de humor: a Lisa debochada, a má, a egoísta, a engraçada, a fofa, a criança, a prestativa, a sensível... Ela fora assim pelos últimos 90 anos e seria assim pra sempre.
- Dan... - ela me chamou, ainda com a cabeça abaixada, a voz triste e cuidadosa - Então esse é o plano? Se passar de boa pessoa para a , se aproximar da família, entrar na casa dela sem convite... e depois pegá-la? Pegá-la antes que o lobo transmorfo chegue?
- É exatamente isso, pequena.
Ela parecia raciocinar por alguns segundos, sem dizer nada. Algo me dizia que e não ia gostar das conclusões que ela tiraria.
- E, Dan, eu acho que essa é uma pergnta um pouco idiota... eu fiz muitas coisas idiotas hoje, aliás. Mas... você quer só isso com ela? Só isso mesmo? Drená-la?
- Como assim? - me afastei do abraço, levantando se rosto com as mãos para olhá-la nos olhos.
Ao contrário do que eu pensei, ela não estava exatamente triste. Tinha um sorriso apertado nos lábios, uma expressão de conformidade, como se já soubesse que algo ruim ia acontecer, mas que ela não pudesse fazer nada a respeito.
- Bom, eu gosto dela. Mesmo que eu goste muito mais de sangue humano, da emoção toda de ser vampira e tudo mais, eu acho que vale a pena viver com ela, com a . E eu acho que... eu acho que você gosta dela, ou está gostando, ou sente alguma coisa além de desejo. Vamos admitir, se você só quisesse o sangue, já teria arrumado um jeito de conseguir logo, não ia ficar se aproximando e fazendo esforços. Eu te conheço, não adianta negar. Ela pode ter o melhor sangue do mundo, disso eu não duvido, mas que você não quer só isso dela, isso é verdade.
Ela se afastou de mim e foi andando em direção às escadas, logo chegando em seu quarto.
De todos os lados que a minha irmã tinha, definitivamente, o que eu mais odiava era o lado Lisa humana.
Por algo que eu estava chamando de milagre eu não havia sonhado com nada. Nadinha mesmo, nenhuma relação com o que eu havia visto no Natal, e olha que eu era mestre em exagerar nas reações e ficar com isso na minha cabeça por tempo demais - o suficiente para me enlouquecer. Eu já estava aguardando pesadelos com presas cheias de sangue, hipnoses, mortos vivos muito atraentes andando por aí e me convencendo a deixá-los entrar na minha casa... mas talvez fosse o efeito de assistir Drácula pela milésima vez. Vou admitir que eu praticamente pedi para ficar perturbada: passei os dias que se seguiram apenas reassistindo todos os episódios de True Blood, tentando pegar algum detalhe não dito por Daniel. Não digo que não foi proveitoso, mas ver os dentes separados da Sookie Stackhouse a todo momento... isso sim me perturbava.
Quanto mais tempo se passava, mais ansiosa eu ficava. Eu não sabia dizer exatamente se era para ver Daniel depois das férias de fim de ano. Claro que, na minha concepção era bem isso que eu tanto aguardava, mas realmente parecia se algo mais, alguma coisa inesperada - se é que era possível. Eu sabia que só passaria o ano novo na reserva com a família de Jake, então não dava pra entender de onde todo aquele nervosismo vinha. Por sorte mais ninguém percebeu o quanto eu andava inquieta, e eu também não notei muito o que as pessoas da minha casa andavam fazendo. Todos nós nos envolvemos em atividades completamente durante as duas semanas e só nos encontrávamos de verdade no jantar - onde, veja só, ninguém falava quase nada.
Era a última manhã do ano e eu fiz questão de passar de maneira digna: dormindo. O frio lá fora era absurdo, mas era o ideal para se esconder embaixo de uma montanha de cobertores e nunca mais sair e, bom, era o que eu estava fazendo. Eu sabia pelo relógio de cabeceira que já eram mais de 11 da manhã, mas ainda estava um pouco escuro com tantas nuvens carregadas lá fora. Afundei meu rosto no travesseiro branco e tentei dormir mais uma vez, mas não consegui. Me virei ainda de olhos fechados e tateei no criado mudo até encontrar o celular; era algo que eu fazia com frequência mas nunca tinha mudança alguma: nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nenhum sinal de vida (vida?) de Daniel ou Lisa. Coloquei o aparelho no lugar e me esforcei para sair da cama, logo sentindo o frio nos pés. Concentrando toda a minha força de vontade, andei até a porta do meu quarto e peguei o robe marrom que ficava atrás dela, vesti e me virei para o corredor ainda mais gelado. A porta do quarto de Matthew estava aberta e a do quarto de hóspedes também - Hayden estava dormindo lá mesmo depois de eu tanto pedir para ela ficar no meu quarto, ela disse que não queria incomodar, mas dava pra ver que era bem conveniente ela ficar no quarto mais afastado de onde meus pais dormiam.
Não havia ninguém no andar de baixo, nem Debra. Não era possível que todos já tivessem saído para Talapus me deixando abandonada em casa - se bem que isso era bem o tipo de coisa que acontecia na minha família. Na cozinha havia um bilhete com o meu nome, era a letra de Debra, e dizia ", seu pai e eu saímos para fazer compras e não demoramos." Só isso. Olhei à minha volta como se ainda procurasse alguém. Pelo menos não fora abandonada. Voltei para o andar de cima e tomei um banho demorado e pacífico sem escutar ninguém batendo na porta e me mandando sair antes que acabasse com toda a água quente. Já estava pensando em sair para comer alguma coisa na rua, as chances de alguém ter deixado qualquer coisa preparada eram tão remotas quanto... bom, eram inexistentes.
Desci mais uma vez, ainda sem sinal de vida pela casa. Não havia carro nenhum na garagem, mas mesmo que tivesse eu não poderia pegar, a menos que não me importasse com a minha mãe fazendo o mesmo discurso de sempre sobre a minha falta de experiência para dirigir - mais uma vez, mesmo que eu tivesse carteira e ela deixasse Matt livre para sair a hora que quisesse.
Peguei uma blusa de moletom cinza antes de sair pela porta da frente e sentir aquele cheiro de chuva que fica no ar (e que basicamente era o cheiro de Warrenton em 90% do tempo). Eu estava um pouco acostumada à umidade em St.Pete por causa da praia e tudo mais, mas o ar pesado e quase encharcado do estado inteiro me obrigava a respirar pela boca, caso eu quisesse andar rápido. E, bom, eu tinha que andar rápido, Woodlands Golf Course ficava longe do centro da cidade e eu realmente estava com fome.
Não era uma caminhada exatamente agradável, isso sem nem mesmo considerar a dificuldade para respirar; isso até que passa. Warrenton é uma cidade até bonita no verão, é quando realmente fica verde para todo lado e o cinza não fica tão predominante assim. Mas no meio do inverno não é exatamente a cidade do paraíso. Quando o clima não está alternando entre chuva e neve, tudo fica coberto pela neblina fina e gelada, o chão fica totalmente escorregadio (ninguém por aqui se importa de ver alguém caindo na calçada ou algum carro ameaçando a derrapar) e, incrivelmente, é quando as pessoas mais saem de casa para se aquecer na rua. Para chegar até o centro eu tinha que sair da rua cercada de casas por um lado e por floresta de outro, passar pela margem da marina cheia de barcos de pesca e, finalmente, virar algumas ruas até a parte "movimentada" onde haviam as lojas, restaurantes e tudo mais. Por ali não haviam tantas árvores quanto no meu bairro ou na rodovia depois do píer, o que deixava o ambiente menos agradável ainda.
Cheguei ao restaurante que Gavin sempre nos levava para comer de manhã, o Dairy Maid. Me sentei na mesa e, assim que a garçonete chegou, pedi um café forte e qualquer coisa para comer. Olhava ao meu redor e via várias pessoas sentadas nas mesas, famílias, amigos conversando, algumas pessoas da escola também. E nenhuma delas sequer fazia ideia de que vampiros existiam, muito menos que a pequena cidade deles abrigava dois. Por mais que eu já tivesse aceitado o fato superficialmente, tudo continuava pairando e eu queria aquilo fora da minha cabeça o mais rápido o possível. Fácil demais aceitar criaturas sobrenaturais em, sei lá, um filme alemão expressionista, mas não na cidade onde eu moro, na minha sala de aula e que poderia entrar na minha casa. Daniel havia dito que ele e Lisa estavam ali sob o consentimento dos "criadores", mas afinal quem eram eles? E quem eram os padrinhos que, de alguma forma, haviam aceitado conviver com os dois? Claro, naquela noite na praia as perguntas que eu fiz pareceram muito plausíveis e as respostas eram esclarecedoras até demais. Eu fui percebendo que, afinal de contas, eu não sabia nada sobre ele, sobre Lisa, sobre seu passado ou sobre vampiros em geral. Tudo bem, eu já havia assistido inúmeros filmes, True Blood e coisas do gênero, mas isso é relativo; quem me garantia que Dan e Lisa não se alimentavam de humanos? E mesmo que não se alimentassem agora, como eu iria saber se eles já não haviam mordido (seja lá o que for) ou até matado alguém em Warrenton? Ou no condado? Talvez alguém ali no restaurante também soubesse da existência deles, tivesse presenciado algum ataque, qualquer coisa assim. Me imaginar como a única pessoa que sabia da verdade daqueles dois "irmãos" era um pensamento muito solitário, muito pequeno para uma informação tão grande e absurda.
Bebi do meu café, segurando uma careta porque estava forte até demais. Qual seria o gosto do meu sangue? Daniel havia dito que se sentia tentado por ele, eu ainda não sabia se continuava com medo ou se confiava em seu autocontrole. Comecei a comer inconscientemente, bebendo um pouco mais do café quente. Eu havia começado a fazer várias coisas no piloto automático: comer, tomar banho, limpar a casa, até falar com os meus pais. Sabe quando a gente fica com um pensamento na cabeça por muito tempo e acaba esquecendo do resto? A gente deixa de pensar nas coisas que costumava pensar, a ideia se fixa na mente e ocupa todo o espaço. Era assim que eu me sentia, como se tivesse sido hipnotizada. Até a hora que Daniel me beijou pela primeira vez, eu senti como se uma força externa tomasse conta de mim; era algo muito bom, mas foi bem depois disso que eu me "desliguei" totalmente - porque antes eu já me sentia meio fora do ar, logo no primeiro contato que tivemos, na escola, aquele deslumbramento todo já tinha presença garantida em todos os meus momentos. Os poucos dias longe dele e de Lisa me fizeram tomar consciência do que estava acontecendo; antes, na minha cabeça, essa coisa dele ser um vampiro era muito legal, teatral e coisa de livros, mas eu nem sequer sabia o que eles queriam de mim. Amizade? Pode até ser, da parte de Lisa isso era aceitável, ela era amiga de Ellie (que, agora, eu não conseguia acreditar que não sabia de nada). E o que Daniel queria comigo? Meu sangue, isso era óbvio... Tomei um gole grande do café para espantar o medo que começava a crescer, mesmo que timidamente. Eu já havia clareado a mente até demais para um dia só, e não poderia aparecer assim perturbada e paranoica na casa de Jake à noite; ainda era dia 31 de dezembro, como Gavin havia prometido, nós iríamos para Talapus.
Senti meu celular vibrando no bolso da blusa de frio e o peguei rapidamente lendo o número de Debra no visor. Revirei os olhos, torcendo para que ela não fosse me atormentar por ter saído de casa.
- Oi mãe. - disse assim que atendi.
- , você estava dormindo até agora? - ela perguntou, do outro lado.
- Não, mãe, eu acordei e não vi ninguém lá em casa, tomei um banho e vim para o centro comer alguma coisa. - respondi, olhando a paisagem cheia de neblina pela janela de vidro ao meu lado.
- Ah sim, e onde você está?
- No Dairy Maid, eu já volto pra casa.
- Não precisa, eu te busco aí na porta. - Debra disse, me surpreendendo com a gentileza. - Eu ainda preciso comprar algumas coisas no supermercado, quero que você e Hayden me ajudem.
Me levantei da mesa no canto extremo do restaurante e andei até o caixa na parte da frente. Ainda com Debra no telefone, paguei a conta e abri a porta para o ar frio. Debra me avisou que estava chegando e que eu deveria esperá-la no estacionamento ao lado. Sentindo o vento frio no rosto, caminhei lentamente até onde o carro dela já estava. Vi Hayden na janela do passageiro e abri a porta para o banco de trás, agradecendo profundamente pelo aquecimento do carro.
- Pra onde todo mundo foi hoje de manhã? - perguntei, assim que Debra acelerou na direção das ruas mais cheias da cidade. - Quase achei que eu ia continuar a franquia de Esqueceram de Mim...
Aquele parecia ser um dia bom, porque Hayden e até Debra riram da minha singela piada. Haviam várias sacolas de papel no chão do carro, algumas caixas de papelão com arranjos de vidro e até um buquê de flores brancas.
- Seu pai e seu irmão foram para Talapus bem cedo arrumar alguma coisa para hoje à noite. - Debra respondeu. - E nós três ficamos responsáveis por arrumar a casa.
- Então a gente também vai para Talapus mais cedo? - perguntei, juntando as sobrancelhas e logo pensando que eu poderia ver Jake e me distrair conversando com os outros garotos.
Debra, que estava parada no sinal vermelho, olhou para trás com uma expressão confusa.
- Filha, eu te falei há pelo menos cinco dias que essa festa de ano novo seria lá em casa, já que está frio demais para fazer ao ar livre na casa dos Black. - ela respondeu, voltando a sua atenção para a rua.
Disse? Eu não me lembrava disso, mais um sinal do quanto eu andava apagada. Assim que associei toda aquela decoração entendi o trabalho enorme que teríamos para colocar aquilo na casa inteira - e isso com Debra exigia perfeição. Ela estacionou o carro na frente de um supermercado e logo descemos. Hayden, amável e sentimental de sempre, me deu um abraço acompanhado de um bom dia enquanto eu revirava os olhos sem ela ver. Era sempre bom ter ela por perto, por mais que eu não pudesse compartilhar tudo que eu andava pensando.
Mal entramos no local, diga-se de passagem, lotado, e Debra nos entregou duas pequenas listas de tarefas para cumprir até as 4 da tarde. ótimo, segundo a minha, eu teria de limpar a sala inteira (o que envolvia a sala de estar, de TV e de jantar) e ajudar com qualquer outra coisa que o meu pai pedisse. Nessas horas o desligamento e o "piloto automático" cairiam bem.
Debra não nos deu nem um minuto de descanso até, impreterivelmente, 4 da tarde. Até então, eu ainda não havia visto meu pai ou Matthew, provavelmente as coisas em Talapus estavam mais produtivas e interessantes. Eu ainda não conseguia imaginar como todas aquelas pessoas caberiam na minha casa, que não era tão grande assim, pelo menos não para todo mundo que eu conhecia na reserva. Coloquei essa dúvida em voz alta e Debra respondeu que só os Black e os Clearwater viriam, por isso meu pai havia oferecido a casa. Bom, pelo menos eu não ficaria sozinha.
Começou a escurecer e meu pai e Matthew haviam chegado, diziam que logo todo mundo chegaria também. Fui na frente tomar outro banho antes que se formasse uma fila e não sobrasse tempo. Afastei todos os pensamentos que me ocupavam desde cedo e saí para trocar de roupa, encarando um verdadeiro problema. Uma hora ou outra minha mãe diria que a minha roupa estava ruim mesmo que a própria tivesse escolhido, então não me importei tanto assim, minha prioridade era, de uma vez por todas, não passar frio. Peguei uma calça preta e uma camiseta que Matthew havia me dado no nosso aniversário, branca com uma estampa preta metálica da logomarca dos Ramones. Enquanto ainda me arrumava, Hayden entrou no quarto, usando um vestido de renda rosa clara e delicada, com as mangas três quartos dobradas e detalhes na barra. Ela segurava várias coisas nas mãos e eu logo imaginei o que ela planejava.
- Não vai funcionar, Hay. - disse, assim que ela colocou o pé para dentro do quarto.
- O que custa? - ela riu, colocando toda a parafernália na minha cama e andando na minha direção em frente ao espelho.
- Custa minha dignidade, eu não sou sua Barbie! - respondi, desviando do seu caminho.
Ela fez cara de criança desamparada que quer comer chocolate e eu me rendi, embora cada partezinha do meu cérebro gritasse para não deixar ela me torturar com todos aqueles artefatos.
- Eu ainda quero parecer eu mesma, ok? - destaquei, e ela só assentiu e me mandou sentar no banco que ficava em frente à pentedeira.
Eu dava a impressão de não ter apreço nenhum pela minha aparência, mas não era bem isso. Nunca fui de pensar que vaidade era uma coisa fútil ou inútil que tornava as pessoas obcecadas por beleza - na verdade, sempre fui dessas que acha que vaidade é essencial para ambos os sexos como uma forma de cuidar de si mesmo. Mas com certeza era algo que eu não tinha naturalmente, eu só fazia o básico, tipo fazer as sobrancelhas e, uma vez ou outra, as unhas.
Hayden começou mexendo no meu cabelo e eu realmente não queria nem imaginar as suas intenções. Fechei os olhos e comecei a cantar uma música mentalmente. Depois de um tempo, senti ela passando algo no meu rosto, aí sim comecei a ficar com medo do resultado final.
- Eu falo sério, eu vou te importunar até você ir embora se você me deixar igual a um palhaço. - tentei ameaçar, mas ela estava concentrada e mal me ouviu.
- Quanta desconfiança... Alguma vez eu já te desapontei?
- JÁ! - respondi, me lembrando de vezes que ela havia exagerado em sua "obra de arte" humana.
- Sei, sei... - ela me ignorou mais uma vez.
Mais algum tempo depois, Hayden se afastou de mim e disse para eu ir até o espelho de corpo inteiro. Dei os poucos passos já imaginando que tipo de coisa ela teria feito comigo.
- Tá bom, eu fui injusta com você. - me desculpei assim que vi meu reflexo.
Não estava nada mal, aliás, muito pelo contrário. De alguma maneira bizarra, ela havia conseguido colocar um certo movimento nos meus cabelos, de forma que não estavam mais caindo em forma de uma cortina escorrida. Quanto à maquiagem, não sei se seria a minha primeira opção (se tivesse sido por conta própria), mas os traços de maquiagem preta ao redor dos meus olhos combinaram com a minha roupa. Hayden sorria, mais vitoriosa do que orgulhosa do que havia feito.
- Você está parecendo uma versão mais leve da Effy Stonem. - vi ela apontando para mim pelo espelho.
- Antes, durante ou depois de uma festa?
- Antes, é claro. - Ah, menos mal. Então, obrigada, Hay, você fez um ótimo trabalho. - elogiei e ela começou a sorrir.
- Que bom que você gostou, . Acho que é o mínimo que eu posso fazer, já que eu vou embora na semana que vem...
- É, mas você vai para a Flórida de novo. - eu disse como se fosse óbvio, enquanto ajudava ela a recolher o que ela havia trazido. - Eu daria tudo para não ter me mudado para cá.
Ainda mais se eu já soubesse o tipo de coisa que acabaria vendo por aqui, pensei.
- Ei, por que o seu pai quis vir pra cá tão rápido? - ela abaixou o tom de voz assim que passamos pelo corredor em direção ao quarto de hóspedes, onde ela estava fingindo dormir.
- Você sabe que nenhuma decisão tomada nessa família é racional - respondi, revirando os olhos.
- Mas você não acha que eles já estavam planejando isso há algum tempo? - Hayden insistiu. - Quer dizer, eu me lembro quando o seu pai veio falando sobre se mudar para cá e então, alguma semanas depois, vocês já tinham ido. Sua mãe já veio para cá com um trabalho garantido, casa comprada e tudo mais... Não estou conspirando contra os seus pais, é claro que não, mas é que essa mudança foi ruim para mim também.
- Eu sei disso, Hay. - assenti. - Mas você sabe que é inútil perguntar, ninguém nunca vai nos dar uma explicação lógica.
Ela suspirou com pesar e indicou as escadas. Eram apenas oito da noite, então ninguém havia chegado. Minha mãe conseguira deixar a sala linda, com velas em copos altos de vidro e flores brancas, vermelhas e amarelas. Meu pai e Matt ainda estavam terminando de montar uma mesa de canto para colocar as bebidas. Fui em direção à sala de TV, que, assim como a de jantar, não era separada por paredes, era só um ambiente diferente, e procurei nas estantes algum DVD de algum show para colocar. Escolhi o de Bon Jovi - todo mundo gosta de Bon Jovi - e coloquei para tocar, me sentando no sofá e apreciando a banda. Aparentemente, eu fui logo esquecida ali, quase sendo engolida pelas almofadas; Debra não me chamou nenhuma vez e Hayden estava ocupada com ela.
No meio do incrível solo de Wanted Dead or Alive que eu acompanhava com felicidade, a campainha tocou. Fui andando na direção da entrada da sala e Gavin me acompanhou. Abri a porta e escutei várias vozes, a maioria masculina, conversando animadamente enquanto passavam, cumprimentando Gavin e seguindo para onde a minha mãe estava. Continuei atrás da porta, escondida, até que a última pessoa passasse. Quando achei que todos já tivesse entrado, andei para frente empurrando a madeira pesada quando senti esbarrando com força em algum lugar. Ouvi uma voz xingando bem baixo e apareci ao lado da maçaneta para ver quem eu havia machucado - ou nesse caso, quem havia "machucado a porta".
- Me desculpa, Jake! - logo me apressei quando vi que era ele. Deixei que ele passasse em paz e fechei a porta em seguida, me virando para ele.
Eu devia mesmo andar fazendo tudo no automático, talvez até falar com outras pessoas fora de casa. Quando ele apareceu na minha frente foi como se aquela sim fosse a primeira vez que eu o via depois de tanto tempo. Eu já sabia que ele era bonito e que todos os seus amigos eram parecidos entre si, mas isso ficou muito subjetivo e vago quando eu olhei para ele mais uma vez. Sim, havia algo diferente nele, mas eu não sabia explicar o que era. Só sabia que pareciam ter tirado uma cortina branca da frente dos meus olhos que bloqueava a sua imagem de verdade. De onde eu tirei essas palavras para descrever os poucos segundos em que nos encaramos? Não faço ideia, talvez estivesse no fundo da minha consciência afetada.
Ele não sorria mais, acho que agora me olhava com a mesma curiosidade e intensidade que eu. Para alguém de fora provavelmente parecia estranho, então comecei a me movimentar para sair daquele transe.
Não tive muita certeza das palavras que eu falei, como quando se está em uma festa lotada, música muito alta e luzes piscando e você não consegue ouvir a própria voz ou os próprios pensamentos, só está ali fisicamente. Eu também só estava no sofá da sala fisicamente, meu pensamento parecia ter me abandonado para flutuar em um grau mais alto. Jacob usava uma roupa social como todos os outros homens ali, a camisa dele era branca com um botão aberto na parte de cima. Mesmo que ele estivesse no sofá da frente, eu sentia sua respiração leve chegando até onde eu estava, quase dava para perceber o quanto sua pele era quente. Me dei conta de que era como estar em um dos meus sonhos loucos, onde eu saía tocando tudo e interagindo com o ambiente e, quando acordava, estava em outro lugar que não fosse onde eu havia dormido. Sensações à flor da pele, sentidos mais fortes... tudo veio de uma vez só.
- Uau, alguém finalmente conseguiu atravessar a barreira de gelo da Leah. - ouvi Jake comentar com clareza, enquanto eu voltava ao normal.
Olhei para trás onde todos estavam andando e conversando. Leah, a irmã mais velha de Seth, estava conversando com Hayden, e pareciam se entender. Pelo pouquíssimo que eu havia visto, Leah era muito fechada e mau humorada, talvez muito mais do que eu pensasse, por isso Jake ficou tão surpreso quando viu as duas conversando. Hayden visivelmente estava contendo todos os gestos exagerados que gostava de fazer quando conversava com alguém, e Leah realmente estava falando com ela, pareciam manter um bom assunto e tudo mais. Obviamente ela não era parecida fisicamente com os garotos da reserva, mas tinha os seus traços semelhantes e era muito bonita, mas acho que as feições fechadas não deixavam isso muito claro.
Falando em Seth, ele logo apareceu e se sentou na outra ponta do sofá onde eu estava. Ele, bem ao contrário da irmã, era todo sorridente e não passava um segundo quieto. Não parecia ser muito mais novo que eu, mas é claro, eu era minúscula perto de todos eles.
- Olha, a namorada do seu irmão é demais. - ele disse assim que me cumprimentou. - Eu juro que nunca vi a Leah conversando com alguém por mais de 5 minutos sem xingar ou brigar com a pessoa, inclusive comigo. - nós três rimos juntos e eu arrumei a minha postura para não parecer tão relaxada. - E ai, nós três somos os excluídos do Ano Novo?
- Não, nós somos os fodinhas do Ano Novo. - respondi, sorrindo e olhando para o resto das pessoas conversando na parte mais afastada de onde estávamos. - Tipo gases nobres que não se misturam. Eu sou o Argônio, o Jake é o Xenônio e você é o Radônio.
- Nah, não quero ser esse Radônio... - ele comentou com naturalidade e rindo em seguida.
- Tudo bem, você pode ser o Criptônio então. - revirei os olhos e sorrindo com eles.
Então, nós três, os gases nobres, ficamos sentados em frente ao show do Bon Jovi conversando amenidades enquanto todo mundo ainda ria alto e se movimentava. Quando o DVD chegou ao fim, perguntei se eles queriam escolher alguma coisa e mostrei as opções musicais.
Enquanto eles escolhiam, fui até a cozinha e peguei uma bandeja pequena com algumas coisas que Debra havia preparado. Minha intenção era levar para a sala de TV e eu estava andando naquela direção quando ouvi a campainha mais uma vez. Todos estavam distraídos demais para perceber, então fui atender de novo. Não achei que faltasse alguém, embora eu estivesse distraída em relação aos "outros elementos da tabela periódica" ali dentro. Assim que abri a porta, senti Sunny entrando dentro de casa praticamente em pânico e subindo até o meu quarto. Ela frequentemente andava assustada desse jeito e eu não conseguia ver motivo algum, até que eu vi quem estava na minha frente. Lisa, com os cabelos loiros escuros movimentando com força por causa do vento do lado de fora. Ela estava séria, sem expressão alguma, nem de arrogância nem de falsa amizade.
- É uma pena que eles tem medo de vampiros. - ela apontou para a direção que Sunny havia corrido. - Eu sempre quis ter um...
Então Daniel já havia contado a ela. Senti minha cabeça pesar e encostei a porta, abafando o barulho que vinha de dentro da casa. Ela deu um passo para trás, me dando espaço para ficar em sua frente.
- Não precisa me convidar para entrar. - ela se adiantou, antes que eu pudesse falar alguma coisa. - Eu só vim aqui te dizer que eu sinto muito que você tenha descoberto tudo da pior maneira...
- Está tudo bem, Lisa, não precisa pedir desculpas. Você tinha que guardar esse segredo, eu é que apareci do nada e seu irmão teve que me contar tudo.
Lisa estava realmente sem expressão, mas parecia um pouco preocupada, o tempo inteiro olhando para os lados. Aquilo não exatamente respondia as perguntas que eu andava me fazendo, mas já era um consolo saber que ela se importava que eu soubesse de tudo.
- É isso, eu também vim para te desejar feliz Ano Novo. - ela continuou, esboçando um sorriso fraco que eu nunca havia visto antes. - O meu irmão não pode saber que eu vim aqui, ele vai pensar que eu estou de influenciando a alguma coisa, eu realmente preciso ir logo.
Contra qualquer imagem que eu tinha dela, Lisa se inclinou na minha direção e me deu um abraço. Não duro e frio, mas algo bem próximo de parecer humano. Eu continuei estática, mesmo retribuindo o abraço, ainda sem conseguir acreditar que ela viera para me dizer isso. Ela me olhou nos olhos por alguns segundos antes de sair sem dizer nada, descendo os degraus da varanda e andando pela rua escura. Assim que ela saiu de vista, entrei em casa absorvendo o barulho alto mais uma vez. Ainda sem saber o que fazer, andei lentamente até onde havia deixado a bandeja e voltei para a sala de TV.
- Impressão minha ou havia alguém na porta? - Jake perguntou, ainda mais sério do que Lisa.
- Sim... - respondi, estranhando a pergunta. - Uma amiga veio me desejar feliz Ano Novo, só isso. Vocês decidiram qual DVD vão colocar?
- Eric Clapton. - Seth ergueu o DVD e me entregou. - Parece bom.
- Parece bom? - eu repeti, me esquecendo de Lisa. - Só parece? É Eric Clapton, Criptônio, é só o maior gênio da guitarra, só isso.
Coloquei o DVD e me voltei para o sofá. Assim que me sentei, olhei para Jacob que estava calado desde que eu respondera a pergunta. Ele olhava para o próprio colo, distraído com alguma coisa. Pisquei duas vezes até ter certeza de que aquela era, sim, Sunny, que não estava mais em pânico.
- Como você conseguiu? - perguntei, arregalando os olhos na direção dele.
- Hã? O que? Ela veio até aqui e subiu no sofá. - ele respondeu.
- Ela nunca gostou de mais ninguém, só de mim... - eu disse, deixando a voz morrer no fim da frase.
- Bom, agora ela gosta de mim. - ele sorriu torto e voltou a fazer carinho atrás da orelha laranja dela.
Eu só não abri a boca de tanta surpresa porque era realmente estranho eu sentir ciúmes de um gato, mas eu continuei olhando com um certo ressentimento.
- Jake, é sério, ela nunca chegou perto de mais ninguém a não ser para pedir comida. - eu insisti.
- Então você sempre teve uma Leah em casa e nem sabia. - ele riu e depois voltou o olhar para mim. - Pode falar, eu sei das coisas.
Voltei minha atenção para o Eric Clapton de meia idade na tela da TV. Passei quase todo o tempo calada, pensando em Lisa e o motivo real dela ter vindo me ver. Essa de "vim te desejar feliz Ano Novo" não me convencia - antes com certeza seria bem recebida, mas agora que parecia que eu estava fora de uma influência externa parecia muito estranho.
Debra me pediu para ajudá-la um pouco, então abandonei os outros dois gases nobres e fui atrás dela. Entre me mandar repor copos limpos e acender as velas que haviam apagado, fui para a cozinha pegar alguma coisa para beber. Achei que fosse encontrar o local sozinho, mas vi Harry, o pai de Seth e Leah que eu sabia que andava doente, e Billy conversando em voz baixa ali dentro, e eles não pareciam ter me visto.
- Você viu aquilo? - dizia Harry com a voz grave. - Tinha uma vampira aqui, a outra cria dos dois que foram embora há muito tempo. Como nós vamos dizer ao Gavin que Warrenton serve como casa para eles mais uma vez? Logo agora que ele trouxe a família inteira para morar aqui?
- Mas ninguém pode fazer nada agora. - respondeu Billy no mesmo tom. - O meu filho e a filha dele são... ah, tem isso também. Nós prometemos ao Gavin que a família dele estaria segura, mas como eu ia saber que os sanguessugas iriam se aproximar logo da filha dele?
Antes que eu escutasse mais alguma coisa, dei um passo para fora da cozinha sem fazer barulho algum. Corri sem fôlego até o banheiro que havia do lado e entrei, acendendo a luz e encarando o meu reflexo no espelho.
Eu merecia um prêmio. Um não, dois. Um por ser a pessoa mais problemática no mundo, outra por atrair tudo, exatamente tudo que eu pensava. Eu queria que mais alguém soubesse sobre Dan e Lisa? Pois bem. Harry e Billy sabiam - e o pior, aparentemente Gavin também. A pequena conversa entre os dois martelava na minha cabeça, me fez pesar mais do que falar com Lisa. Era uma boa hora para chorar ou entrar em colapso nervoso, mas eu simplesmente não era assim. Era bem a minha cara guardar tudo aquilo que eu andava descobrindo até que não aguentasse mais. Minhas terminações formigavam, a testa latejava e eu não queria voltar para a sala, encarar Harry e Billy e pensar que eles sabiam de tudo. E meu pai então, por que ele saberia de uma coisa dessas? E porque isso teria a ver com ele? Agora as perguntas eram demais e eu, mais do que nunca, quis deitar na cama e dormir por um bom tempo. Uni forças para sair dali e continuar com a mesma expressão normal, mas foi difícil. Evitei ir na direção onde Billy estava e fiz logo o que Debra havia pedido. Já era quase meia-noite quando eu despistei todo mundo e voltei para a varanda da frente da casa, ignorando o frio e a luz fraca da lâmpada de jardim. Eu ainda não conseguia chorar, mas como eu queria... Eu não era boa em colocar esse tipo de emoção para fora, mesmo que a quantidade fosse grande. Depois de um tempo, vi vários fogos de artifício estourando no céu na direção do píer, já deveria ser primeiro de janeiro então. Continuei parada e observando o céu ficar colorido de várias cores ao mesmo tempo.
Meu carma não era mesmo de ficar sozinha. Jacob apareceu ali na porta com duas taças com líquido dourado e se sentou ao meu lado, me entregando uma. Eu segurei e sorri fracamente.
- Ué, resolveu ser gás nobre aqui fora? - ele perguntou.
- Você foi o primeiro a sentir minha falta. - observei, distraidamente, enquanto me movia milimetricamente para mais perto dele.
- O Seth se distraiu conversando com o seu irmão e eu fiquei sozinho também. - ele respondeu. - Mas eu já tinha visto que você tinha saído, só achei que você precisava de um tempo em paz, já que veio procurar por um.
Suspirei e voltei os meus olhos para ele, o rosto iluminado pelas luzes coloridas do céu. Fiquei presa em seu olhar por alguns segundos, mas desviei rapidamente e voltei a encarar o vazio.
- Acho que eu só fiquei cansada... mesmo que eu não esteja fazendo nada esses dias. - respondi. - Pensei que fosse aproveitar as minhas férias de Natal, mas pelo contrário.
- Você poderia ter ido para Talapus - Jake sugeriu. - Não há muito para se fazer, mas com certeza é melhor que Warrenton.
- Se isso ainda for um convite, eu aceito. - sorri só de imaginar alguma ocupação para a minha cabeça.
- Na verdade, Embry, Quil e eu vamos meio que acampar amanhã. - senti todo o meu entusiasmo momentâneo ir embora. - Mas o convite está aberto sempre que você quiser. É sério, todo mundo gosta de você por lá.
Continuei rindo, mas não disse nada. Aquela sensação boa estava voltando, a mesma que eu sentira quando vi Jake de novo. Sentia frio na barriga e como se todas as minhas células estivessem se agitando lá dentro. Ele também não disse mais nada a respeito, só assentiu sozinho e ergueu a taça na minha direção.
- Feliz Ano Novo, Argônio.
- Feliz Ano Novo, Xenônio.
Todo o meu sono já estava esgotado, não conseguia pensar em nenhum filme para ver (isso era uma surpresa enorme), já tinha lido todos os livros da minha estante, e aqueles volumes enormes de literatura russa que Debra lia não me pareciam muito atraentes. O silêncio dominava toda a casa, eu estava sozinha no meio da sala com a tv ligada em Two and a Half Men, Sunny rolava no chão brincando com uma folha que havia voado pela janela; se eu ficasse mais um dia das férias de Natal desse jeito eu enlouqueceria. Debra tinha deixado um bilhete no espelho do meu quarto, Estou em Chinook com seu irmão e Hayden. Não se esqueça de buscar o seu pai em Talapus às 8 da noite, limpar a cozinha e arrumar o seu quarto. Beijinhos, mamãe.. Então ela havia arrastado os dois para fazer compras, felizmente eu não estava acordada na hora que eles foram. A cozinha estava brilhando, o meu quarto devidamente arrumado e ainda eram duas da tarde, não havia mais nada para fazer.
Desde o ano novo eu começara a perder a vontade de ver Daniel, talvez pelo medo que eu mesma criara. O que eu acabara escutando de Harry e Billy ainda estava na minha cabeça, parecia soar errado ou perigoso, algo que eu não devesse saber de forma alguma. De qualquer forma, só teria notícias dele em 5 dias, quando as duas semanas de recesso acabassem. Fiquei pensando em ligar para Jake, mas ele mesmo havia dito que iria acampar com Embry e Quil, ou algo assim. Definitivamente, eu estava sozinha.
Depois de um tempo acabei me distraindo com algum programa, quando o telefone tocou. O barulho insistente era quase música no meio do silêncio interminável. Levantei do sofá sem pressa e o peguei, lendo o número do celular de Gavin na bina.
- Oi pai. - disse, assim que atendi.
- ? Achei que você tivesse ido fazer compras com sua mãe, só está você por aí?
- Sim, só eu. - andei de volta até o sofá, recolhendo Sunny no meio do caminho. - Ela levou Matt e Hayden.
- Que sorte a sua. - ele riu do outro lado. - Escuta, preciso de um favor seu.
- Pode falar, faço qualquer coisa pra me ocupar. - respondi, suspirando aliviada por ter algo pra fazer.
- Então, eu estou sem carro aqui no hospital, sua mãe me trouxe aqui, deve ter voltado para casa e ido para Chinook depois...
- É, eu percebi. - levantei um pouco a cabeça e vi o carro dele parado na garagem ao lado do jardim. - Quer que eu te busque agora?
- Não, ainda não. - ele respondeu, escutei ele mexendo em alguns papéis. - Eu preciso que você pegue uma pasta que eu esqueci e me entregue aqui no hospital.
Me levantei do sofá e fui até o pseudo escritório ainda desmontado (provavelmente ficaria assim pra sempre), pegando uma pasta com o nome de Gavin na capa.
- É uma preta lotada de plásticos por dentro? - perguntei, abrindo e conferindo o conteúdo. - Com várias receitas?
- Exatamente - ele confirmou. - Mas eu preciso que você me entregue depressa, eu tenho que entregar metade dos papéis que estão aí.
- Ok, eu chego em 20 minutos. - respondi, logo desligando o telefone.
Peguei as chaves do carro de Gavin e andei até a porta da sala. Sunny me observava com atenção só com o olho castanho aberto, ela sempre me olhava com rejeição quando eu saía e não a deixava passar. Num gesto involuntário, mostrei a minha língua na sua direção e fechei a porta da sala, respirando o ar frio e úmido no jardim. Entrei logo no carro e dirigi sem pressa na direção da rodovia que ligava Warrenton a Talapus, aquela mesma estrada por onde eu estivera perdida sabe-se lá como.
Continuei dirigindo pela entrada da reserva, tudo ficou mais escuro ao passar pela pequena ponte acima do rio Necanicum coberta de árvores altas e galhos pesados. O hospital não ficava longe, mas as ruas iguais me confundiram por um tempo. Diminuí a velocidade à medida que a construção branca de dois andares se aproximava, parando no começo da rua. O ar parecia melhor por ali, dava pra escutar o barulho do vento nas folhas e aquele "cheiro de verde" que predominava por ali. Empurrei a porta de vidro da entrada e fui até a recepcionista que lia uma revista de moda distraidamente.
- Oi, eu queria falar com o Dr.Gavin... - comecei falando timidamente, mas ela me interrompeu.
- Tem hora marcada?
- Não, eu sou filha dele, ele me pediu pra entregar uma pasta.
A mulher de cabelos castanhos me avaliou por um segundo, provavelmente constatando que eu parecia mesmo ser filha de Gavin e fez um aceno na direção de um corredor. Agradeci e andei por ele, procurando a porta com seu nome. A cidade não era muito grande mas havia um grande número de acidentes, coisa com os turistas que se achavam descendentes do Indiana Jones e se aventuravam por aí. Então o hospital também não era desses enormes e muito bem equipados, a maioria dos médicos ficava para atendimento imediato, como Gavin. Encontrei a porta de sua sala facilmente e bati duas vezes antes de entrar. Ele resmungou alguma coisa do outro lado e eu entrei, ficando tonta com tanta tinta branca num lugar só.
- Credo, parece um hospício. - comentei, espremendo os olhos e me aproximando com a pasta estendida nas mãos. Ele pegou e agradeceu várias vezes, como se aquilo estivesse salvando a sua vida. - Eu estou sem nada pra fazer, acho que devia ter ido para Chinook...
- Você fazendo compras eu entendo, mas você e sua mãe? Não, isso não acontece desde que você era criança... - ele riu, revirando os papéis dentro da pasta. - Mas se você está tão desocupada, pode me fazer outro favor. - ele olhou para mim e eu levantei as sobrancelhas, assentindo. - Eu preciso que você entregue uma receita e um remédio na casa do Jacob.
Assim que eu escutei o nome Jacob senti algo revirando dentro de mim; eu provavelmente estava vermelha, sentindo o sangue indo direto para as minhas bochechas me colorindo rapidamente. Meu braço só não devia ter ficao arrepiado porque, de fato, já estava por causa do frio. Segurei aquilo tudo sem entender de onde vinha, mas obviamente era algo novo.
- Na casa dele? Ele está doente? - perguntei, pensando nos planos que ele havia feito para a semana. Se estivesse doente teria que cancelar, e então eu poderia ficar na casa dele... a menos que fosse contagioso. Não. nesse caso não.
- Não, é pro Billy, na verdade. - Gavin respondeu, colocando um vidrinho laranja com comprimidos e uma receita em cima da mesa. - Remédios de gente velha, só isso.
- Aah, do tipo que você toma?
- , eu não sou velho. - ele respondeu com uma seriedade exagerada.
- Mas toma desse mesmo remédio, eu sei que toma. - sorri, apontando em sua direção.
- Vai embora logo antes que eu peça à sua mãe para te buscar. - ele fez um gesto indicando a porta, eu recolhi o vidrinho e o papel e fui saindo. - Ah, por falar em buscar, se puder vir aqui às sete e meia eu ficarei muito grato, troquei de horário com um estagiário hoje.
- Estarei aqui. - fiz uma reverência exagerada e acenei antes de fechar a porta.
Voltei pelo mesmo corredor e saí pela porta de vidro, sem reparar na recepcionista. Quando entrei no carro percebi que não fazia ideia de como chegar à casa de Jake, mas não seria difícil de descobrir num lugar tão pequeno como aquele. Pensei no caminho que Gavin fizera pela rodovia que eu havia passado. Dirigi até ela e segui pelas casinhas de madeira, a maioria pintada de branco ou vermelho. Vi uma rua um pouco mais movimentada e pensei em parar em frente a uma loja, quando reconheci quem estava do lado dela. Quil também me viu de longe e acenou até eu encostar ao lado da calçada.
- E aí, menina da cidade? - ele sorriu, se apoiando na janela aberta do lado do passageiro. - Cansou da tristeza de Warrenton?
- É, tipo isso... - respondi, revirando os olhos. - Na verdade meu pai me pediu um favor e eu acabei me perdendo.
- Uau, você conseguiu realizar a proeza de se perder por aqui! - ele riu alto e ainda apontou pra mim. - Obviamente eu caí do céu para alegrar o seu dia e facilitar a sua vida. - ele se gabou e eu sorri junto. - Mas então, pra onde você está indo?
- Eu tenho que entregar um remédio para o Billy... eu juro que não sei como eu fui me perder, eu já fui lá tantas vezes! - admiti, fazendo uma careta.
- Ah, mas é fácil. - ele se afastou para apontar as direções. - Você só tem que continuar até o fim da rua, virar à esquerda e ir até o fim de novo, bem lá na frente você vê o telhado da garagem do Jake, não tem erro.
Acompanhei sua explicação que realmente fez sentido de acordo com o que eu me lembrava. Ele era todo sorridente e tinha esse ar natural de ser simpático, assim como todos os outros garotos, realmente não me surpreendeu ele ter parado para conversar comigo mesmo que mal nos conhecêssemos.
- Obrigada, Quil, você salvou a minha vida! - sorri, exagerando de propósito no elogio. Ele revirou os olhos mas continuou a rir. - Ei, você e o Embry não iam sair para acampar com Jake ou qualquer coisa do tipo?
- Que? - ele mudou sua expressão e o tom de voz, depois de piscar algumas vezes. - Ah sim... é que, bom, parece que vai chover a semana inteira ao redor da baía, sabe como é... nunca para de chover por aqui.
- Sei... - concordei, distraída. - Você não quer ir comigo? Para a casa do Jake, quer dizer.
- Ah, não posso, tenho que ajudar a minha mãe agora. Mas obrigada, . - ele agradeceu, um pouco hesitante.
- Bom, então eu já vou. - disse, e ele logo se desencostou da janela mais uma vez. - Valeu mais uma vez, não sei o que eu faria sem você!
- Ha ha ha, fica aí cheia de sarcasmo. - ele sorriu descrente do meu elogio e devolveu no mesmo tom - Mas volte sempre e nos encante com a sua presença.
- Ah, com certeza eu vou voltar. - sorri de verdade e dei a partida no carro. Ele acenou brevemente e entrou na loja.
Segui o caminho que ele me indicou até o fim da rua e realmente reconheci a casa no meio de todas aquelas árvores, devia ser a mais afastada de todas. Estacionei ainda no asfalto, mas não desci do carro de uma vez. Procurei um papel e uma caneta para escrever um bilhete, caso não houvesse ninguém em casa. Abri o porta-luvas e peguei uma folha em branca de um bloco de receitas de Gavin, achando uma caneta no mesmo lugar. "Oi Billy! Meu pai pediu para te entregar esse remédio e a receita, então aí estão! Mande um abraço para Jake por mim. Até logo, " escrevi com a letra mais legível que consegui. Desci do carro e andei até a casa pelo gramado, tentando enxergar algum sinal dos dois por ali, mas aparentemente a casa estava vazia. Parei na porta e vi que só estava encostada. Eu deveria ter batido, mas simplesmente empurrei lentamente e entrei tomando todo o cuidado para não fazer barulho algum. Passei pela pequena sala e fui até a cozinha, parei por ali ao lado da geladeira e preguei meu bilhete na porta com um ímã, também deixando o remédio em cima da mesa de madeira. Estava prestes a sair dali com a mesma cautela quando escutei duas vozes conversando, vindas dos fundos da casa. Sem dúvidas, era Jacob ali, e havia mais alguém com ele que não pude identificar de cara.
- É algo um tanto quanto... difícil, Jacob. - disse a outra voz que me era conhecida, mas eu não sabia dizer de quem era.
- Difícil? Só isso? - ouvi ele rir sem humor. - Cara, ele é um vampiro! Um raio de um sanguessuga, morto e frio ao redor dela, e você só acha isso difícil? Claro, pra você foi mole; viu a Emily e pronto, tudo resolvido.
De novo. Vampiro. Eu ainda não conseguira colocar na cabeça que eles sabiam disso, sabiam sobre Daniel e Lisa. Não pude raciocinar muito em cima, tinha que prestar atenção no que eles diziam. E, pelo visto, ele conversava com Sam, já que falara sobre Emily.
- Não foi fácil e você sabe disso. - ele respondeu com a voz firme. - E desde quando tem que ser fácil? Acha que pode simplesmente chegar para a e contar tudo sobre o imprinting, os outros garotos, a Leah... não é normal alguém aparecer e te falar que lobisomens existem, sabe? Qualquer um te acharia louco, até hoje eu ainda acho...
Vampiro. E agora lobisomens. Minha cabeça parecia pesar o triplo do meu corpo, achei que fosse ficar tonta, mas tive que me segurar para não fazer barulho nenhum.
- Mas eu aposto que aquele sanguessuga já contou para ela o que ele é. - Jake insistia com a voz baixa e distante. - Sam, eu não aguento ficar longe dela desse jeito, só de saber que ele fica a noite inteira ao lado da janela dela... foi por pouco que Jared, Embry e eu não o pegamos há alguns dias atrás.
- E por causa disso ele vive sumindo, já sabe o que você teve por ela e agora vai ser praticamente impossível alcançá-lo. - Sam o repreendeu. - Nunca mais vão atrás dele sem que eu esteja junto, entendeu?
Jacob não respondeu. Escutei um barulho de folhas sendo despedaçadas, provavelmente era ele do lado de fora. Minha vontade era de aparecer ali, mas eu não sabia ao certo o que dizer e tinha a ligeira impressão que seria ainda pior.
- Se ela ao menos soubesse que ele já matou tanta gente no Condado, ela poderia escolher o monstro certo, não é? - ele riu da mesma forma.
- Claro, é um jeito bom de se pensar. - Sam acompanhou o seu tom.
- Eu não entendo, Sam. - ele continuou. - Ela deveria sentir o imprinting também, não deveria? Qual é o problema? Até isso vai dar errado pra mim?
- Vai ver ela sentiu, só não soube o que era. - Sam respondeu. - Ou então... pode ser algo da cabeça dela.
- Como assim? - ele perguntou, e eu cheguei mais perto para escutar melhor.
- Aquele dia na trilha ao lado do rio, você se lembra de como ela estava antes de aparecermos? Completamente apagada, não escutava e nem percebia nada?
- Sim, o que isso tem a ver?
- Eu andei pensando sobre isso... Acho que ela fica presa na própria mente de vez em quando, mas a mente dela some e ela também, por isso ela não interage com o que há do lado de fora.
- E daí?
- E daí que ela pode ter sentido o imprinting perfeitamente, mas deve estar guardado em uma parte que ela só consegue ver quando está daquele jeito.
- Ok, e quando é que ela entra naquele estado?
- Como é que eu vou saber?!
Os dois ficaram em silêncio por um tempo. Eu fiquei preocupada que a minha respiração estivesse alta demais, eu praticamente escutava meu coração martelando nos meus ouvidos, aquela mesma sensação do sangue me colorindo pelo rosto, o arrepio subindo lentamente pelo braço. Aquela conversa girava na minha cabeça, um fato se ligando a outro. Eu precisava sair dali e logo.
- Isso sim é loucura, Sam. - escutei Jacob rindo de verdade e Sam o acompanhando.
Aproveitei que eles haviam começado a falar mais alto e saí dali com o mesmo cuidado com o qual entrara. Deixei a porta devidamente encostada e andei até o carro, entrando e dando a partida de uma vez. Cheguei no centro de Warrenton na metade do tempo que levara para sair de lá, ainda tomando cuidado para não atropelar ninguém pelas ruas. Virei na rua da minha casa e respirei aliviada que Debra ainda não havia chegado, eu teria um momento de paz pelo menos.
Entrei correndo e fui até onde havia largado o telefone. Digitei um número recentemente conhecido, enquanto chamava tentei controlar o desespero. Quando finalmente atendeu eu pensei bem no que estava fazendo e tomei coragem para falar.
- Oi Lisa.
- Então você já sabe. - eu respirei fundo depois de alguns minutos conversando com ela ainda pelo telefone, me referindo a Daniel ter contado que eu já sabia a verdade sobre os dois.
- Não, então você já sabe! - ela riu parecendo completamente alheia. - A gente não teve chance de conversar direito naquele dia, no Ano Novo, mas me conta: você entrou em pânico quando soube?
- O que? Não, eu não... Ok, fiquei um pouco. - admiti, revirando os olhos. Muito diferente do Ano Novo, ela tinha a postura arrogante de sempre mais uma vez. - Não é o tipo de coisa que se escuta todos os dias.
- Ah, agora você sabe que tudo aquilo que eu te contei sobre a minha família, acidentes, coma... é tudo mentira. - ela prosseguiu falando mais alto que a música que ela escutava de onde estava. - Sabe, Dan e eu precisamos ter essas historinhas pra ninguém desconfiar. Não é por mal, só questões de primeira necessidade.
- Ok, eu já entendi, mas não foi para compartilhar sentimentos que eu te liguei.
- Tudo bem, diz logo o que você quer. - ela pareceu entediada. - Se for para falar com o Dan, ele não está, saiu para se alimentar em um lugar fora do Condado e só volta amanhã... e não se preocupe, ele deve ter mencionado que nós não bebemos sangue humano há muito tempo, certo?
Comecei a ficar impaciente com tantas interrupções de Lisa, eu precisava logo que ela me respondesse, pelo menos antes de ter que voltar para Talapus e buscar Gavin no hospital.
- Eu quero que você me responda uma coisa, por mais estranha que pareça. - comecei e ela fez um barulho para eu prosseguir. - Então tá: lobisomens existem?
Ela não respondeu, pelo menos não de cara. Eu ainda ouvia sua respiração pelo telefone, mas ela continuava em silêncio. Chamei seu nome algumas vezes até ela se manifestar mais uma vez.
- Nossa, mal soube dos vampiros e já está pensando em todo o resto dos monstros? - ela riu, mas deu pra notar que estava um pouco nervosa e até histérica. Dessa vez eu não respondi e ela se acalmou, assumindo um tom de voz normal. - Sim, existem sim. Eu vi alguns há muito tempo atrás, mas nunca saberia te dizer direito como eles são, sabe? Não sei sobre eles, só sei que existem...
- E você acha que possa ter algum deles por aqui em Warrenton?
- Por que você quer saber isso? - ela perguntou desconfiada.
- Não é nada... eu só fiquei curiosa, só isso. - respondi, mas é claro que ela percebeu que era mentira. - Olha, minha mãe está na outra linha e eu tenho que atender, eu falo com você depois.
Desliguei antes que ela pudesse dizer mais outra coisa. Andei até o meu quarto e desabei na cama. Ainda eram quatro da tarde, há pouco tempo eu estava reclamando do tédio profundo e olha só... acabei com 3 horas livres para pensar no quanto aquilo fora perturbador - na verdade, tudo havia ficado perturbador depois de um tempo. E eu tinha muito a pensar, não como se eu pudesse encontrar respostas sozinha ou que algo fosse começar a fazer sentido... Warrenton não era mais o lugar ruim, chato e frio que eu sempre pensei, além disso também era uma realidade paralela àquela eu conhecia (que qualquer outra pessoa conhecia).
Eu queria ter algum amigo mais próximo a quem recorrer, qualquer um que pudesse só escutar mas sem ter que fazer parte de tudo; claro, alguém que também acreditasse. Sempre havia uma forma de descartar alguém: me achariam louca (o que era, basicamente, o que eu estava achando de verdade), não acreditariam, já estavam envolvidos na história... Eu tinha vindo para a cidade errada e consegui os piores problemas possíveis; o clima frio e a chuva sem fim não pareciam importar tanto naquela hora. Me senti presa na minha própria cabeça, as lembranças iam e voltavam mas nunca faziam sentido, nunca era uma explicação.
Tentei relaxar como eu sempre fazia, me deitando com o corpo bem reto e clareando a mente, não pensando em nada específico e me concentrando no silêncio; aos poucos eu me sentia afundar no travesseiro, meus braços e pernas pesavam de um jeito bom e eu não queria movê-los. Geralmente, era depois desse tipo de coisa que eu começava a ter sonhos vívidos e muito reais, mas não daquela vez. Eu não estava adormecida o suficiente para não escutar a campainha tocando no primeiro andar e nem para não sentir Sunny pisando em cima de mim com as unhas pra fora. Ainda tentei me convencer de que era coisa da minha imaginação, mas continuou tocando insistentemente até que eu resolvi atender. Desci as escadas sem pressa e batendo meus pés em cada degrau, fui até a porta e a abri, só torcendo para que não fosse ninguém vendendo bíblias.
- Você não está vendendo bíblias. - eu disse, irracionalmente.
Mas é claro que Jacob não estaria vendendo bíblias.
- O que... mas eu não... o que? - ele me olhou com as sobrancelhas erguidas.
- Não é nada, devaneio de gente... quer dizer, oi!
Se eu pudesse eu daria um chute em mim mesma. Jake estava de olhos arregalados pra mim, mas começava a sorrir. Eu continuei parada na porta com a maçaneta na mão; ele não disse nada e ainda estava com aquela cara de confusão. Comecei a mexer meus dedos sem parar até que ele piscou e sua expressão voltou ao normal.
- Então... posso entrar? - ele perguntou bem devagar.
- Oi? Ah, ah, pode, desculpa a idiotice, entra aí. - eu dei um tapa na minha própria testa e abri a porta para ele passar. Escutei uma risada baixa vinda da sua direção, mas ignorei.
Ele entrou e foi direto até o pé da escada onde Sunny estava deitada. Ainda me tirava do sério essa que ela gostava dele; Sunny era só minha, sempre gostara somente de mim, dos outros ou ela corria ou se aproveitava para conseguir comida. Ele se sentou num degrau e ela logo correu para suas pernas e ficou ali ronronando. Parei ao lado deles e observei a cena, sem poder acreditar no que via. Jacob só olhou para mim e riu daquele mesmo jeito superior de sou especial porque ela gosta mais de mim do que de você. Mostrei a língua em resposta e sorri em seguida. Eu ainda experimentava essa sensação estranha de ficar completamente nervosa perto dele.
- Você não veio aqui só pra jogar na cara que meu gato tem um novo melhor amigo. - eu disse, ao mesmo tempo provocando e brincando.
- E com certeza não vim para vender bíblias. - ele respondeu, fazendo carinho em Sunny.
- Deixa as bíblias pra lá... - revirei os olhos espantando a imagem da minha idiotice. Me sentei ao seu lado no degrau e logo Sunny veio para perto de mim, sorri com vitória para ele. - E então?
- Ah é... é que eu vi que você deixou aquele bilhete na minha casa. - ele começou, cruzando os braços e desviando o olhar, parecendo tão nervoso quanto eu. - Por que não foi me chamar? Aliás, que horas você apareceu por lá?
Me senti mais retardada ainda. Uma hora ou outra ele iria falar comigo, ou Billy ia perguntar daquele bilhete que, de repente, pareceu ser a pior ideia de todas. Encostei minha cabeça no corrimão e soltei Sunny, que subiu as escadas correndo.
- Me desculpa, eu devia ter ligado, não é? É que... quando eu fui você não estava, só vi a porta encostada e deixei o remédio e o bilhete por lá. - me enrolei para responder enquanto encontrava alguma outra desculpa. - Invadi a sua casa, não é?
- Não é isso! Mas, sabe, achei estranho não ter te escutado por lá.
- Bom, pra começar eu não pensei que você estivesse em Warrenton. - respondi ao me lembrar de ter encontrado Quil. - Você, Embry e Quil não iam acampar?
Ele arregalou os olhos e mordeu o lábio algumas vezes e sua resposta saiu com a mesma voz incerta de Quil.
- Sim, mas o Embry não pode ir e o Quil é chato demais para eu aguentar sozinho.
- Entendi... - analisando seu rosto com atenção. Ou ele ou Quil haviam mentido. - De qualquer jeito, quando eu fui para Talapus eu achei que você estivesse na praia ou na sua garagem, eu não quis incomodar, sabe.
- Mas você não incomoda. Só se for pra vender bíblias, aí sim eu seria obrigado a bater a porta na sua cara. - ele sorriu torto.
- ESQUECE ESSAS BÍBLIAS! - gritei e ri junto.
Ficamos em silêncio por um tempo. Eu queria muito ter um assunto legal, algo que não tivesse a ver com bíblias ou certas invasões de domicílio. Como eu havia mudado em relação a ele desde o ano novo era um mistério, mas desde então era sempre esse nervosismo e desespero para mantê-lo por perto. Era bem mais certo e confortável do que... bom, Daniel.
- Eu acho que eu já vou - ele disse, interrompendo os meus pensamentos. - Eu só vim pra te ver e, ah, pra saber porque não havia te visto.
- Não! Espera, fica aí. - eu falei por impulso. - Pelo menos até eu ir para Talapus, eu tenho que buscar o meu pai no hospital.
- Cadê o seu irmão? - ele olhou para o topo das escadas.
- Minha mãe arrastou ele e Hayden para Chinook. - respondi, apoiando meu queixo na palma da mão. - Eu fiquei à toa praticamente o dia todo, só saí para entregar o remédio na sua casa mesmo.
- Ah é? E que horas eles voltam?
- Não sei, provavelmente tarde. - suspirei, distraída.
Jake ficou em pé ao meu lado, olhei para cima e me senti uma anã ao lado de um jogador de basquete. Me levantei junto e subi dois degraus para ficar maior que ele de propósito.
- Você tem que buscar o Gavin e depois o que? - ele continuou, avançando um degrau e encurtando nossa diferença de altura.
- Depois nada, continuo fadada ao tédio até sabe-se lá quando. - respondi, cruzando os braços.
Não obtive resposta ou comentário algum. Eu sabia que ele ainda me observava pelo canto do olho, mas fingi me distrair com um fio que saía da barra da minha calça. Queria só por um segundo saber o que ele pensava, só isso, um segundo e meu nervosismo anormal desapareceria pra sempre.
- Warrenton não é mesmo lugar pra você, não é? - Jake interrompeu os meus próprios pensamentos com sua voz alta.
- Não, não é... - respondi com a sinceridade que acabava com o sorriso compreensivo de todo mundo. - Mas eu me esforço pra não deixar isso óbvio demais.
- Eu sinto te dizer que você é péssima atriz. Talvez devesse vender bíblias. - ele segurou o sorriso. - Ou talvez você devesse, sei lá, ir para Seaside City ou Gearhart... Lá, pelo menos, tem um pouco mais de vida e cinemas, você é louca por cinemas, certo?
- Não sei se "louca por cinemas" é o que me define - fiz aspas com os dedos - mas, sim, acho que não há nada que me agrade mais do que assistir filmes.
- E então? Nada te impede de ir pra lá ao invés de ficar em casa reclamando sem parar feito uma doente.
- Na verdade tem algo que me impede sim; Debra não me deixa pegar carro nenhum e programas em família não são exatamente os meus preferidos... - pensei no quanto era insuportável ir ao cinema com ela. Até que o filme (ruim) fosse escolhido seria um inferno aguentar a série de perguntas sobre o enredo que ela obviamente não prestaria atenção. Não, seu sou o tipo de pessoa que tem que ir ao cinema e ver exclusivamente a tela.
- Eu tenho carro.
Olhei para Jake com a expressão vazia. Fiz um trajeto mental para entender o que ele havia me dito: minha casa, a casa dele, o carro dele, cinema, cinema e o carro dele, minha casa, carro dele... Daí eu tive uma epifania e a ficha caiu.
- Você está me chamando pra sair? - perguntei, sentindo o sorriso brotar nos meus lábios involuntariamente.
Ele se desencostou da escada e me olhou com os olhos arregalados, instantaneamente nervoso. Na verdade ele parecia eu: sem saber onde colocar as mãos, torcendo os lábios nas caretas mais impossíveis e emitindo sons que lembravam vagamente palavras. E eu achei isso tão, mas tão lindo - algo que era horroroso em mim.
- Não! Quer dizer, é... mais ou menos. Ah, entenda como quiser. - ele respondeu recompondo o jeito.
- Tipo um encontro e tudo mais? - e fiz uma das caras que resultaram da minha epifania, provavelmente parecendo mais idiota do que o normal.
- É... não, não precisa ser se você não quiser. Olha só, a gente pode só ver um filme e voltamos pra casa. Você para a sua e eu para a minha, sabe? - Jake tentou se explicar, mas só me fez aumentar o sorriso que eu ainda não sabia de onde tinha vindo. - Quer saber? Entenda como quiser.
- Olha, desde que eu escolha o filme, você é quem manda. - respondi, me levantando e descendo os últimos degraus da escada. - Eu tenho que buscar o meu pai daqui a pouco e minha mãe deve chegar logo. E aí? Qual vai ser a logística da coisa toda?
- Você vai para o hospital e deixa o carro com o seu pai. - Jake respondeu depois de pensar um pouco. - Eu vou para lá te buscar e vamos para Seaside. Pode ser?
- Sem problemas. - fiz que sim com a cabeça. - Eu vou me arrumar enquanto você vai pra casa e te ligo quando chegar ao hospital.
- Feito. Seu pai não vai implicar com nada? - ele assentiu.
- Meu pai? Ele quase implora pra eu sair de casa. - sorri, enquanto o seguia em direção à porta da sala. Jake abriu-a e se colocou do lado de fora me dando uma boa visão do quanto ele bloqueava a porta alta de madeira. - Até daqui a menos de uma hora.
Ele fez um breve aceno acompanhado de um último sorriso torto e saiu em direção ao fim da sua. Fechei a porta e subi lentamente as escadas indo em direção ao banheiro. Eu não sabia como fora capaz manter aquela conversa normal sem demonstrar nenhum nervosismo sobre o que eu escutara mais cedo - e ainda havia conseguido um jeito de passar o meu tempo livre. A ideia de guardar segredos das esquisitices dos outros estava ficando mais fácil pra mim, mesmo que Jacob ou qualquer um dos garotos ainda não tivesse mencionado propriamente. Mas eu teria que me conformar e esperar até que algun deles me contasse.
Fiz tudo muito automaticamente, incluindo tomar banho. Fiquei um tempo sentindo a água quente nos meus ombros mas não fez tanto efeito quanto eu imaginava. Logo perdi a paciência e saí do banheiro cheio de vapor. Fui para o quarto me trocar logo, tinha medo que Debra chegasse do nada e começasse o interrogatório de sempre. O problemas nunca era comigo, era sempre ela que me tirava a calma, portanto eu evitava que ela tivesse a oportunidade fazê-lo.
Escolher uma roupa foi um problema que eu tive pela primeira vez em muito tempo. Em 99,99% dos casos eu usava qualquer coisa e estava ótimo, mas não naquele dia, não naquele momento. Perdi uns bons 15 minutos colocando várias blusas - com certeza eu iria de jeans e um All Star comum, isso nunca mudaria - até que me conformei em usar uma camiseta mais arrumada, com uma foto do jovem Marlon Brando na estampa em preto e branco. Nem tentei passar algum tipo de maquiagem, eu não sabia usar nada daquilo e pronto. Fiz um esforço praticamente escutando voz de Debra me reprovando e coloquei um par de brincos pequenos, pensando no quanto me arrependeria mais tarde porque eles sempre inflamavam as minhas orelhas.
Tranquei toda a casa e peguei a chave do carro de Gavin. Em poucos minutos já estava mais do que nervosa e dirigi até o hospital com pressa desnecessária. Eram apenas sete e meia da noite e já estava bem escuro, as noites no inverno realmente eram mais longas. Parei o carro no mesmo lugar no estacionamento do hospital e logo liguei para a casa de Jake. Ninguém atendeu, então ele já devia estar chegando, ou assim eu esperava.
Passei direto da recepção para a sala de Gavin e repeti as duas batidas até que ele me dissesse para entrar. Sua mesa continuava desorganizada e ele corria de um lado para o outro com uma bandeja cheia de frascos de vidro.
- Má hora? - perguntei, saindo do caminho para que ele passasse.
- Não, nós só tivemos um menino de 11 anos que foi picado por um escorpião, tenho que levar todos esses soros para o laboratório. - ele respondeu, saindo com pressa pela porta e sumindo no corredor branco. Um cheiro de álcool e antibiótiocos ficou no ar quando ele passou e permaneceu quando ele voltou. - Me desculpe, aquilo tinha que ser rápido. - ele recolheu uma pasta e rumou para a porta comigo. - E então? Pizza ou comida chinesa hoje?
- Na verdade, pai, eu vou...
- Você está arrumada demais. - ele comentou olhando para mim enquanto passávamos pelo corredor que levava à recepção.
- Estou? - perguntei, arregalando os olhos. - Eu vou sair hoje, quer dizer, agora. Vou para Seaside.
- Com quem?
- Jake. - respondi rapidamente.
- Ah é? - ele se mostrou interessado e parou na porta de vidro da recepção. - Nossa, que coisa... boa, filha, de verdade.
- Ok, então ele vem me buscar aqui e aqui estão as chaves do carro. - peguei as chaves do bolso e entreguei para ele.
Dei uma olhada para o estacionamento procurando algum sinal de Jacob e nada. Gavin acompanhou o meu olhar ainda com interesse e depois se voltou para mim.
- Quer que eu espere com você? - ele perguntou.
- Não precisa, pai, ele não deve demorar. - respondi, esperando mesmo que ele não demorasse.
- Sei... - Gavin me olhou desconfiado. Ele ergueu as sobrancelhas olhando para algum ponto distante e eu me virei na mesma direção. Agora sim parecia que era Jake e eu estava finalmente livre das perguntas inconvenientes.
- Ali está ele, vou com você até o carro. - Gavin me veio com essa, fazendo meu coração parar por uma fração de segundo.
- Pai, pelo amor de Deus, você prometeu que nunca mais ia fazer esse tipo de papel, lembra? Já não basta a minha mãe. - insisti antes que ele resolvesse dar um passo.
Gavin me olhou por alguns breves segundos, levantando a chave do carro e indo na direçao do mesmo.
- Ok, dessa vez passa... Mas só porque eu já estou atrasado para a maratona de House. - ele respondeu. - Eu queria muito ser hipócrita e te dizer para não voltar tarde, mas eu e sua mãe, na sua idade, já éramos quase pais, então...
- Tá, pai, já entendi. - arregalei os olhos para aquele aviso sem noção.
- Só não vire mãe essa noite, ok? - ele terminou, abrindo a porta do carro.
- Pai! Eu só vou assistir um filme, só isso! - quase gritei para que ele pudesse escutar.
- Mas foi assistindo um filme que você e seu irmão foram concebidos! - ele riu alto da janela, enquanto passava ao meu lado.
- EU NÃO PRECISO SABER DISSO!
Ele buzinou e saiu de vista, me deixando com a cara indignada e assustada ao mesmo tempo. Fui andando na direção do carro onde Jake estava encostado, ele estava visivelmente segurando um sorriso com muita força e eu preferi ignorar.
- O que foi aquilo? - ele perguntou assim que eu me aproximei.
- Meu pai sendo o meu pai. - respondi, provavelmente ficando vermelha não só porque ele havia escutado aquilo tudo, mas também porque ele estava mais bonito que o normal.
Entrei no carro logo reconhecendo a música que tocava. Ele entrou em seguida e deu a partida, ainda estávamos em silêncio. Eu não tinha certeza do que falar, ainda mais que os comentários idiotas de Gavin haviam me perturbado além da conta. E ele ainda havia me prometido que nunca mais me deixaria constrangida na frente de outras pessoas... eu teria de arrumar um jeito de revidar.
- Seaside não é grande coisa... - Jacob começou a dizer, me tirando do devaneio.
- Você já está menosprezando um encontro que nem começou? - perguntei com a coragem que me aparecia de vez em quando.
- Ah, então é um encontro?
- Não sei... - respondi, me fazendo de inocente. - Não que eu tenha ido a muitos, mas tudo indica que esse é um. Ou pelo menos tem quase todos os elementos necessários para se tornar um.
- Quase todos?
- É, acho que o resto deve vir com o passar do encontro, entende? Ou quem sabe não. Como eu disse, eu nunca tive muitos encontros.
- Nem eu. - ele confessou, abrindo as janelas e deixando o vento não muito gelado entrar. - Feliz dia da inexperiência. Tem certeza que quer sair com alguém que teve mais cicatrizes na infância do que encontros em toda a vida?
Mordi o lábio reprimindo mais um dos sorrisos involuntários. Pelo canto do olho vi que ele sorria abertamente, então deixei de me conter.
- Não sei... acho que você pode me convencer. - respondi, sentindo meu rosto queimar.
Jacob não respondeu, só voltou os olhos para a estrada mal iluminada. Como qualquer outra cidade do condado, Seaside não era muito longe, mas era distância o suficiente para que o silêncio constrangedor me matasse lentamente. Mas eu tinha que ser otimista, afinal de contas eu conseguira ação demais para um dia só.
- Eu nunca mais vou te deixar escolher filme algum.
Era muito injusto. De todas as maneiras possíveis que Seaside City pudesse me entreter, não imaginei que fosse com uma semana dos filmes clássicos. Escolher entre os meus filmes favoritos de sempre era a maior maldade que já fizeram comigo. Jacob continuou com a ideia de que o filme seria por minha conta, então escolhi o do Orson Welles por intuição, eu podia jurar que ele iria gostar, mas a reação dele não foi exatamente boa.
- Por que não? - perguntei, indignada, enquanto saíamos da sala não muito cheia do pequeno cinema. Não era lá um evento muito popular. - Cidadão Kane é considerado o melhor filme do mundo, sabia?
- Por mim pode ser o melhor filme do mundo, o filme do século, do milênio... eu quase morri de tédio. - ele continuou e riu da minha expressão dramática. Dava pra ver que ele não tinha gostado do filme, mas o que ele falava era só para provocar a minha raiva... e estava conseguindo. - Afinal, o que é rosebud?
Revirei os olhos e contei até dez mentalmente. Orson Welles provavelmente estava se revirando no túmulo, e eu quase estava me revirando ali também. Mas eu não conseguia ficar com raiva de verdade; eu é que não conseguia conter os meus sentimentos sobre um filme que eu amava tanto.
- É o trenó. - respondi, observando a rua mais ou menos movimentada por onde andávamos. - Sabe quando mostram os móveis dele pegando fogo nos últimos segundos do filme? Então, rosebud é o trenó que ele brincava quando era criança... Ah, por favor, você viu a mãe dele chamando ele para entrar em casa quando estava nevando! Aquilo era rosebud!
- Eu não sei se eu fico com mais raiva de ter passado mais de duas horas assistindo esse filme chato ou do fato do "grande enigma" - ele fez aspas com os dedos - da história toda ser um trenó. UM TRENÓ!
- Suas palavras me magoam profundamente. - fiz mais drama enquanto ele ria. - O trenó é uma metáfora... Ele ficou tão famoso e tão cercado pela fama e pelas pessoas tentando cuidar da vida dele... tudo que ele queria era ter continuado naquela infância, não ter se separado da mãe e tudo mais. Era um jeito dele lembrar de como era a vida dele antes de virar o então chamado Cidadão Kane.
- Um filme ruim é um filme ruim - Jake insistiu na opinião - Não adianta a profundidade da mensagem que ele passa, é ruim e pronto. A partir de agora só eu escolho os filmes.
Nós não tinhamos exatamente um plano a seguir depois do cinema. Quer dizer, na minha ingênua mente, nós discutiríamos por horas sobre o quanto o filme foi bom, não achei que eu tivesse que explicar em simples palavras o que o Orson Welles quis dizer com a melhor história de todas. Agora só estávamos andando sem rumo por uma cidade que eu mal conhecia.
- Então quer dizer que a gente vai sair de novo? - perguntei, olhando para baixo para esconder o rubor no meu rosto.
- Ahn... acho que sim, eventualmente a gente vai se encontrar mais uma vez, não é? - ele respondeu como mesmo tom de voz nervoso que eu responderia.
- Claro, eventualmente a gente vai assistir um filme que você vai escolher. - assenti, observando com calma as vitrines ao nosso lado. Passamos por um restaurante italiano e eu logo o puxei naquela direção. - Vem, vamos comer aqui.
Ele não teve tempo de responder, assim que eu empurrei as portas de vidro um aroma indescritível tomou conta, então estava decidido. Um pouco mais determinado, Jake passou na minha frente e apontou para uma mesa ao lado de uma janela com cortinas vermelhas e rumou para lá. Andei ao seu lado e já devia estar no mesmo tom vibrante da decoração quando ele puxou a cadeira para mim, eu realmente não estava acostumada a esse tipo de coisa.
- Eu acho que já comi aqui... - comentei distraidamente, observando o local animado e apinhado de gente.
- Ah é? Veio aqui em algum encontro, depois de fazer um cara assistir um filme horrível? - ele perguntou com cara de inocente e eu mostrei a língua na sua direção.
- Claro que não! - sorri, ignorando a parte do filme ruim. - Eu vim aqui há muito tempo, provavelmente com o meu pai. E eu já disse, nunca fui a muitos encontros.
Pude escutar Jake dizendo algo como não dá para acreditar, mas antes que eu pudesse falar alguma coisa o garçom apareceu ao nosso lado para anotar o pedido. Nem Jacob e nem eu queríamos algo complicado demais de se pronunciar, então pedimos uma pizz gigante. Por gigante entendi que ele teria de comer a maior parte, mas guardei o comentário para mim mesma.
- Como assim "não dá para acreditar?" - perguntei, assim que o garçom saiu de perto. Jake me olhou com cara de interrogação e eu repeti o que eu havia escutado.
- Sobre encontros, sabe... não dá para acreditar que você é tão sem jeito nisso quanto eu.
Observei ele por alguns segundos. Todos os seus traços eram tão familiares e, ao mesmo tempo, diferentes do que eu sempre havia me lembrado. Claro, tudo que eu tinha na minha cabeça eram lembranças de quando éramos praticamente bebês e isso não era grande coisa. Mas eu nunca, nem em sonho, ia imaginar que ele se tornaria um cara tão legal e, mais uma vez eu estava admitindo isso mentalmente, tão bonito.
- Eu acho que você não me conhece tão bem quanto parece. - respondi, apoiando o meu rosto na palma da mão e me virando para ele. - Vamos lá, o que você sabe sobre mim?
Jake torceu as sobrancelhas tentando entender que tipo de pergunta era aquela. Ele começou a falar algumas vezes, mas parou e recomeçou até que o tom de voz saísse mais firme.
- Eu sei que o seu nome é , que o seu irmão se chama Matthew e seus pais são Gavin e Debra. - ele começou e eu revirei os olhos para as informações óbvias. - Ok, tem mais. Eu sei que, quando a gente era criança, você chorava quando o seu pai te deixava sozinho com a sua mãe, por isso você sempre ia para esses "programas de homem" como pescar, jogar futebol e coisas assim. Aliás, eu quase nunca te via perto da sua mãe e o seu irmão vivia grudado nela. E eu sempre achei isso estranho, eu vivia chamando ele para brincar e quem sempre vinha era você.
"Vejamos... eu sei que você tem um péssimo gosto para filmes... é brincadeira! Sei que fica andando de um lado para o outro até achar algo para fazer e sei que você fica muito mais bonita com o cabelo comprido... eu lembro que era quase tão curto quanto o do seu irmão, você vivia dando nós e cortando ele sozinha."
Eu já tinha certeza que todo o meu sangue havia sido canalizado para o sino do meu rosto. Um sorriso tímido foi reprimido com todas as minhas forças até que eu conseguisse falar alguma coisa.
- Mas tudo isso que você sabe é sobre uns bons 10 anos atrás! - sorri, recuperando a voz. - Sabe o que você não sabe sobre mim? - ele levantou as sobrancelhas para que eu respondesse - Você não sabe que eu só tive um único namorado em toda a minha vida, não sabe que eu não sei cultivar novas amizades porque todo mundo é estranho demais na minha concepção. Você não sabe que eu consegui abrir uma exceção quando eu conheci os seus amigos, porque eles, assim como você, são estranhos, sim, mas de um jeito legal e que me dá vontade de ficar perto pra sempre. Você não sabe que eu não me importo de ficar sem escutar música por um tempo e que a minha banda preferida se chama Mellowdrone; é uma banda diferente e poucas pessoas conhecem, por isso eu gosto tanto.
"Ah sim, e os únicos sabores de sorvete que eu gosto são pistache e abacaxi, eu não como alcaçuz desde os 14 anos e eu detesto McDonald's."
- Você. Detesta. McDonald's. - ele pronunciou palavra por palavra com calma.
- E daí? Tem gente que não gosta...
- Você é que é muito estranha. - ele disse bem sério e eu ignorei. - Só faltou uma coisa que eu tinha certeza que você ia dizer.
- O que? - perguntei, prestando atenção.
- Seu filme favorito. - ele respondeu erguendo as sobrancelhas como se fosse óbvio.
- Ah sim... é que muda sempre, depende do dia. E cada um tem um motivo especial.
- Atualmente qual é?
- Acho que é Quase Famosos, porque a trilha sonora é excelente e é uma época que eu gostaria de ter vivido. - respondi um pouco sonhadora.
- Esse parece ser um filme decente, posso dar uma chance.
Sorri contra a minha vontade e levantei o rosto quando o garçom finalmente trouxe a nossa pizza. Comi com calma enquanto Jake e eu ríamos das pessoas que dançavam a música italiana do restaurante ou de qualquer outra besteira. Me surpreendi quando vi que a pizza havia acabado - e que o mérito não fora somente dele. Era um lugar muito bom e eu tinha que voltar mais vezes.
- E qual é o seu filme favorito? - perguntei, fazendo ele acordar de algum devaneio.
- Não sei se eu tenho algum em especial - ele respondeu vagamente. - Não sou alucinado feito você, mal me lembro os títulos.
- Isso não é nada saudável, nós precisamos achar um filme para você dizer que é seu preferido. - me entusiasmei com a ideia. - Já tenho vários em mente.
- Se todos forem do mesmo estilo que esse horrível, eu dispenso a ajuda. - ele fingiu um ar de arrogância, mas logo começou a rir.
- Ah, para, não foi tão ruim assim!
Continuamos a briga para falar de Cidadão Kane até que ele se levantou dizendo que iria pagar a conta, ignorando meus protestos de que deveríamos dividir. Enquanto ele estava na parte da frente do restaurante, tirei o celular da minha bolsa pela primeira vez na noite e, surpresa, havia uma mensagem. De Daniel.
Espero que esteja sentindo a minha falta... porque eu sinto a sua.
Guardei-o mais uma vez, ignorando o que havia lido. Me levantei depressa assim que Jacob se aproximou e fomos em direção à porta de vidro. O restaurante continuava cheio, por isso não percebi o quanto era tarde; mesmo que nenhum de nós dois tivesse aula, ainda assim era tarde para ficar na rua.
- Desse jeito eu vou achar que a minha companhia é insuportável... - ele comentou, mas mesmo que tivesse seu tom de piada acabou me deixando sem graça.
- Claro que não! Não é nada disso. - me apressei para responder. - É que eu não quero chegar em casa e encontrar a minha mãe me fazendo milhões de perguntas e ainda reclamando da hora que eu chego.
- Por que você e ela não se dão tão bem quanto você e o seu pai? - ele perguntou de uma vez.
Eu não tinha resposta para aquilo. Simplesmente Debra e eu éramos muito diferentes e não conseguíamos concordar em nada, ela vivia me criticando... eu acabava perdendo a vontade de conviver com ela mais do que o necessário. Por isso Hayden na minha casa era tão bom, ela sim passava tempo de qualidade com a minha mãe e a mantinha ocupada por um tempo.
- Sei lá... a gente só não se entende direito, às vezes passando do limite do suportável. - respondi sinceramente. - Com o meu pai é mais fácil, nós somos parecidos em quase tudo.
- Eu entendo. - ele concordou, e eu sabia que ele não daria continuidade no assunto. Ele próprio mal falava da falecida mãe que eu me lembro vagamente. - Então essa sua vontade de voltar pra casa é só por causa da sua mãe, certo?
- Certo. Nada a ver com a companhia, com o jantar e muito menos com o filme. - respondi tentando soar divertida. - Foi tudo ótimo.
Jacob seguiu em silêncio por algum tempo. Estávamos chegando perto do lugar onde ele havia estacionado o carro, mas ainda era uma pequena caminhada. Estava bem frio, para variar, e eu já sentia meus braços arrepiarem pela falta de qualquer casaco. Dessa vez eu não ia deixar que Jake percebesse, a culpa era sempre minha por subestimar o frio de Warrenton, então eu merecia sofrer um pouco. Acabei notando que fomos diminuindo o ritmo no meio do caminho à medida que conversávamos, eu realmente não sabia onde isso iria dar.
- Mas sobre o que você disse mais cedo... - ele começou, interrompendo o assunto anterior - Sobre outras partes de um encontro aparecerem aos poucos... como estamos até agora?
- Bom, eu acho que cumprimos com 99% do plano. - respondi, praticamente imaginando o Will Smith em Hitch ali ao meu lado, nos instruindo sobre o que fazer e como fazer.
- E o que falta, então?
- Não sei se sou eu que devia dizer isso. - comecei, ficando um pouco distraída e realmente pensando no filme. - Quer dizer, tem gente que acha que existe um padrão a ser seguido nesse tipo de situação, mas eu não sou muito de seguir padrões. Então talvez eu mesma tenha que tomar a inicia...
Eu sempre adorei essa ideia de que primeiros beijos sempre são dados no meio de uma frase, do tipo "Oi, eu estava no zoológico vendo vários macaquinhos e daí..." [N/A: um prêmio para quem souber me dizer que filme é esse (;] Ou então quando fica essa tensão no ar, as duas pessoas sabem que vão acabar se beijando e isso vai acontecer a qualquer momento, mas ninguém sabe quando ou sequer quem vai tomar o primeiro passo. É desse tipo de padrão que eu estava falando e acabou que meu primeiro beijo com Jake foi uma mistura das duas ideias: da frase interrompida e da incerteza sobre quem tomaria o primeiro passo. Foi uma bela combinação.
Antes que eu pudesse terminar a minha teoria, senti uma mão grande e quente segurando o meu rosto com gentileza na sua direção. Não tive muito tempo de raciocinar, quando percebi eu já senti o calor do seu corpo no meu e foi, de longe, a melhor sensação de todas. Ele me envolveu num abraço que logo tirou todo o frio que eu sentia, e foi o encaixe perfeito. Ele era tão alto e me trazia algo como segurança e conforto ao mesmo tempo, nada era sem jeito ou com receio. Seu lábios movendo-se com os meus pareciam ligar uma corrente elétrica em todo o meu corpo, eu acabei sentindo o meu sangue fluir para todos os lados, finalmente não me deixando absurdamente vermelha.
Não durou muito tempo, mas foi o suficiente. Não conseguimos nos separar por completo, ficamos com as testas encostadas por algum tempo. Ele procurou os meus olhos e me prendi ali, sem ter nada para dizer - e, na verdade, sem querer dizer nada, nada caberia, nada descreveria.
- Agora são 100%. - ele foi o primeiro a falar, com a voz baixa o suficiente para que eu escutasse.
- Agora sim. - concordei, me inclinando para encostar meus lábios nos dele mais uma vez.
Quebrando o clima, voltamos a caminhar na direção do carro dele. Entramos rapidamente e em menos de 5 minutos ele já estava na estrada de volta para Warrenton. Continuávamos em silêncio e eu tentava esconder ao máximo o meu sorriso que insistia em aparecer. Fingi me concentrar nos detalhes da minha camiseta e ele se mostrou interessadíssimo no trajeto até a cidade. Não havia música, mas era melhor assim.
A volta foi bem mais rápida. Logo estávamos em frente à minha casa, não haviam muitas luzes acesas, só as da varanda e as do segundo andar. Isso era bom, sinal de que não havia ninguém para me julgar desde o momento que eu passasse pela porta da sala. Jake tirou o cinto de segurança e eu fiz o mesmo, sem saber o que viria depois. Continuamos no escuro e em silêncio, só escutando a respiração um do outro.
- Olha, nas próximas vezes a gente pode inverter a ordem. - eu comecei, timidamente. - Sabe como é, até que nós dois tenhamos prática no tema "encontros".
Observei um sorriso se formar no seu rosto fracamente iluminado pela luz dos postes na minha rua. Era uma atmosfera completamente diferente e estranhamente agradável, eu não sabia definir direito. E não era como se eu precisasse mesmo de uma definição. Só o fato dele ter segurado a minha mão e me puxado na sua direção mais uma vez fez com que tudo voltasse ao lugar certo. Agora nós dois parecíamos mais decididos, sem nenhuma trava ou pé atrás. Ele passou os braços pela minha cintura e eu acariciei seu cabelo vagarosamente enquanto nos beijávamos mais uma vez. Até um pouco antes, eu achava que o beijo que Daniel havia me dado havia sido o melhor, mas não... tinha alguma coisa em Jake que me mostrava algo diferente. Se com Daniel eu podia associar a um sinal de PARE!, com Jacob era como um coral de pessoas dizendo VÁ, CONTINUE, NÃO TENHA MEDO! Eu tinha vontade de me entregar e era isso que estava fazendo.
Alguns bons minutos depois, nós nos separamos e continuamos abraçados, eu ainda me convencia mentalmente de que não precisava entrar em casa.
- Eu preciso te contar uma coisa. - ele disse, e eu já imaginei o que fosse. - Mas eu preciso que você fique calma e que me escute até o fim.
- Eu sei. - sussurrei, tentando dar a ideia de que eu realmente sabia o que ele iria dizer. - Eu já sei.
Antes que ele protestasse, me afastei de seu abraço relutantemente e abri a porta do carro, não sem antes depositar um beijo no seu rosto. Bati a porta controlando a força e corri pelo jardim até chegar na varanda. Antes de entrar, olhei para trás e ele continuava ali, olhando para mim através do vidro da janela e parecendo mais confuso que eu fazendo as provas de Física. Não havia mais nada a fazer, então acenei na sua direção e finalmente entrei em casa, soltando um suspiro pesado. Fiquei na porta por um tempo até escutar o seu carro indo embora. Enfim subi as escadas fazendo o mínimo de barulho possível e torcendo para que Sunny não estivesse dormindo no meio do caminho.
Por enorme sorte, Debra e Gavin já estavam dormindo. É claro, Hayden e Matt estavam acordados e, felizmente, fazendo "coisas santas." Escutei as risadas de um seriado assim que passei pela porta do quarto dele para ir até o meu. Vi Hayden se esticar na cama e olhar na minha direção, mas eu passei direto e fui até o meu quarto.
Coloquei meu pijama com extrema rapidez e já estava arrumando a cama para dormir (como se eu realmente fosse conseguir), quando escutei duas batidas na porta e, em seguida, a cabeça ruiva de Hayden apareceu. Ela entrou na ponta dos pés e se sentou na minha cama.
- Onde você estava? - ela perguntou enquanto eu andava de um lado para o outro.
- Eu saí com um amigo... - respondi vagamente, escondendo o sorriso.
- Que amigo? Eu conheço? É aquele da festa na praia?
- Não! Não, é outro... é o que veio aqui no ano novo, Jacob.
Hayden pensou por alguns segundos, depois fez cara de surpresa.
- O alto, lindo e sósia de modelo da Calvin Klein?
- Não exagera. - comecei a rir, entrando para debaixo do cobertor. - Mas sim, foi com ele.
- E como foi? - ela se espreguiçou na cama.
- Foi bom... - respondi simplesmente, apagando o abajur.
- Só isso? - ela insistiu e eu assenti. - , eu te conheço muito bem... esse seu sorriso não me engana.
Ela saiu sem me deixar responder, deixando a porta semi aberta. Respirei fundo algumas vezes tentando reunir tudo que havia acontecido no meu dia: começou um tédio, descobri que lobisomens existem e que meu melhor amigo de infância é um deles... e que, aparentemente, está apaixonado por mim. Também descobri que o gosto dele para filmes é que é ruim e que, pelo menos era o que parecia, essa ideia dele gostar de mim me agradava muito, porque o sentimento começava a ser mais do que recíproco.
N/A: Música do capítulo: Wolf Like Me - TV on the Radio. Clique aqui e coloque para carregar.
Eu costumo associar melhor o ambiente que eu escrevo quando já sei como ele é. Então eu peguei algumas imagens dos locais mostrados anteriormente (e alguns que serão citados mais para frente) para dar uma ideia de como é a cidade:
Casa (Mas imagine algo mais cheio de árvores em volta)
Warrenton High School
Ponte que liga Warrenton a Talapus
Lago Cullaby
No primeiro dia de aula logo após as férias de Natal eu estava sozinha; Matthew havia levado Hayden no aeroporto logo cedo, então Gavin teve que me dar carona até a escola. Enquanto eu andava calada até chegar no meu armário, comecei a pensar que deveria fazer alguns amigos por ali, eu não poderia depender de Daniel, Lisa e Matthew o tempo todo. Ainda havia Ellie, mas eu ainda não tivera chance de me aproximar dela de verdade - e nem teria agora, pelo visto, com tudo aquilo que não saía da minha cabeça. Minha prioridade, na verdade, era encontrar Daniel e exigir as respostas mais claras que eu merecia.
Ainda sem sinal de ninguém que eu procurava, nem mesmo de Ellie. Recolhi meus livros no armário e andei até a minha primeira aula, que também era de Lisa, pelo menos. Me sentei no mesmo lugar de sempre e fiquei olhando para a porta, esperando que ela chegasse logo. Várias pessoas entravam, mas nem sinal dela. Só quando o sinal bateu e o professor de Matemática apareceu que eu finalmente vi Lisa entrando atrás dele, com pressa e os olhos levemente arregalados. Ela imediatamente me localizou e veio na minha direção, se sentando na carteira da minha frente. Enquanto todos ainda conversavam e o professor ainda se organizava, ela se virou para o meu lado e começou a falar com a voz contida e baixa.
- Eu sei que você deve me odiar agora, mas eu não pude ficar muito tempo aquele dia, o Daniel realmente não podia saber que eu fui te procurar.
- Não precisa se desculpar, eu já falei. - insisti, falando mais baixo ainda. - Eu só quero conversar com vocês dois, com calma e com tempo de sobra.
- Por que? - ela perguntou com certo medo no olhar.
- Por que? - repeti, arregalando os olhos. - Não sei, Lisa, por que será? Talvez seja porque vocês dois são... bom, você sabe, e eu não saiba nada e preciso pelo menos acalmar a minha cabeça de qualquer pensamento maluco que possa surgir. Que aliás, já surgiu!
Lisa me lançou um último olhar antes de se virar para frente quando o professor começou a falar. Soltei um suspiro pesado e me encostei na cadeira, sabendo que a minha concentração estaria bem longe dos números do quadro e do livro. Eu precisava falar com os dois o mais rápido o possível, mas não era bem o que parecia acontecer; os minutos se arrastavam e meu pensamento ia para bem longe da aula.
Quando finalmente os dois horários passaram, Lisa veio atrás de mim no corredor em direção à nossa próxima aula, essa sim com Daniel. Ela não havia dito nada, mas não era necessário, pelo olhar dela pude perceber que ela não estava gostando nada que eu tivesse pensado demais no assunto. Mas isso já não me importava, eu só queria tirar aquelas desconfianças da minha mente. Além do mais, eu teria que perguntar novamente sobre lobisomens, porque aquele simples comentário de Lisa não havia me convencido, e havia algo de muito estranho em Jacob quando eu escutei sua conversa com Sam - bom, tudo era estranho, não era exatamente uma surpresa.
Daniel estava parado na porta da sala de História, já olhando significativamente para nós duas. Todo aquele efeito que ele tinha em mim, a razão perdida, o deslumbramento... não acontecia mais. Simplesmente tudo fora embora no momento que eu comecei a ficar desconfiada. Um encantamento que foi desfeito de uma hora para outra e que, aparentemente, dera lugar a outro.
Ele entrou quando nós duas passamos e sentou-se do outro lado da sala. Minha vontade era de gritar e pedir logo que os dois me esclarecessem tudo, mas eles continuavam fugindo. E se eu não resolvesse naquele dia, eu provavelmente ficaria louca. Não conseguia focar a minha atenção por mais que 10 minutos em qualquer outra coisa, isso me custaria um bom dia a mais de estudo, mas não me importava.
Mas um sinal havia tocado e lá estava eu, ao invés de sair correndo, andando na direção de Daniel com determinação. Ele se levantou do lugar e se posicionou na minha frente, talvez fosse intimidador, mas eu estava fastando todo o medo de mim - não sabia por quanto tempo seria eficaz, mas enquanto estivesse funcionando, tudo bem.
- Me encontrem na biblioteca daqui a meia hora, vocês duas. - ele disse, simplesmente, com a voz baixa e sem emoção nenhuma.
Percebi Lisa ao meu lado, também muito séria. Era o intervalo do almoço, então a biblioteca estaria praticamente vazia, a perfeita oportunidade para falar livremente sobre o assunto.
Nem me importei de estar com fome, só fui direto ao lugar marcado enquanto Lisa usava a desculpa de guardar os livros no armário. No canto mais extremo, bem longe da janelas e da mesa da bibliotecária, estava Daniel, com a cabeça abaixada para um livro qualquer. Andei sem pressa para a mesa onde ele estava e puxei uma cadeira na sua frente. Ele continuou com os olhos no livro e só se movimentou quando Lisa chegou ao seu lado e se sentou. Respirei fundo três vezes e encarei-os de verdade.
- Vocês me devem algumas respostas.
Os dois só se entreolharam como se não entendessem do que eu estava falando.
- Não se façam de retardados - continuei, abandonando a voz vontida e partindo logo para a minha vontade desesperada. - Eu não tive a chance de conversar direito com nenhum de vocês desde o Natal, desde que e vi você - apontei para Daniel - cheio de sangue. Tudo bem, eu acredito no que você me disse sobre vampiros, por mais surreal que seja... Mas você não me disse praticamente nada. Quer dizer, nada sobre vocês dois. Como eu posso saber se eu não preciso mesmo ter medo?
- Eu já disse que nós não bebemos sangue humano. - Lisa disse. - Nós não podemos.
- Podem sim. - afirmei. - Até parece que, para vocês, deve ser muito difícil fingir um assassinato normal na cidade, ou um acidente. Vocês podem não se alimentar de sangue humano agora, ou pelo menos frequentemente, mas eu tenho certeza que vocês já fizeram alguma coisa por aqui. Sei lá, vocês podem muito bem terem pego alguém para beber do sangue e, depois, apagado a memória ou hipnotizado a pessoa... - Lisa fez sinal de me interromper novamente e eu acelerei a fala - E não adianta me dizer que vocês não podem fazer isso porque eu sei que podem. Eu mesma já senti essa "influência" que vocês tem na minha cabeça... ou melhor, que vocês tinham. No momento que eu me afastei de vocês dois eu já senti a diferença... Como se antes eu só visse o que estava precisamente na minha frente e ignorasse a visão periférica. Então, podem começar a pensar no que vocês vão me dizer.
- E o que é que você quer que a gente te diga? - Daniel perguntou de forma ameaçadora, se inclinando na minha direção com os braços cruzados. - Que nós somos os bonzinhos da história? Que nossa existência é assombrada pela imortalidade nas trevas? Eu deixei bem claro para você que sangue humano é a melhor coisa que eu já provei, mas que eu não bebo atualmente. Nós não somos herois ou mocinhos de um best-seller, nós só queremos ter uma vida normal na medida do possível.
- Isso é verdade... - Lisa sussurrou sem olhar para mim. - Não importa o que a gente diga, você nunca vai acreditar. Se saírmos um milímetro fora da linha, nossos "padrinhos" - ela fez aspas com os dedos - chamam nossos criadores imediatamente e aí sim nós estamos mortos.
- E por que os seus criadores não ficam aqui com vocês? - perguntei.
- É complicado, eu já te disse isso antes. - Daniel começou, mas a voz baixa de Lisa o interrompeu.
- Você meio que sabe o motivo, .
Até Daniel olhou para ela sem entender. Eu fiz a mesma cara, sem fazer ideia do que ela estava falando. Logo eu que estava completamente perdida já ia saber de alguma coisa?
- Como assim? - ele perguntou antes que eu o fizesse.
- Você me perguntou sobre lobisomens aquele dia. - ela respondeu, olhando para mim. - É por causa deles.
Daniel arregalou os olhos na minha direção, fazendo uma cara como quem havia tomado um soco no estômago. Aquela velha sensação da cabeça pesando voltava aos poucos, me fazendo ficar confusa na minha própria mente.
- Ela sabe? - Daniel disse, sem direcionar a pergunta para nenhuma de nós duas. Lisa assentiu, embora eu soubesse dos lobisomens bem menos do que eu sabia sobre os vampiros. - Como?
- O que vocês tem a ver com lobisomens?
- Anjos da Noite, toda essa merda, é isso que temos a ver com eles. - Daniel respondeu na frente dela.
Ah, aquilo era meio óbvio. Lobisomens e vampiros, inimigos mortais. Por um segundo eu achei que fosse idiotice, mas então me lembrei da bagunça toda que eu havia me envolvido e pensei no quanto aquilo não era nem um pouco improvável. Aliás, fazia total sentido.
- Ok, eu vou precisar de um pouco mais de informações. Lisa, eu não sei praticamente nada de lobisomens, na verdade, eu só sei que eles existem... e você mesma me falou que não conhecia nenhum!
- Tá... eu menti, mas só porque eu não sabia que tipo de coisa você estava procurando! - ela se apressou em dizer. - Olha só, há um grupo de lobisomens ou transmorfos, como queria chamar, na reserva Talapus.
- Eu sei, isso eu já percebi. - revirei os olhos, ansiosa por respostas mais concretas e diretas.
- Os lobisomens expulsaram nossos criadores daqui. - Daniel respondeu. - Por isso eles não voltam, mas Lisa e eu não podemos ir para outro lugar, não é fácil arrumar alguém que, primeiro, acredite em vampiros e, segundo, aceite morar com dois deles. Nossos padrinhos tem uma espécie de acordo com os lobisomens. A garantia que nós não "perturbamos" o fluxo sanguíneo é que nos mantém na cidade, a salvo de qualquer ataque de ambos os lados.
Então eles realmente não se alimentavam de humanos... ou, como eu havia pensado antes, se alimentam, sim, mas deixam isso bem escondido e manipulado para não acabarem expostos. Lisa e Daniel pareciam saber bastante sobre os lobisomens, e eu ainda não tinha ideia do que pensar sobre eles.
Cruzei os braços sobre a mesa e encostei minha testa na madeira, sentindo o cheiro de produto de limpeza. Eu tinha vontade de rir, chorar e gritar ao mesmo tempo, mas estava cansada demais para qualquer um dos três.
- Você já está envolvida demais com os lobisomens. - ouvi Lisa dizendo, parecendo rir com escárnio. - Bem mais do que com nós dois.
- Ei, o que vocês sabem sobre isso? - levantei meu rosto, me lembrando instantaneamente das duas conversas que eu havia escutado, entre Harry e Billy e entre Jake e Sam. Ainda estava sem resposta alguma e eu não parecia perto de descobrir nada.
- Isso você tem que perguntar a eles, aos seus amiguinhos transmorfos. - disse Daniel com um ressentimento explícito.
Era engraçado vê-lo desse jeito, eu quase podia sentir algo como ciúme vindo dele. Claro, não havia a menor possibilidade dele saber sobre Jake e eu, ou sobre qualquer coisa que acontecia em Talapus... Bom, na verdade havia sim. Eu me recusava a admitir que e era a que menos sabia das coisas, afinal de contas.
- Nós já te demos tudo. - Daniel levantou as mãos no ar e se jogou na cadeira. - Agora é com eles também. Ah, e nós ficaríamos gratos se você não nos mencionasse demais... sabe como é, nós não somos os cidadãos favoritos por aqui.
- É, isso seria bom... - Lisa concordou, ainda estranhamente quieta e insegura, como eu nunca havia visto. - , nós nunca contamos isso a ninguém... Se você sabe da verdade, é porque você significa alguma coisa para nós dois. Eu só peço para você confiar na nossa palavra, só isso. Não podemos te obrigar a aceitar tudo isso, só queremos a confiança recíproca.
- Claro, claro... - respondi, realmente aceitando o que ela havia dito. - Eu nunca diria isso a ninguém. Olha, eu só fiquei muito preocupada e tudo aquilo vindo na minha cabeça de uma vez só... Vocês obviamente sabem, não é algo fácil de aceitar assim do nada.
- Nem me fale. - Daniel comentou com desdém.
Ignorei e continuei conversando normalmente, agora sim meus nervos acalmados e em seus devidos lugares. Minutos depois, nós três saímos da biblioteca em silêncio. No corredor, Daniel fez menção de ir para o campo de futebol, enquanto Lisa e eu tomamos o mesmo caminho. Mais uma vez, ela estava perturbada e calada como nunca, isso não pude deixar de notar. Mas até que dava para entender, afinal, eu também estava assim - tudo bem, com um toque mais histérico e nervoso.
Não digo que as aulas seguintes foram produtivas, mas com certeza as explicações na biblioteca favoreceram para que eu mantivesse o foco por mais tempo. Claro, não tanto assim, eu ainda tinha que arrumar um jeito de voltar para Talapus e falar com Jake urgentemente. Por mais que eu parecesse determinada e decidida, como é que eu chegaria até ele e falaria uma coisa dessas? Já era a segunda vez que eu me aventurava num assunto que não era do meu domínio. Ah sim, e eu não sabia o que esperar quando o visse pessoalmente de novo; depois do nosso encontro só nos falamos por telefone duas vezes, até tentamos sair mais uma vez, mas ele sempre tinha que desmarcar. Ficava com aquele ar de "quando vamos falar sobre o que aconteceu em Seasise" que me deixava com um vazio na cabeça.
Lisa me olhava com uma cara preocupada, talvez eu estivesse deixando as emoções transparecerem com muita facilidade. Estávamos no lado de fora da escola, matando alguma aula extracurricular qualquer - ela era excelente aluna e eu era um desastre em qualquer coisa que exigisse espontaneidade, então não era como se algum professor fosse perder seu tempo atrás de nós duas. Ela continuou me encarando como se tivesse algo de muito errado com o meu rosto e, com muito jeito, decidiu perguntar.
- , você está passando bem?
- Não sei se "bem" descreve o que eu estou passando, sabe. - respondi, me referindo a tudo. - Mas digamos que não estou nos meus melhores dias.
- Ah, sei... Quer comer alguma coisa? Você está sem cor no rosto e a sua pulsação diminuiu um pouco. - ela perguntou, acrescentando esses detalhes.
- Tudo bem, acho que eu preciso comer mesmo. - respondi, indicando com um aceno uma lanchonete que ficava no quarteirão à frente da escola. - E, Lisa, me dê um tempo para me acostumar com a ideia antes de vir com comentários do tipo "sua aorta está meio fraca hoje", ok? - perguntei, forçando um sorriso.
Ela revirou os olhos e sorriu junto, me acompanhando na direção da lanchonete. Muita gente - ou o que entende-se por muita gente em Warrenton - matava aula por ali, na maioria das vezes as aulas da tarde. Era um tanto perigoso, uma vez que todo mundo na cidade já te viu usando fraldas e conhece os seus pais, as chances de alguém conhecido ver todo aquele pessoal fugindo da escola era grande. Não era da minha conta, afinal, Debra e Gavin se preocupavam mais com Talapus do que com Warrenton e Lisa... deixa pra lá.
Assim que entramos comecei a sentir o cheiro forte de café que tomava conta do locar. Lisa se sentou em uma bancada enquanto eu pedia um muffin e um suco. Sentei-me ao seu lado e esperei pelo meu pedido chegar. Algumas pessoas passavam e a cumprimentavam, ela sorria brevemente ou acenava por um momento, e depois voltava com a cara séria.
- Que saco deve ser isso de fingir para todo mundo. - comentei num tom suficiente para que só ela escutasse.
- Sabe que eu nem me importo? - ela riu e interrompeu a fala quando meu pedido chegou. Assim que a garçonete se afastou, ela continuou a falar. - Eu nunca tive isso antes, pessoas da minha idade, teoricamente, me dando oi, falando comigo... Eu era muito doente antes de... bom, você sabe. Eu mal saía de casa, só tinha alguns primos para conversar comigo, mas não era a mesma coisa.
Escutei ela falar sobre sua primeira vida enquanto comia o muffin quente. Ela não estava tão arrogante assim, aquela expressão triste e sonhadora pareceu bem mais autêntica do que a que eu já conhecia.
- Não sei o que Dan e eu faremos quando chegar a hora de "envelhecer" e dar um rumo a essa vida que dizemos ter. - ela continuou. - Às vezes eu acho que...
Lisa não concluiu o raciocínio. Ela respirou profundamente uma vez e fechou os olhos, parecia tentar se concentrar. Inspirou mais uma vez e ergueu o rosto, olhando para todos os lados da lanchonete. Eu acompanhei o seu olhar até que ela se voltou para mim com um meio sorriso fraco.
- Incrível. Parece que você conseguiu o que queria. - ela disse, abaixando a voz e rindo de forma fraca e forçada.
- Que? 'Tá falando do que? - perguntei, colocando o copo de suco meio vazio na bancada. - Lisa...?
- Você não queria falar com os transmorfos? - ela perguntou, se inclinando na minha direção para falar mais baixo. - Tem um deles aqui.
- Aqui dentro? - perguntei, me erguendo discretamente no banco e verificando todos os cantos do lugar.
- Não... ele não quer entrar aqui porque sentiu meu cheiro. Ele está la fora tentando pensar no que fazer. Anda, vai logo. - ela quase me empurrou da cadeira. - Mas não demore, não gosto de ficar sozinha.
Desci do banco e andei até a porta de vidro da lanchonete, dando uma última olhada para Lisa, que pegava vários guardanapos de papel e limpava o próprio nariz, como se estivesse com alergia - e talvez fosse. A primeira figura que identifiquei foi um homem moreno muito alto e estranhamente à vontade em usar só uma camisa cinza e uma calça. Ele se virou para mim na mesma hora que eu saí pela porta e me olhou com dúvida.
- Paul. - eu chamei, mesmo que ele já tivesse me visto.
Dei alguns passos até chegar nele, próximo a uma árvore grande ao lado da calçada. Ele respirava fundo e franzia as sobrancelhas na mesma expressão incomodada de Lisa.
- Cara, que cheiro horrível. - ele disse, dando mais uma olhada na direção da lanchonete. - Você fede a vampiro.
- Hã? Ah, isso é muito estranho... - suspirei, cruzando os braços e me virando para ele. - Eu sou muito idiota, não sou?
- Todos somos, mas acho que nesse momento você lidera o ranking. - ele riu e eu o acompanhei. - Então você já sabe de tudo. Quem te contou? O Jake, claro...
- Na verdade, Paul, ninguém me contou. Eu já sabia sobre os vampiros e aí, por uma coincidência, eu soube dos lobisomens, transmorfos, o que quer que seja.
Ele me olhou por alguns instantes, evitando respirar muito profundamente. Ele cerrava as mãos lentamente como se para controlar alguma coisa.
- Espera aí... - ele disse. - Então você sabe sobre nós, mas não sabe nada sobre nós, é isso?
- Olha, não sei se entendi direito... mas é algo assim. Eu só sei que vocês existem, ainda não tive a oportunidade de ter aulas sobre os seres místicos que não vivem no meio urbano.
- É por isso que o mala do Jake não para de pensar em você! - Paul disse, um pouco mais alto e com um sorriso no rosto. - Eu não sou bom nessas coisas de amor e tudo mais, mas olha só...
Agora ele parecia estar conversando consigo mesmo. E... amor?
- Paul, que história é essa de Jake e amor? - perguntei, interrompendo-o do monólogo.
- Que? - ele percebeu que talvez tivesse falado demais. - Não, não é nada... por que você não vai para a reserva nesse fim de semana? Podemos te dar uma aula sobre quem é foda de verdade por aqui.
- Era bem isso que eu estava planejando...
- E não se preocupe, o território da reserva é à prova de vampiros, assim como a sua casa.
- Minha casa?
Paul me olhou com a mesma expressão de dúvida. Devíamos parecer dois idiotas encarando o outro, porque eu estava com o exato olhar para ele. Me virei para a lanchonete e vi Lisa pelo vidro aberto, ela olhava na nossa direção mas não parecia impaciente - e não me admiraria ela estar escutando tudo.
- É, aquele sanguessuga que te perseguiu algumas vezes, ele só não conseguiu te pegar porque nós fomos atrás. - ele respondeu, como se fosse óbvio. - Ele anda muito pelos lados da sua casa, mas nós começamos a fazer turnos no local e então ele desapareceu. Mas sabe, eu não vejo a hora dele aparecer de novo... há muito tempo que não mato um vampiro filho da mãe.
- Espera... Daniel fica andando em volta da minha casa? E vocês estão me vigiam?
- Sim, mas não vigiando você, estamos vigiando por onde ele anda... ou você acha que a gente ia esperar o sanguessuga branquelo vir até nós? Não tivemos nenhum problema com a outra que está com você aí dentro... não que eu sinta menos vontade de quebrar cada membro do corpo dela, mas é que nesse caso eu não tenho motivos. Mas com o outro, o irmão dela... ah, esse é uma merda.
Tive a impressão de que a minha boca iria despencar, de tão aberta que estava. Fiquei estática por alguns instantes e me esqueci que Paul estava na minha frente até que ele me cutucou com a mão para que eu reagisse de alguma forma.
- Eu acho que eu preciso mesmo de uma "aula" - fiz aspas com os dedos - com vocês. Pelo visto, eu não sei de nada... nem do que acontece ao lado da minha própria casa.
- Você é quem sabe, mas deveria mesmo aparecer por lá. - ele afirmou.
- Ah, pode apostar que eu vou.
Ele se despediu rapidamente, disse que tinha que levar algo para a mãe e acenou para mim. Quando eu havia dado dois passos de volta para a lanchonete, ele me chamou mais uma vez.
- Ei, , vê se aparece para dar um oi hoje. - ele riu. - Nós geralmente ficamos no meio daquelas árvores ao lado da janela do seu quarto. Não chegamos lá muito cedo, então se estiver entediada, é só aparecer e chamar.
Paul acenou mais uma vez e saiu andando com pressa pelo quarteirão até sumir de vista. Voltei lentamente para a lanchonete, Lisa ainda estava sentada no mesmo banco e me olhava com tédio.
- Você sabia disso? - perguntei, sabendo muito bem que ela havia escutado tudo.
- Que o Dan, às vezes, fica andando ao redor da sua casa, sim. - ela respondeu, mexendo no cabelo. - E que eles ficam de vigília por perto para pegar ele, sim, isso também.
- Então o Daniel fez mesmo alguma coisa de ruim. - concluí, e ela fechou a cara.
- Disso eu já não sei, . Meu irmão esconde coisas demais, nem eu consigo saber tudo que ele faz.
Fingi engolir essa desculpa enquanto pagava pelo muffin e o suco. Saímos da lanchonete e entramos novamente na escola para pegar o material restante nos armários. Eu ainda tinha que ligar para Matthew e tentar convencê-lo de sair de casa e me buscar, mas acabou não sendo necessário. Com todo o medo e desconfiança, aceitei a carona de Daniel para casa. Nenhum de nós três falou palavra alguma durante o trajeto, provavelmente ninguém tinha coragem.
Quando ele finalmente parou em frente à minha casa, só tive tempo de agradecer rapidamente e logo descer do carro. Dando passos lentos pelo jardim, observei atentamente as árvores densas que começavam logo ao lado do meu quarto e se estendiam para formar o pedaço de floresta do bairro. Provavelmente eu não dormiria naquela noite e ficaria o tempo todo na janela até que alguma coisa aparecesse. Entrei em casa e subi os degraus de dois em dois, parando apenas para colocar a minha mochila ao lado da minha estante de livros e indo direto para o quarto de Matthew, que estava sentado de frente para o computador, jogando alguma coisa com um joystick na mão. Me joguei na cama, afundando meu rosto nos travesseiros e esperei até que ele falasse alguma coisa.
- E a Hayden? - perguntei quando percebi que ele estava concentrado demais no que estava fazendo.
- A essa hora ela deve estar em um avião cruzando o país. - ele respondeu, se virando rapidamente para trás para me olhar.
- Quando ela volta?
- Só daqui a três meses. Por que? Já sente falta dela?
- Mas é claro! - exclamei por cima do barulho alto que saía das caixas de som. - Você não?
Matt não respondeu, mas pude ver que sua expressão era fechada e um pouco triste. Resolvi não perguntar mais nada antes que ele resolvesse canalizar os sentimentos em alguma coisa mais violenta, como quando ele fazia quando éramos pequenos. Me levantei e fui em direção ao meu quarto, pegando minha mochila mais uma vez e tirando de lá os livros e o fichário que eu usava. Eu mal havia conseguido escutar as aulas naquela manhã, então teria de fazer algo para não acumular matéria. Minha cabeça estva cheia de preocupações sobrenaturais, eu só não poderia deixar que elas se mostrassem tão dominadoras. Peguei o material e desci até a mesa de jantar, espalhando tudo por ali e me forçando a prestar atenção de verdade. Não era tarefa das mais fáceis, eu lia duas ou três frases e já me esquecia. Depois de quase enfiar a cabeça nas páginas acabei conseguindo ao menos entender o que eu lia e associando ao que eu havia visto nas aulas. Pelo menos já era alguma coisa.
Fiquei impressionada com a concentração que eu consegui um tempo depois. Só fui perceber o tempo que eu havia passado estudando quando ouvi a porta da frente se abrindo, revelando Gavin e Debra recém chegando de seus respectivos trabalhos. Eles acharam estranho me ver estudando, mas ficaram surpreendentemente satisfeitos; não era o tipo de coisa que eu fazia na Flórida, sabe, estudar constantemente. A rotina era que eu sempre separava apenas uma semana antes das provas para rever tudo às pressas e isso quase sempre havia funcionado, mas não era isso que eu queria em Warrenton - além do mais, quanto melhor fossem as minhas notas dali em diante, maiores seriam as minhas chances de entrar em alguma universidade bem longe do frio de Oregon ou de qualquer outro lugar perto do Canadá. De preferência, algum lugar ensolarado e onde a existência de vampiros fosse muito improvável.
Juntei os livros e subi para guardá-los, indo tomar banho em seguida. Piloto automático ligado novamente, mas dessa vez a minha mente estava pensando em algo diferente. Ainda era cedo, oito e meia da noite, e provavelmente a "ação" devia acontecer bem tarde, o que me deixava cada vez mais ansiosa e, talvez, em pânico. Parecia que bem naquele dia algo de ruim ou fora do normal - ou o que se chama de normal - fosse acontecer. Era sempre essa ação bizarra da Lei de Murphy agindo sobre a minha vida nas situações mais impossíveis. O meu medo mesmo era de me acostumar, isso sim seria ruim.
Depois do banho, desci para agir de forma mais normal com meus pais. Matthew continuava trancado no quarto e não dava nenhum sinal de que desceria sequer para jantar. Para ser sincera, não era como se eu estivesse ligando demais; quanto menos pessoas para me vigiarem até mais tarde, melhor, assim eu não teria que ser normal com todo mundo. Eu tinha que me manter calma e com os pés no chão, mas isso parecia mais difícil do que entender sozinha todas as aulas de física desde que eu havia chegado.
- O seu irmão te buscou? - perguntou Debra enquanto eu a ajudava a colocar a mesa.
- Não, eu peguei carona com a Lisa e o Daniel. - respondi, infeliz com a pergunta que me fez voltar ao assunto indesejado.
- Entendo... pegue o carro amanhã, então. - ela disse, distraidamente.
Parei na metade do caminho para a cozinha ainda processando a frase recém dita.
- Pegar o seu carro? - repeti, indo atrás de Debra.
- É. - ela respondeu mais uma vez com o tom natural, como se ela me deixar usar o carro fosse a coisa mais normal do mundo. - Seu irmão também não vai à aula amanhã.
- Por que não?
- Ele está começando a ficar doente. - respondeu Gavin entrando na cozinha. - Acordou com febre alta e diz que sente dores no corpo todo.
Não era o que havia parecido mais cedo, ele estaca bem o suficiente para sair e levar Hayden no aeroporto, voltar para casa e passar o dia jogando FIFA no computador. Pensei que se nós dois fossemos desses irmãos que vivem atormentando a vida um do outro, eu certamente diria o que eu havia visto, mas nós definitivamente não éramos assim, então guardei o pensamento e só dei ombros.
- Então você pega o meu carro amanhã. - Debra insistiu. - Assim seu pai não se atrasa e você não precisa depender de carona.
- Uau, isso sim é inesperado. - não pude deixar de comentar assim que me sentei na cadeira. - Obrigada, mãe.
Inesperado era pouco, aquilo era um fato tão inédito e alarmante quanto a descoberta do Bóson de Higgs. Minha mãe, Debra Ann Brannon, que havia voltado para o sobrenome de solteira e se recusado a mudar novamente depois do segundo round do casamento, professora de História do Ensino Médio em Talapus, Oregon, iria me emprestar seu carro. Tamanha foi a minha surpresa que eu mal percebi o que estava comendo e só fiquei pensando na quantidade de Nãos eu havia escutado desde que tinha tirado a carteira de motoristas, e de quantas vezes eu deixei de ir em algum lugar na Flórida porque Matt não queria dirigir. Meu exagero com certeza a irritaria, portanto mais um pensamento para a lista dos que foram guardados naquele dia.
Não prestei muita atenção na conversa que eles iniciaram, apenas respondia e me manifestava o suficiente para mostrar que eu estava ali. Logo me levantei e subi para o quarto, escovando os dentes no meio do caminho e batendo duas vezes na porta de Matthew para ver se estava tudo bem. Ele abriu com a cara mais fechada do mundo e me encarou até que eu dissesse alguma coisa.
- Você 'tá doente mesmo ou é só drama de criança para não ir à aula?
- É sério, eu comecei a me sentir mal hoje de manhã. - ele respondeu, passando a própria mão da testa ao pescoço. - Eu estou ardendo em febre e só não te soco na cara por ter me tirado da cama à toa porque, primeiro, você é minha irmã e, segundo, cada músculo do meu corpo dói.
- Como você é bom ator... - fingi não acreditar só para deixá-lo irritado.
- Tchau, . - ele me mostrou o dedo do meio e fechou a porta na minha cara. Ok, ele parecia mesmo muito mal, mas não precisava ser mal educado.
Dê o play na música e boa leitura!
Entrei no quarto ainda rindo de Matthew e me sentindo relaxar um pouco. Fui até a janela e, pelo menos por um momento, a tranquei. Por mais que o tempo passasse, nunca parecia tarde o suficiente para que algum deles fosse aparecer e minha ansiedade só aumentava. Parecia um desses dias em que um filme muito bom estreiaria nos cinemas e eu estivesse na fila para entrar, como toda a expectativa de assistir logo e dar minha palavra final. Mas agora era como se eu fosse ver um filme sendo rodado e eu faria um papel especial.
Ok, a conversa melosa sobre sensações sobre filmes me cansou. Peguei meus fones de ouvido e me sentei no sofá embaixo da janela da frente por algum tempo, a mais nova das tentativas falhas para me acalmar. Cada vez mais eu precisava aumentar o volume, qualquer barulho que eu escutasse lá fora já parecia um sinal. Marquei uma hora no despertador ao lado da minha cama; assim que se passasse, eu iria para a janela até que acontecesse alguma coisa.
Vinte minutos. Mais dez. Mais cinco. Ainda faltava meia hora.
Mais cinco minutos se passaram. O tempo ficava mais lento conforme a música que eu escutava. Eu quase adormeci, mas segurei firme até os poucos minutos irem embora.
Onze da noite. Me levantei lentamente do sofá, guardei os fones na gaveta do criado-mudo e, com o coração pulando na garganta, andei até a janela, afastei as cortinas e abri apenas o vidro direito. Não estava tão frio e nem ventando tanto, ou talvez eu que não me importasse mesmo. Me inclinei para ver melhor as raízes das árvores escuras que não facilitavam a minha vista. Suspirei de insatisfação e, como se fosse um sinal, escutei um barulho. Pareciam folhas esmagadas, não apenas algumas, mas várias. Meus olhos levemente arregalados e a minha respiração pesada deviam ter chamado a atenção de quem quer que estivesse ali, porque logo vi, por mais que meu instinto cético negasse, três lobos enormes parados em fila indiana entre as árvores. Por enormes eu não quero dizer como um lobo convencional, e sim, quem sabe, do tamanho de um cavalo. O primeiro que apareceu era relativamente menor que os outros, mas não deixava de ser absurdamente grande, tinha pêlo bem claro com manchas pretas pelo peito e pelas costas. O segundo era da cor de breu, negro como o céu de Warrenton numa noite sem nuvens carregadas de chuva. Aquele era o maior, sem dúvidas, mas o terceiro não perdia tanto assim. Era praticamente do mesmo tamanho do outro, todo marrom claro com alguns tons diferentes ao longo do corpo. Os três pares de olhos enormes me encaravam sem piscar, olhando para cima enquanto eu parecia uma retardada quase saindo para fora da janela.
- Meu... Deus. - foi a única coisa que consegui dizer, o mais baixo o possível.
Mesmo que fosse estranho além da conta, os três não me davam medo, ou pelo menos não o mesmo medo que Daniel me deu quando eu o vi daquela maneira pela primeira vez. Contrariando todas as forças do mundo, eu me sentia um pouco mais calma e até aliviada em saber que eles estavam por ali - embora não fosse exatamente para me proteger, como dissera Paul, e sim vigiar os passos de Daniel. Até ali eu só me fazia de corajosa porque não havia mais nada ao meu alcance; a verdade era que eu estava com verdadeiro pânico de Daniel e Lisa estarem mentindo sobre tudo e, quando eu menos esperasse, estaria morta e não restaria nenhuma gota do meu sangue para contar história.
E Eu não sabia ao certo o que dizer; quem sabe existisse por aí uma convenção social de como se portar com lobisomens/transmorfos pela primeira vez, mas eu certamente estava perdida. Os três ainda olhavam para cima, na minha direção, e eu continuava no mesmo lugar, mas agora com os dois lados da janela abertos e cada vez mais inclinada para frente. Não deram sinal algum de surpresa ou algo parecido e eu tive uma vontade doente de rir, não sei se achava graça de tudo aquilo tão surreal e inacreditável ou se era de histeria mesmo. Provavelmente os dois.
- Ei, o Daniel está por perto? - perguntei usando o tom de voz quase inaudível. Dois deles trocaram olhares e depois se viraram nas direções opostas e para a floresta, como se estivessem verificando. Depois se voltaram para mim e acenaram brevemente com a cabeça, piscando os olhões enormes. - É, eu imaginei... Será que vocês não podem entrar aqui? Não é perigoso demais?
Os três se entreolharam e fizeram um barulho um pouco alto, como se estivessem rindo. O menor deles, que, por algum motivo, eu achava que era Seth, deu dois pequenos saltos para frente e para trás demonstrando animação. O lobo maior, de pêlos pretos, o encarou com reprovação e ele logo ficou quieto mais uma vez; exatamente como Sam fazia com os garotos quando eles o importunavam demais, então aquele era ele, o líder. O outro, de pêlos de vários tons de marrom, poderia ser Paul, já que ele mesmo havia me dito que apareceria por ali e também porque ele aparentava estar com raiva e sem paciência alguma, bem como ele era quase o tempo todo.
Eu tive que admitir que tudo era realmente engraçado.
Antes que eu pudesse recuperar o meu humor, um barulho de um galho se quebrando surgiu em meio ao silêncio, chamando a atenção de nós quatro. Sam, que eu ainda estava chamando de Sam, se colocou na frente dos outros dois, me lançou um último olhar que mais parecia Debra me xingando por alguma coisa. Imediatamente, voltei para dentro do quarto mas ainda com a janela aberta. Ele saiu correndo floresta a dentro e Paul o acompanhou, deixando Seth plantado em frente à minha janela. Ele choramingou, olhando esperançoso na minha direção e na direção de Paul e Sam, certamente querendo fazer parte de toda a ação. Ouvimos outro barulho e dessa vez era mais distante. Isso não era bom sinal.
- É ele? - perguntei, colocando a cabeça para fora da janela para olhar para o pequeno lobo. Ele acenou mais uma vez e me lançou o mesmo olhar de Sam, me mandando sair de perto da janela. - Ok, já entendi! - dei um passo para trás e fiquei na ponta dos pés para conseguir ver alguma coisa.
Mais outros dois barulhos, agora cada vez mais distantes.Eu observava tudo com o coração na mão só de imaginar o que estaria acontecendo, mas de nada adiantaria ficar ali parada - e também seria pouco útil que eu saísse pulando a janela para correr no escuro.
Seth deu um salto para chamar a minha atenção e eu olhei para baixo mais uma vez. Ele deu dois passos para trás e indicou a floresta completamente escura. Provavelmente Sam estava o chamando, porque ele piscou algumas vezes para mim e saiu correndo naquela mesma direção, me deixando sozinha com a janela semi aberta e um frio incômodo. Tranquei a fechadura e fui direto para a cama, só então sentindo o quanto eu havia ficado nervosa. Minhas mãos tremiam e meu coração batia rapidamente, custando a se acalmar. Me forcei a pensar o mínimo possível, mas era tão fácil quanto começar a me concentrar em todos aqueles livros que eu lera durante a tarde. Aquelas "viagens astrais" que eu sempre tinha seriam muito bem recebidas naquele momento, mas nunca pareceram tão improváveis de acontecer. Para camuflar a preocupação, me deitei totalmente reta e de barriga para cima, respirando bem lentamente até sentir minha pulsação diminui. E então comecei a sentir os efeitos.
Tudo pesava, meu corpo inteiro desde a ponta do dedo até cada articulação parecia feito de chumbo. Meu cérebro praticamente gritava para eu me mover ou mudar de posição, mas eu sabia que não funcionava assim, eu tinha que me manter imóvel por um bom tempo. Depois, não consegui respirar direito. Havia um peso enorme no meu peito que me incomodava, mas eu sabia que logo passaria. Logo eu teria mais um daqueles sonhos vívidos e reais que me relaxavam por completo, era disso que eu precisava.
Aquela era a minha casa, a de Warrenton, não a da Flórida. Não havia móvel algum, apenas as cortinas de renda branca ou amarelada que Debra escolhera com muito gosto. Elas voavam com o vento que passava pelas janelas e eu morria de frio, para variar. Eu andei sozinha pelas salas completamente vazias, o barulho que meus pés faziam a cada passo era como se uma tropa estivesse marchando por ali. As cores poderiam se tornar um pouco mais vibrantes... se elas existissem. Fechei os olhos por um momento e me dirigi até a sala de TV onde eu havia passado boa parte do Ano Novo com Jake e Seth, agora era só um espaço vazio. Voltei à sala e, não era surpresa, o papel de parede vitoriano se destacava cada vez mais e parecia ter vida. Eu sabia que seria assim; dessa forma funcionava o sonho lúcido, onde é possível interagir com o ambiente do sonho, desde que haja prática e, especialmente, calma com o que se vê pela frente. Subi os degraus até o corredor, mas logo voltando atrás e descendo tudo novamente. De volta à sala, eu não estava sozinha mais. A figura enorme de Jacob estava parada bem no lugar onde ele havia ficado durante o Ano Novo, estava de costas para mim mas eu podia ver um sorriso mínimo saindo dos seus lábios. Eu dei passos largos até ele, que se virou e abriu os braços para mim. Aquela era, sem dúvida, a experiência mais forte e real que eu já tivera em um sonho lúcido. Podia jurar que estava sentindo de verdade sua pele quente na minha, o perfume natural que me lembrava grama molhada pela chuva e madeira e alguma colônia masculina que eu não sabia identificar por nome, só sabia que era muito boa. Não escutei nada, nem mesmo nossas respirações; minha concentração estava voltada para outros sentidos e eu ainda estava aprendendo a controlar aquilo tudo.
Quando percebi que havia passado tempo demais naquela posição, me desviei do seu abraço apertado e dei um passo para trás para poder ver o seu rosto inteiro. Ele estava um pouco sério, mas não era como se eu esperasse que ele estivesse todo bobo alegre em tempos como aqueles.
- Isso é tão estranho. - sorri, levantando a cabeça para olhar o teto e tudo à minha volta. - Você na minha mente, e olha que eu nem precisei te chamar nem nada.
- Você sempre esteve na minha. - ele respondeu com a voz baixa.
Não pude deixar de sorrir um pouco, mas logo me conti porque não sabia aonde aquilo iria dar.
- Me desculpa aquele dia... - comecei a me desculpar, me desesperando por uns instantes. - Sabe, o dia em Seaside... Eu não sabia o que fazer, só senti que precisava te contar, e foi algo totalmente estúpido porque a verdade é que eu não sei praticamente nada sobre vocês. Eu deveria ter esperado você falar, mas é claro que eu tinha que estragar tudo. Me desculpa? Por favorzinho?
- "Por favorzinho?" - ele repetiu, voltando ao tom de voz normal de sempre. - Você é muito louca mesmo. Me traz aqui, não cala a boca e fica pedindo desculpas sem motivo algum... e ainda tira todos os móveis da casa! Não sobrou nem um sofá para a gente poder se sentar! Nem uma mísera cadeira!
Jake se aproximou e pegou a minha mão com gentileza e não a soltou. Então eu havia ficado sem palavras e me limitei a observar cada mínimo movimento que ele fazia até ele se inclinar na minha direção e encostar nossos lábios sem pressa. Tudo começou a girar devagar e, ao contrário do que pensei, me senti mais firme e presa ao chão, alguma coisa me puxava ali e não me deixava ir embora. Ele se afastou alguns segndos depois e colocou a outra mão sobre o meu rosto, mantendo contato visual.
- Eu preciso que você me escute. - ele pediu, dizendo cada palavra com muita calma. - Não posso ficar com você o tempo todo, então tome cuidado. Por favor, , me diz que vai ter cuidado... Não deixe ele tomar conta da sua mente. Ele quase conseguiu antes e vai continuar tentando. Eu preciso que você se mantenha firme até que a gente cuide do recado, não vai demorar muito, eu prometo. Sam já está morrendo de raiva e está fazendo até Seth ir nas patrulhas por Warrenton.
- Como assim? - perguntei, mesmo que eu já soubesse um pouco a resposta.
- Só me prometa isso, por favor. - Jacob pediu mais uma vez, mordendo o lábio inferior e fechando os olhos.
Falar sobre Daniel não era boa ideia. Como aquele era o meu sonho, eu tinha uma ideia do que aconteceria em seguida. Algumas coisas eu podia controlar, outras não.
- Mas ele está vindo. - sussurrei para que ele não me escutasse. - Eu juro que vou fazer o que você me pediu, Jake, mas eu vou ter que falar com ele.
- Tudo bem... - ele respondeu, um pouco decepcionado. - Eu imaginei que isso iria acontecer. Só tome cuidado, só isso. Ele pode entrar na sua cabeça e fazer coisas horríveis, não se engane com a falsa compaixão que ele demonstra.
- Eu não sou idiota. - fingi indignação, mas meu teatro não fez muito efeito porque eu começava a ficar em pânico.
Ele soltou o meu rosto e a minha mão e andou na direção da porta da frente, parando quando colocou a mão na maçaneta e se virando para mim mais uma vez. Esperei até que ele fechasse a porta e comecei a andar em círculos mais uma vez. Abri a porta de madeira do pseudo escritório de Gavin, agora totalmente vazio, e contei 10 segundos ali dentro. No fim, saí do lugar para esperar a campainha tocando e então convidá-lo para entrar, mas não foi necessário.
- Como você entrou? - perguntei assim que o vi no batente da porta fechada.
Daniel deu ombros com indiferença e correu os olhos pela casa, aparentemente ela chamava a atenção. Me forcei a ficar calma, entrar em pânico só pioraria as coisas e me deixaria presa ali por um tempo.
- Eu só entrei. - ele respondeu, a voz tão fria e diferente da de Jacob que fez meu sangue talhar.
- Sem convite?
- Só precisamos de convites para entrar onde humanos comem e dormem. - ele recitou a explicação com a paciência severamente controlada, revirando os olhos.
- Mas eu moro aqui. - frisei, levantando o rosto na direção dele.
- Meu bem, pessoas mortas não moram em lugar nenhum. - ele sorriu para mim.
Eu sabia que aquilo era um jogo muito bem preparado por Daniel, era bem o tipo de coisa que era feita para me enganar e quase me sufocar ali dentro. Se eu continuasse o ignorando nada faria efeito, mas também não era fácil.
- Gente morta? - sorri torto, entrando na brincadeira. - Claro.
- Não agora, mas quem sabe em breve. - ele respondeu, fechando os olhos. - Você ainda é uma bolsa de sangue pulsante, mas não por muito tempo.
- Por que você ainda faz a Lisa passar por todo esse inferno? - perguntei, tentando fugir do assunto.
- O que? Você acha que ela não ADORA ser o que é? - ele riu alto. - Acha que ela é meramente humana? Francamente, , ela ama todo esse seu drama e o suspense. É só uma questão de tempo até que seus amigos lobinhos estejam distraídos... e adeus linda .
Daniel realmente era um psicopata. Sua voz era cheia de falhas de tão histérico que ele estava e sua risada parecia ter sido distorcida e aumentada várias vezes. Eu já estava cansada de ouvir tudo aquilo e comecei a pensar no meu próprio corpo deitado na cama, no meu quarto, no corredor, no andar de cima e na casa inteira. Bem aos poucos fui retomando a consciência sem acordar de repente, como sempre acontecia. Sem me sentir sufocada ou estrangulada, abri os olhos e mexi os braços e mãos, um de cada vez, até me sentir ali de verdade, percebendo o que havia à minha volta. Pisquei algumas vezes até ver tudo com verdadeiro foco, mas só por um momento, antes de fechá-los novamente para enfim dormir de um jeito normal.
Eu andava feito um zumbi pela casa. Não me lembrava de quase nada do sonho da noite anterior, o que era bem estranho porque eles geralmente ficavam bem claros. E, obviamente, cada segundo do que eu havia visto antes ainda repetia sem parar. Seth, Sam e Paul na janela, o barulho de galhos sendo partidos, Daniel por perto... Isso não era lá tão fácil de esquecer ou bloquear.
Debra bateu na porta do meu quarto duas vezes para me acordar. Enquanto eu ainda reunia forças para me levantar da cama, escutei ela e Gavin dizendo tchau e, em seguida, dando a partida do carro. Me levantei, ou melhor, me arrastei da cama e andei até o armário para me arrumar. Não estava tão frio nem nada, mas tudo em Warrenton era completamente instável. Saí do quarto e bati na porta de Matthew para saber como ele estava.
- Vai pro inferno, . - escutei sua voz sonolenta e abafada pelo travesseiro. Pela porta entreaberta, vi que ele ainda estava deitado na cama e parecia cada vez pior.
- Bom dia pra você também, princesa. - ignorei. - Quer comer alguma coisa? Tem remédio por aí?
Ele pareceu pensar por um instante, depois me respondendo com uma voz mais educada, provavelmente arrependido por ter me cumprimentado de forma tão gentil.
- Eu vou ficar bem, obrigado. - ele agradeceu, levantando a mão no ar e acenando lentamente. - Mas parece que remédio nenhum faz efeito em mim, só melhora quando eu durmo...
- Ok, então até mais tarde. - me despedi, percebendo que aquela era a minha deixa.
Ele disse mais alguma coisa que eu não pude entender, fechei a porta e desci as escadas com Sunny atrás de mim. Não tinha muita fome, provavelmente acabaria sentada no mesmo balcão da lanchonete em frente à escola. Peguei as chaves do carro de Debra em cima da bancada da cozinha (eu ainda não acreditava) e rumei para a porta da sala, trancando-a assim que passei. Definitivamente era um dia ligeiramente mais bonito que o normal, enfim um boa notícia. Entrei no carro depois de tanto tempo sem me sentar no banco do motorista. Não que eu fosse uma motorista completamente leiga, eu sabia o que estava fazendo, ao contrário do que Debra achava. Saí da garagem e fiz o trajeto até o centro da cidade sem pressa alguma, até porque eu tinha tempo o suficiente.
Cheguei ao estacionamento e parei longe da entrada principal, era sempre a parte mais congestionada (pelos tantos 400 alunos do prédio). Ainda mal piscando, fiquei um tempo parada no carro, apenas aproveitando o benefício do silêncio. Logo logo seria preenchido por monólogos de Lisa, professores desleixados e conversas indeterminadas que me deixavam especialmente entediada.
Mas é claro que a minha paz durou pouquíssimo. Logo o primeiro sinal bateu e eu tive que entrar para chegar na aula de História a tempo. Esperava encontrar Ellie no caminho, mas eu não a via desde o Natal. Ela parecia ser a conexão com problemas comuns que eu tanto queria ter; quem me dera ter de reclamar somente do clima ruim de Warrenton.
Ellie realmente não aparecia em parte alguma... e nem sinal dos outros. Enquanto caminhava sozinha, prometi a mim mesma que me empenharia mais em ser uma pessoa sociável e um pouco extrovertida. Andar com vampiros e lobisomens, em partes, não me favoreciam muito, na maioria das vezes era mesmo como estar sozinha. Eu não era uma pedra de gelo, uma pessoa sem coração... só porque eu tinha problemas, digamos, "diferentes", não significava que eu era completamente alheia ao mundo em que vivia.
Meu raciocínio foi interrompido por um vampiro em questão. Eu andava vendo Lisa demais, talvez porque ela parecesse mais... inofensiva e sincera, por trás daquela primeira impressão de ser completamente insuportável e egoísta. Lá estava ela, parada no corredor e me encarando há muito tempo. Seus olhos pareciam muito vermelhos e de uma forma bem bizarra. Sua expressão era indescritível, algo entre terror absoluto, desespero contido ao ponto máximo, quase a ponto de transbordar. Dei passos mais largos até chegar nela para saber logo o que havia acontecido.
- Lisa? - perguntei, assim que parei ao seu lado e ela mal moveu os olhos.
Ela não respondeu, só me encarou de volta e me pegou pelo pulso, me arrastando (de verdade, só ali pude ver o quanto ela era forte) até a biblioteca. Mais parecia um deja vu, Daniel e ela me contando tudo aquilo no dia anterior naquela mesma mesa. Ela não se sentou, continuou me arrastando até uma estante não muito longe da mesa da bibliotecária. Haviam apenas 3 pessoas por perto, mas elas nunca nos escutariam por ali.
- Eu odeio essa sua mania de ficar só nas evasivas e nunca me contar o que é de verdade. - comentei, assim que ela se sentou no chão em meio a tantos livros e abaixou a cabeça, colocando as mãos brancas e finas ns cabelos loiros escuros.
- Ele foi embora.
Opa.
- O que? - me abaixei para ficar de frente para ela.
Lisa levantou a cabeça e apoiou-se na palma da mão, o rosto cada vez mais distorcido por algo que eu chamaria de lágrimas.
- O Daniel foi embora. - ela repetiu com mais clareza. - Ele saiu ontem à noite, voltou no meio da madrugada, correndo e muito nervoso. Pegou os documentos falsos que usamos e saiu, simplemente saiu. Ele deixou um bilhete para os nossos padrinhos e eles não quiseram me mostrar, só me disseram que ele havia ido embora porque precisava se proteger.
- Ele estava machucado? - perguntei, me lembrando da noite anterior.
- Não... ah, não sei! - ela começou a chorar. - Por que? Você sabe de alguma coisa?
- Acho que sei. - respondi, dizendo as palavras bem lentamente. - Acho que ele foi para perto da minha casa e os lobisomens foram atrás dele.
Lisa arregalou os olhos e caiu no choro mais uma vez. Eu ainda não sabia o que fazer, se devia consolá-la ou algo assim... Convenções sociais não eram comigo.
- Mas o que ele fez, Lisa? - insisti.
- , era tudo mentira! - ela colocou as duas mãos no rosto completamente vermelho e ainda intensamente triste. - , ele vinha me ameaçando desde o dia que me contou que você sabia sobre nós... Ele, ah, tudo bem, nós nos alimentamos de sangue humano, sim. Eu juro, juro que nunca matei ninguém por aqui! Mas ele já... e eu acho que os lobisomens descobriram o que ele anda fazendo, por isso foram... ah.
- Você tem ideia do que está me dizendo? - quase não consegui colocar as palavras para fora, sentindo uma raiva desconhecida subir pelo meu corpo.
- Você precisa saber de tudo antes que ele volte ou tente ir atrás de você! - ela disse, franzindo as sobrancelhas como se sentisse uma dor intensa. - Eu nunca pude te dizer nada com ele por perto. Mesmo fora da escola ele sempre está me observando. Eu não sei o que ele pode fazer, já vi Dan se metendo em tudo que você possa imaginar... É difícil dizer como ele consegue entrar na cabeça das pessoas, até na minha! Ele simplesmente faz isso, sabe? Quando quer e como quer, ele sabe exatamente como te manipular e criar uma cortina em volta da sua mente, distorcendo tudo. É isso que ele tem tentado fazer com você para conseguir o seu sangue... Por favor, , não deixe ele tomar conta da sua mente.
- E como é que você espera que eu acredite em tudo isso? - perguntei, sem tomar o cuidado de abaixar a voz.
- Você tem outra escolha? - Lisa também quase gritou. - Não. Você não vai ter tudo o que precisa se ver só pelo lado dos seus amigos lobisomens, admita que eu sou de grande ajuda... e o que eu quero é que você não deixe ele entrar na sua cabeça de novo. Caso contrário, eu não quero nem imaginar o que ele pode fazer.
"Não deixe ele tomar conta da sua mente."Não deixe ele tomar conta da sua mente. Não deixe ele tomar conta da sua mente. Não deixe ele tomar conta da sua mente. Não deixe ele tomar conta da sua mente.
Eu sabia de onde aquilo vinha.
Me levantei num salto e fiz menção de ir embora, mas Lisa se levantou junto e foi atrás de mim.
- Aonde você vai? - ouvi ela dizendo, enquanto eu andava. - Por favor, me diz que acredita em mim, por favor...
- Ok, eu acredito. - concordei, realmente acreditando mas não querendo render aquilo demais. - Mas eu só preciso que você me deixe em paz hoje, só isso.
- Você é louca? - ela perguntou, correndo e me acompanhando até o lado de fora do prédio.
Não soube responder se aquilo era loucura, mas talves fosse algo parecido. Havia falando tanto em sangue ultimamente, eu parecia sentir o meu fluir por todo o corpo. Arrepios e espasmos subiam pelas minhas costas, me forçando a ir até onde havia estacionado o carro. Abri a porta com violência e quase fechei na cara de Lisa.
- Não. - respondi sem pensar. - Só quero ver de um outro ponto de vista agora. - e dei a partida, indo para um caminho, agora, mais conhecido.
Capítulo 11
O carro de Debra havia se tornado mais do que conveniente.
Deixei Lisa sozinha no estacionamento da escola e, mesmo sem mal conhecer o caminho partindo dali, saí pisando no acelerador e virando todas as ruas pela frente. Eu não conseguia me concentrar em nada, por isso, é claro, eu ficava cada vez mais perdida - o que acabava num círculo: ficava com raiva, me perdia, a raiva crescia por minha estupidez e então continuava perdida. Digamos que eu nunca poderia fazer parte de um filme de perseguição.
Escutei meu celular tocando na mochila que eu havia jogado no banco de trás, mas não me estiquei para pegar. Na verdade, depois de alguns minutos, ignorei a música insistente e me foquei em achar o caminho para sair da cidade. Enfim cheguei ao píer e dali sabia exatamente por onde ir. O trajeto não parecia ter fim, quanto mais eu via os barcos sumindo e a sombra escura do mar se misturando às rochas da baía, mais longe Talapus parecia ser. Não havia verde em parte alguma e esse era sempre o primeiro sinal de que eu havia saído de Warrenton.
Quando enfim vi a grande massa de árvores que começava na metade da estrada senti um peso saindo do meu corpo; agora sim estava mais perto. Passei pela ponte (a mesma que ainda me deixava com dor de cabeça pelo dia que eu simplesmente aparecera dentro da floresta, completamente sozinha e tudo aquilo havia acontecido) e vi as primeiras casas da entrada da reserva. As ruas já eram mais conhecidas agora que eu voltava de carro, mas com certeza eu me perderia se estivesse a pé.
Tenho que me lembrar de agradecer Debra por me emprestar o carro mais uma vez.
Passei pela mesma rua onde eu cumprimentara Quil e ele havia me ajudado. Olhei na direção da loja de sua mãe e vi que não havia nem sinal dele por ali. E depois a ficha caiu mais uma vez. É claro que ele não estava na loja, ou em parte alguma. Aliás, nem ele, nem Jacob, nem ninguém... Eu é que estava matando aula e teria de esperar até as 3 da tarde se quisesse mesmo falar com eles sobre Daniel. Pensei em ir até a casa de Billy, mas novamente lembrei que eu estava matando aula, ele provavelmente diria alguma coisa ao meu pai - que, aliás, se eu não tomasse cuidado por onde andava, acabaria me vendo. Meu Deus, e Debra. Ela era professora em Talapus, eu também não podia esperar perto da escola, é claro que ela reconheceria seu próprio carro - antes de reconhecer a filha, com certeza.
De repente, meu plano não pareceu tão bom assim.
Agora sim eu estava perdida. Não só de não saber o que fazer, mas ainda de não saber para onde ir. Inconscientemente, dirigi até a praia e parei o carro atrás de várias rochas entre o começo da floresta, bem de frente para o mar. Na Flórida, essa seria uma visão linda... porque lá havia sol, mas em Talapus era apenas um borrão azul escuro cercado pela areia branca e pesada. Abri os vidros e senti a brisa marinha entrando imediatamente. Eu devia vir mais à reserva, mesmo que estivesse longe de ser o que eu gostava, ao menos lembrava e acabava me fazendo bem. Eram 9 da manhã e eu tinha que achar um modo de me distrair pelas próximas seis horas, senão acabaria enlouquecendo. Não era tão fácil, quer dizer, não enlouquecer, principalmente quando se descobre que um vampiro supostamente estava manipulando a sua cabeça para te fazer gostar dele e, na verdade, ele só queria o seu sangue. E a irmã dele, que deveria ser igualmente ruim, se mostrou confiável e prestativa, pelo menos até agora. E, não posso me esquecer, que o seu melhor amigo de infância era um lobisomem e que ele sim parecia fazer você gostar dele, mas de verdade. Nem sei se fazia sentido, mas era disso que eu tentava me convencer. Ficar com isso martelando na minha cabeça me fez ficar ainda mais ansiosa, e eu precisava exatamente do oposto. Peguei a mochila no banco de trás e procurei meu celular, que mostrava três chamadas não atendidas de Lisa. Apertei o botão verde quando seu número apareceu na tela e fiquei impaciente até que ela atendesse.
- Cadê você? - ela perguntou com a voz alta e desesperada.
- Eu falei que queria um novo ponto de vista. - respondi, observando as ondas quebrando no mar a vários metros.
- Não foi isso que eu perguntei.
- Ok, eu estou em Talapus.
- Parece que você tem um buraco no cérebro. - ouvi Lisa dizer com a voz cheia de raiva, provavelmente não estava na escola. - Eu te disse que ainda não sei o que aconteceu com o Dan, mas pelo que parece ele pode simplesmente sair atrás de você e te matar! Você entende isso?
- Mas Lisa, eu não tenho medo dele. - respondi, e acho que realmente não tinha.
- Devia ter, até eu tenho.
Pensei em perguntar por que ela não saía logo de perto dele, se ela tinha tanto medo. Mas isso não pareceu ser da minha conta - mesmo que tudo fosse da minha conta, aparentemente.
Respirei fundo algumas vezes, ainda escutando suas reclamações impacientes do outro lado da linha. Isso pelo menos passaria o meu tempo enquanto eu me limitava a dar meias explicações. Lisa continuava a insistir que Daniel poderia estar com a pior das intenções e vir até mim, mas logo em seguida ela mesma afirmava que ele não seria capaz de nada disso, nada que pudesse prejudicar a sua vida - já que agora os lobisomens estavam envolvidos. Eu apenas assentia, mas logo me colocava contra o que ela dizia.
- Olha só, eu prometo que vou voltar pra casa a salvo, com todos os litros de sangue intactos no meu corpo, sem ideais socialistas e sem bombas. - repeti pela milésma vez, e Lisa se ofendeu com a minha brincadeira. - Eu te ligo quando chegar.
Desliguei o celular assim que ela começou a se manifestar. Me encostei no banco mais uma vez e soltei um suspiro pesado, encarando o teto do carro. Procurei alguma coisa na mochila mais uma vez e acabei achando uma edição de bolso de Um Brinde de Cianureto da Agatha Christie que eu vivia deixando por perto mas nunca havia lido de verdade. Agora eu tinha tempo o suficiente e uma cabeça cheia de coisas para esquecer ou, pelo menos, ignorar por um tempo. Abri na primeira página e praticamente rezei para que fosse bom.
4 horas depois e eu ainda estava na metade. Não que fosse ruim, na verdade era ótimo, mas foi difícil me concentrar no complicado assassinato. Eu lia as páginas duas ou três vezes e as palavras custavam a fazer sentido por mais que eu forçasse a entender o que estava acontecendo. Não dava.
Talvez eu gostasse mesmo de Daniel, não que fosse apenas influência dele na minha cabeça, e se eu realmente sentisse algo por ele? Só isso explicaria o quanto eu não tinha medo, porque no fundo no fundo eu sabia que ele também gostava de mim... Mas eu não queria isso! Antes eu era tão deslumbrada por ele, seu jeito incrível e olhos verdes que pareciam não ter fim. Era muito mais fácil admitir que ele era uma pessoa ruim e pronto, mais do que conveniente - mas isso não me passava pela cabeça, pelo contrário, se tornava cada vez mais difícil admitir que eu não poderia ficar com ele. Daniel definitivamente funcionava como um ímã, me atraindo e me repelindo sempre que ele quisesse.
E por outro lado havia Jake, que era a pessoa mais incrível que eu já conhecera e ele sim parecia despertar coisas boas em mim, com ele eu sempre estava com a mente acordada e não precisava forçar nada ou tomar cuidado com o que eu falava, tudo era muito natural e espontâneo. E também era algo mais diferente do que qualquer outra sensação que eu já tivesse experimentado; a primeira vez que nos vimos depois de tanto tempo não significou nada além do normal, mas conforme eu me afastava de Daniel e ficava com a cabeça mais limpa e sensata era como se eu visse Jacob pela primeira vez, só que várias vezes. Dá pra entender? E eu gostava dele cada vez mais e era daquele jeito bom e positivo que me dava vontade de sorrir e continuar assim pra sempre.
Louca, era isso que eu parecia.
Nunca fui muito de chorar, mas aquela parecia uma boa hora. Senti as lágrimas se acumulando nos meus olhos e logo tratei de limpá-las antes que caíssem, mas era tarde; senti a garganta doer com a força que eu fazia para engolir o choro mesmo que já visse as pequenas gotas caindo. Cobri metade do meu rosto com a mão e fechei os olhos com força e mais lágrimas caíram violentamente. Nunca havia chorado desse jeito, com dor e sem ter a mínima ideia do que fazer a respeito. Eu tremia de frio e de desespero, procurando a chave no porta moedas e decidindo ir embora dali. Quando coloquei na ignição, escutei uma batida no vidro do lado do passageiro e pulei de susto. Sequei rapidamente os resquícios de lágrimas e abri a janela, logo reconhecendo a figura de Sam com os olhos arregalados de preocupação.
- Oi Sam. - cumprimentei, olhando para baixo e soando um pouco infantil.
- Aconteceu alguma coisa? - ele perguntou com aquela voz alta e grossa.
- O que? - tentei forçar a voz animada e um sorriso que deve ter saído deplorável. - Não, imagina, é só... ah sabe como é, só vim pra cá e já vou voltar para Warrenton porque... entende?
Ele assentiu ainda com os olhos arregalados que pareciam notar os meus muito vermelhos e ainda cheios de lágrimas. Soltei outro suspiro pesado e encarei ele de volta, praticamente pedindo desculpas com o olhar. Não era mesmo uma boa situação para ser encontrada, e também não havia muito que eu pudesse dizer, Sam me acharia louca de qualquer jeito.
- Então está tudo bem se eu te encontrar de novo escondida no meio do mato, sozinha e chorando? - ele perguntou, mais como um comentário. - É algo que você costuma fazer? Faz parte da sua rotina?
- Ok, já entendi, não precisa disso. - respondi, interrompendo o tom levemente irônico que ele estava usando. - Me desculpa se eu te distraí do que você estava fazendo, seja lá o que for. Eu vou voltar para Warrenton, matar aula não é exatamente o tipo de coisa que eu faço.
- Matando aula pra ficar parada no meio de uma pedra e uma árvore... - Sam pareceu refletir. - Você é mais esquisita do que a gente pensou.
- A gente? - repeti, ignorando a parte do esquisita. - A gente quem?
Sam revirou os olhos pra mim e pensou por alguns segundos antes de responder. Ele contornou o carro ate chegar na janela do meu lado e foi na direção da estada, fazendo sinal para que eu o acompanhasse. Mesmo sem entender, tirei as chaves da ignição, coloquei o meu celular no bolso e fui atrás dele, que já estava muito na frente.
- Pra onde você vai? - perguntei, aumentando os passos para acompanhá-lo.
- Vamos passar na casa do Jared e, depois, vamos para a minha casa. - ele respondeu e apontou numa direção qualquer.
- Por que?
- Porque quando eu saí a Em estava fazendo brownies, a essa hora já devem estar prontos. - e sorriu, simplesmente dando ombros.
- É só isso? - perguntei, insatisfeita com a resposta idiota que ele me dera.
- Só isso? São brownies, toda hora é hora de brownies. - ele continuou a rir da minha cara, agora de forma mais explícita.
Corri para alcançá-lo mais uma vez enquanto ele continuava a ir pelo caminho conhecido. De repente eu não parecia mais tão louca e sim Sam, logo ele que sempre me pareceu tão sério, calado e responsável - ainda mais depois do que eu havia visto na noite anterior. Ele não falou mais nada e me deixou mais para trás ainda, mas mantive o meu ritmo lento sem a menor energia para correr. Seguimos até uma casa no meio do quarteirão seguinte, onde Jared já estava na porta - sabe-se lá como ele já estava nos esperando - com uma expressão entediada. Quando nos viu ele ergueu as sobrancelhas e acenou com a cabeça na minha direção, me cumprimentando e sorrindo em seguida. Sam não parou por ali, apenas fez um sinal e Jared imediatamente pulou os pequenos degraus da varanda e começou a nos acompanhar, e fez o favor de ir mais lentamente para ficar ao meu lado.
- Jared. - cumprimentou Sam, assim que ele se juntou a nós.
- Chefe. - ele respondeu e se virou pra mim. - . Eu adoro ver a cara de espanto das pessoas quando elas descobrem. - ele riu alto.
- Nós vamos nos divertir muito, então. - disse Sam com a voz divertida, mesmo que a expessão fosse séria. - Você sabe do Paul e da Leah? - ele perguntou, imaginei que para Jared.
- Acabei de ouvir eles chegando. - Jared respondeu. - Ele já vem, mas Leah é outra história.
- Claro. - Sam comentou em voz baixa como em um assunto interno. Achei melhor não perguntar.
Andamos mais um quarteirão e, no meio do caminho, Paul apareceu. Parecia uma passeata onde as pessoas se juntavam aos poucos, logo ele também estava ali fazendo piadas comigo.
- Menina da cidade! - ele riu quando me viu andando atrás de Jared e me deu um abraço desses de estalar a coluna. - Resolveu aderir ao movimento?
- Ainda estou tentando entender que movimento é esse. - respondi assim que ele me colocou de volta ao chão, sentindo meus ossos voltarem ao lugar. - Ou o que eu vi ontem à noite.
- Ah, é verdade... gostou da surpresa? Bom, não acabou do jeito que a gente queria, como eu te disse, de vez em quando acontecem imprevistos como aquele... - Paul continuou e eu arregalava os olhos cada vez mais, ainda sem fazer ideia do que ele falava.
Jared olhava para a minha expressão preocupada e sorria discretamente, mas não falava nada. Ele e Paul me distraíram até que chegamos à casa de Sam, onde eu vi o rosto de Emily pela janela. Sam passou pela porta de madeira aberta e entrou, enquanto nós três ainda estávamos um pouco para trás.
- Cara, isso é muito chato! - Paul revirou os olhos.
- Para de reclamar, espera só até ser com você. - ouvi Jared dizer quando subíamos o degrau para a varanda.
- Até parece que eu sou o único. - Paul continuou, entrando na cozinha de Emily. Ele se sentou em uma cadeira que havia ao lado da mesa redonda e Jared e eu o acompanhamos.
Emily apareceu ao meu lado com o sorriso gentil de sempre; eu havia me esquecido do quanto ela era bonita mesmo com as cicatrizes que se estendiam no rosto e nos braços. Na verdade, mal dava para reparar nelas, seu jeito simpático a tornava mais bonita naturalmente.
- Oi . - ela me cumprimentou e eu sorri de volta. - Não escute as bobagens que o Paul fala, ainda está pra nascer alguém mais difícil que ele.
Paul se limitou a dar ombros e revirar os olhos, enquanto eu continuava perdida e sem falar nada. Talvez eu parecesse assustada, mas não tanto depois que Emily apareceu com uma montanha enorme dos brownies de chocolate que Sam mencionara. Jared e Paul pegaram uns 3 de uma vez assim que eu peguei um para mim e vi Emily lançando um olhar de reprovação para os dois. Ela suspirou e se sentou do outro lado da mesa, também pegando um brownie.
- Em, nós te amamos. - disse Jared terminando de engolir o segundo.
Mordi o meu e finalmente entendi porque Sam havia feito tanto alarde. Por fora eu só parecia comer normalmente, por dentro eu aplaudia de pé, imaginava aquela bandeja com os brownies iluminados por holofotes e Emily ganhando o Oscar da culinária ou qualquer coisa assim. Debra não conseguiria fazer brownies assim nem se cada passo fosse cientificamente acompanhado por um profissional e os ingredientes fossem escolhidos a dedo. Cozinhar, na verdade, nunca foi mesmo o forte dela, estranhamente essa tarefa era de Matthew, mas ele pareceu abandonar o posto desde que saímos da Flórida. Uma pena...
Sam apareceu com sua cara séria novamente, interrompendo o meu devaneio gastronômico. Ele se sentou ao lado de Emily, que segurou a sua mão, parecendo uma autoridade prestes a fazer um pronunciamento. Eu ainda não sabia exatamente o que estava fazendo ali, mas obviamente aquilo era direcionado a mim, então me obriguei a prestar total atenção.
- , você descobriu tudo de um jeito não muito fácil... - ele começou, enquanto milhões de perguntas voltavam a se formar na minha cabeça. Tudo?, pensei, O que é tudo, afinal? Mesmo quando eu sei de alguma coisa eu pareço não saber de outras dez... Como eu não expressei nenhuma mudança, ele prosseguiu. - Você nos viu ontem à noite, eu me pergunto se antes daquilo você já sabia sobre nós... - e ele olhou sugestivamente para Paul, que estava distraído.
Ele provavelmente se referia à conversa que eu havia tido com Paul na manhã anterior, com Lisa dentro da lanchonete. Então Sam não sabia que eu já tinha ideia dos lobisomens mesmo antes de conversar com Paul... E não sabia da conversa que eu havia escutado entre ele e Jake no dia em que eu fui levar a receita na casa dele. Maldita mania de ouvir atrás da porta.
- Na verdade, Sam, eu sabia sim. - respondi, ainda meio incerta. - Bom, sabia e não sabia, ao mesmo tempo. É que... há alguns dias atrás eu vim aqui, quer dizer, na casa do Billy entregar um recado do meu pai e, ah me desculpa, escutei você e Jacob conversando. Eu não pude evitar, eu acabei escutando o meu nome! - já comecei a pedir desculpas e ele assentiu para que eu prosseguisse com calma. Respirei fundo e continuei. - Ok, eu escutei vocês dois falando do Daniel Handler e da irmã dele, e depois falando em lobisomens então... A princípio eu não acreditei porque, bom, quem acreditaria? Mas eu já sabia sobre os vampiros, então lobisomens também não me parecem muito improváveis. Aliás, nada mais me parece improvável; se algum de vocês me falar que é um gnomo ou uma fada, eu acredito.
Vi Sam sorrir e abaixar a cabeça. Não sabia qual era a graça, mas era melhor do que toda aquela seriedade no ar que incomodava.
- Bom, é isso. - concluí, esperando que ele começasse a falar sobre os vampiros, assim eu diria tudo sobre Daniel.
- Jacob não te contou nada? - ele perguntou, erguendo as sobrancelhas. - Digo, nesse dia que você nos escutou conversando, ele não te contou nada depois?
- Por que depois? - estranhei a pergunta.
- Eu me lembro de ter entrado com ele e visto o seu bilhete, então Jake foi até a sua casa falar com você. Ele não te contou nada lá?
- Não... - respondi.
- Nem mais tarde? - Paul perguntou, falando pela primeira vez.
- Mais tarde? - perguntei, me lembrando do "mais tarde" que ele se referia.
- Ah, por favor, quando vocês dois saíram à noite! - ele disse com tédio evidente. - Ele ficou pensando nisso durante dias... Por isso é que eu reclamo, é a pior parte de todas, sabia?
- Pior parte de que? - insisti, ficando completamente perdida. - E como é que você sabe que a gente saiu?
Paul ia gritar comigo mais uma vez quando Sam ergueu uma mão para que nós dois o escutássemos. Jared me encarava com a mesma emoção que ele havia dito sentir quando as pessoas descobriam a verdade. Pelo menos alguém se divertia.
- Calma. - Sam pediu, voltando a olhar pra mim. - , você, que já sabia sobre nós, disse alguma coisa a respeito para o Jake?
- Bom, disse. - respondi, logo me lembrando que havia dito, sim, mas logo depois de ficarmos um bom tempo nos beijando no carro, não era exatamente um detalhe que eu queria dividir abertamente. - Ele disse que queria me explicar uma coisa, eu logo que entendi que era a respeito de vocês e eu disse que já sabia, só isso.
- E mais nada?
- Mais nada.
Silêncio mais uma vez. Não estava gostando nem um pouco daquilo, antes eu tivesse ficado na escola amparando a dor inexplicável de Lisa. Mas aquela parecia a primeira vez que eu teria respostas de verdade, não apenas insinuações ou então frases do tipo "pergunte pros seus amigos lobisomens."
- Tudo que você sabe sobre nós, basicamente, foi o que os vampiros te contaram, certo? - eu assenti e ele voltou a falar. - O que eles te contaram?
- Nada de mais, eles praticamente só mencionaram que vocês existem, só isso. - respondi, escondendo que eles haviam me dito outras coisas mas que foram tão subjetivas e vagas que achei melhor não comentar.
- Vamos lá. - Sam disse, parecendo que as perguntas sem sentido haviam finalmente acabado. - Não sei e nem quero saber como você soube dos vampiros, tenho certeza que não foi nada agradável. - Você não faz ideia, pensei. - Mas, agora que você faz parte do grupo, tem o direito de saber tudo sobre nós, lobisomens.
- Parte do grupo? - perguntei.
- Eu não disse? - riu Paul ao meu lado. - Você aderiu ao movimento oficialmente.
Sam lançou um olhar parecido com o de Emily para Paul e ele parou definitivamente com as interrupções para piadas.
- Nós somos algo um pouco diferente de lobisomens, na verdade, somos transmorfos... mas lobisomens fica mais fácil de falar. - Sam explicou. - Nós nos transformamos em lobos espontâneamente, mas alguns membros do grupo tem uma dificuldade de controlar suas emoções e literalmente explodem. - ele olhou para Paul, que revirou os olhos mas não fez nenhuma reclamação. - E podemos ler pensamentos uns dos outros quando estamos na forma de lobo, assim nos comunicamos quando estamos, por exemplo, de vigília, que nem na floresta ao lado da sua casa.
- E por que, afinal, vocês fazem isso? - perguntei, aquilo me incomodava desde a noite anterior.
- Porque o seu amigo vampiro, Daniel, está se alimentando de pessoas no condado. - Jared respondeu. - E ele sempre vai até onde você mora para fugir de nós, só que, das últimas vezes, ele só ficou ao redor da sua casa e depois corria de volta ao centro de Warrenton.
- Provavelmente para matar mais alguém... - disse Emily, pensativa.
Então o que Lisa havia dito era verdade, Daniel se alimentava de pessoas, mesmo quando havia me garantido e jurado que passara a beber apenas sangue animal.
- Aah, que merda! - exclamei, sentindo as lágrimas voltando para os meus olhos e afundei o rosto nos meus braços para evitar cair no choro. - E a Lisa, a irmã dele?
Minha voz saiu abafada, mas pelo menos não chorei. Consegui engolir as lágrimas e me levantei novamente, encarando os quatro rostos na mesa.
- Por incrível que pareça, ela não é como ele. - Sam respondeu. - Nossa área é a baía de Young, como lobos nós não podemos passar de lá, e a vampira parece só sair à noite por lá. As mortes no condado sempre são culpa do outro vampiro.
Me senti mal por duvidar de Lisa, na verdade ela só queria proteger Daniel... ou se ver livre dele.
- Ontem à noite nós decidimos parar na porta da sua casa, assim ele nem chegaria perto de você. - Sam continuou. - Ele apareceu nós o seguimos até a baía e encontramos um rastro de sangue pelo caminho.
Não gostei como aquilo soou.
- Sangue de mais duas pessoas de Warrenton. Isso é o pior que já vimos, os últimos vampiros que apareceram por aqui não morderam ninguém e, em menos 3 anos, só um faz o maior estrago com o maior número de pessoas possível...
- Últimos vampiros? - perguntei, me atendo ao detalhe.
Eles se entreolharam, parecendo incomodados. Pronto, mais um problema, mais alguma coisa que eu desconhecia.
- Isso é outro assunto, eu te explico mais tarde. - Sam mudou de assunto, mas ainda me deixando irritada. - O importante é que você entenda o que está acontecendo agora.
Não engoli aquela. Imediatamente me lembrei do que eu escutara (mais uma vez atrás da porta) no ano novo, a conversa entre Harry e Billy. Os dois falaram algo sobre Gavin e outros vampiros há muito tempo em Warrenton, mas eu não conseguia me lembrar direito.
- Sam, o que o meu pai tem a ver com isso? - perguntei de uma vez, já que aquele parecia o dia de tirar todas as dúvidas.
- Seu pai? - ele perguntou, parecendo verdadeiramente surpreso. Contei a ele sobre o que eu escutara e ele ainda não sabia me responder. - Posso perguntar aos dois sobre isso, deve ser algo de muito tempo atrás.
Assenti, acreditando na sua resposta. Agora sim tudo era mais claro e foi a enfim conversa esclarecedora que eu tanto desejei. Eu não estava mais em pânico como antes, mas duraria pouco tempo, só até começar a escurecer e eu ficar em estado de nervos por conta de quem estaria lá fora. Não era justo ficar dentro de casa enquanto todos os garotos andavam por aí, mesmo que em grupo, procurando Daniel - que por minha causa, aparentemente, andava fazendo merda pelos cantos da cidade.
- Então é isso. - Jared concluiu. - Essa é a hora em que as perguntas começam a pipocar na sua cabeça, coisas bobas mas que fazem a diferença. Por favor, faça perguntas decentes, porque a sua reação foi a menos engraçada de todas até agora.
- É porque ela é das nossas, Jared, gente estranha é sempre assim. - Paul riu, sem se controlar em fazer piada. Mostrei rapidamente o dedo do meio para ele, que abriu a boca em falso espanto. - Vocês viram isso?
Todos começaram a rir, incluindo Sam. Emily se levantou e tirou mais brownies do forno; assim que ela os colocou na bandeja eles pareceram sumir num piscar de olhos. Foi o tempo de comer apenas um e já estava quase acabando. Imagino como seria quando todos os garotos estivessem juntos.
- Vampiros tem poderes? - perguntei, encarando os pedaços de nozes dentro do brownie na minha mão. - Quer dizer, algo além do óbvio da força, velocidade e tudo mais.
- Bom, mais ou menos. - Sam respondeu. - A maioria consegue controlar a mente da pessoa, hipnotizá-la e fazer com que ela fique fora do ar, sabe? Como uma TV sem antena.
Eu sabia que assistir True Blood não era perda de tempo!
- Ah... - suspirei, percebendo que havia encontrado mais um monte de perguntas.
- O que foi?
- Por algum motivo, algo muito fora do normal, Daniel não consegue fazer isso comigo. - respondi, com a voz baixa. - Na verdade ele até consegue, mas não completamente. É como se uma cortina branca ficasse na minha cabeça quando ele está por perto, eu esqueço todo o tipo de razão, fico meio inconsciente... mas não completamente, parece que lá no fundo eu luto pra fugir desse estado. E logo quando me afasto já começo a voltar ao normal. E quanto mais eu descubro sobre ele, menos influência sobre mim ele tem. Parecia que eu tinha um buraco por dentro, um vazio esquisito... Mas passou. Se bem que...
Não terminei a frase. Falando em coisas vazias, tentei expor o meu raciocínio mas alguma peça faltava. Alguma lembrança ou alguma sensação estava perdida na minha cabeça, e parecia ser essencial para entender qual era a desse poder e porque ele funcionava de um jeito diferente comigo.
A ideia estava tão perto e tão óbvia que eu quase poderia tocá-la, mas eu não enxergava direito. Frio, janelas embaçadas, vento, janelas abertas...
- Se bem que...? - Paul incentivou.
Pisquei. Os sonhos.
- Eu tenho uns sonhos muito estranhos, se vocês querem saber. - respondi de uma forma não muito inteligente. Vi as várias caras de interrogações na minha frente e resolvi explicar melhor. - Eu tenho sonhos lúcidos. Eu me deito com o intuito de tê-los, é algo que todos podem fazer. Eu fico imóvel por muito tempo, ignorando qualquer sinal que meu cérebro mande para o meu corpo se mover, até que eu adormeço por fora. Bom, por fora eu quero dizer que o meu corpo descansa, mas minha cabeça ainda está acordada. Daí eu começo a construir sonhos muito vívidos, interajo com o ambiente e com as pessoas. Mas se alguma coisa acontece comigo enquanto eu sonho, eu posso morrer. Teoricamente, estou dormindo, mas é algo mais parecido com o coma; eu só saio quando acordar de verdade.
- Espera... - disse Emily. - Mas se a sua mente está acordada é isso que importa, não?
- Sim, mas não adianta nada eu saber que estou acordada se eu não conseguir "voltar para o corpo." - fiz aspas com os dedos. - Eu fico à deriva.
- E o que isso tem a ver com o vampiro? - perguntou Paul.
- Como você já está subconsciente, se ele tentar te hipnotizar ou te manipular, ele vai conseguir facilmente, você não tem outra escolha. - Emily concluiu antes que eu pudesse falar. - É lutar consigo mesma.
- Exatamente. - assenti, feliz com a explicação melhor do que eu queria. - Eu fico presa na minha mente e qualquer um entra e faz o que quiser por lá.
Agora sim parecia loucura. Sam unia as sobrancelhas, eu praticamente via fumacinha saindo de suas orelhas para tentar digerir o que tinha acabado de escutar. Não era bem de complicações que nós precisávamos, mas aquilo parecia necessário.
- Viu só porque você é parte do grupo naturalmente? - Paul voltou a implicar. - É a mais estranha de todos nós!
Mas esse comentário não surtira tanto efeito, principalmente porque Sam ainda estava calado, movimentando as ideias. Quando ele parecia prestes a entrar em colapso nervoso, ele descruzou os braços e relaxou a postura na cadeira.
- Bom, temos que trabalhar nisso daqui pra frente, mas tenho certeza de que não teremos problemas. - e se levantou da cadeira, indo em direção ao outro lado da casa. - Pelo amor de Deus, chega de problemas.
Mais brownies. Comi meu terceiro com satisfação enquanto Jared e Paul exaltavam a maravilha que aquilo era, que era o melhor que já haviam comido. Emily provavelmente escutava aquilo todos os dias, ela só sorria e revirava os olhos. Observei enquanto eles faziam brincadeiras entre si, no quanto aquilo era familiar; era bem o tipo de coisa que Matthew e eu fazíamos até nos mudarmos. Depois tudo ficou distante e se resumindo à minha infelicidade em Warrenton e ao novo comportamento dele.
- Ainda 'to esperando as suas perguntas, forasteira. - repetiu Jared, apontando pra mim. - Não adianta, todo mundo tem suas dúvidas.
- Hmm, ok. - concordei, entrando no jogo dele. Me forcei a lembrar do que eu havia visto em True Blood só pra ter inspiração. - Prata: mito ou verdade?
- Mito. Próxima.
- Lua cheia eu já sei que é mito, então... Quão rápidos vocês são?
- Muito. - respondeu Paul, se exibindo. - Uns mais do que os outros, mas em geral somos mais rápidos que a velocidade máxima que o seu carro atinge.
- Vão começar a se gabar e eu já escuto essas histórias há muito tempo... - Emily suspirou e tirou o avental branco que usava por cima da roupa. - Eu vou até a loja ajudar pegar as encomendas e já volto. Não destruam a cozinha e, , por favor cuide para que eles não comam o resto dos brownies que eu guardei.
Assenti de volta enquanto os outros dois gritavam reclamações e protestavam, mas ela já estava longe.
- Acho que o mais rápido de nós é o Seth, mas só porque ele é pequeno, então o vento leva ele. - disse Jared, muito incerto.
- Essa é a lógica mais furada que eu já vi na minha vida. - Paul riu na cara dele. - Não, é ruim admitir mas a Leah é a mais rápida e ponto.
- Por que tanta resistência da Leah? - perguntei, me intrometendo no assunto. - Ela realmente não quer ser parte do grupo?
Os dois trocaram um olhar rápido e assumiram uma postura menos relaxada, me fazendo questinar a seriedade da minha pergunta.
- Não é só por isso... Deve ser difícil pra ela ser a única mulher e tudo mais, mas a situação da Leah é, digamos, incômoda. - respondeu Jared.
- Ela, Sam e Emily. - Paul completou em voz baixa, mas voltou ao normal ao constatar que Sam havia saído com Emily.
- Como assim? - insisti, como se fosse da minha conta.
- Ah, eu sempre esqueço que você não sabe. Sam namorava Leah quando os dois estudavam juntos, mas aí Sam se transformou e tudo mais. Sumiu por uns tempos e, quando voltou, se apaixonou pela Emily.
- E elas são primas. - completou Paul.
- Ok, mas assim do nada?
- O Sam teve um imprinting e foi com a Emily. - Jared disse.
Já era a segunda vez que eu escutava isso e ainda não tinha ideia do que era, o termo parecia me perseguir e começava a me incomodar.
- Afinal, que diabos é imprinting? - perguntei, enfim.
- Não é comigo... - Paul disse, levantando as mãos num gesto exagerado de rendição.
Jared revirou os olhos para ele e cruzou os braços em cima da mesa.
- Depois da transformação, nós, lobisomens, temos a chance de encontrar uma garota x, uma pessoa única que, por algum motivo, foi feita para nós. Alguns passam a vida sem encontrar essa pessoa, é algo raro de acontecer. Mas, quando acontece, dá pra saber... Não é nada que já foi sentido antes. Aliás, tudo que já foi sentido antes não tem mais lógica alguma, um mundo novo, um motivo de viver é colocado na nossa frente. É por essa pessoa que a gente passa a viver e respirar.
- Você parece muito ciente do assunto. - comentei. - Você encontrou a sua "garota x?"- fiz aspas com os dedos.
- Sim. - ele respondeu, um sorriso sincero brotando lentamente nos lábios. - O nome dela é Kim. A gente se conhecia há muito tempo, mas eu nunca havia reparado nela. Um belo dia, um tempo depois de eu me transformar, eu a vi na escola e... bom, já dá pra imaginar.
- Uau, quem diria. - sorri, e ele começou a rir. - Mais alguém sofreu imprinting além de você e Sam?
Mais uma vez os dois se olharam e eu já começava a entender o que aquilo significava.
- Bom, tem o Quil, mas com ele também é bem complicado. - riu Paul.
- Por que?
- Como eu disse, a gente não escolhe a pessoa. - Jared começou. - Ela simplesmente é feita para nós e pronto. A partir daquele momento, do primeiro contato, os dois estão ligados para sempre; mesmo que a garota não seja transmorfa, ela vai sentir os efeitos, é algo forte demais para ser sentido por um lado só. Daquele ponto, a relação entre os dois pode ser de qualquer coisa: melhor amigo, irmão, parceiro... A do Quil se encontra em fase indeterminada.
- Como isso é possível? - estranhei, se é que alguma coisa não me estranhava.
- Ele teve um imprinting com Claire, sobrinha de Emily, que tem 2 anos de idade. - Paul completou com um efeito teatral.
Arregalei os olhos. Mas... Mas não era possível. Ou era? Tudo era perfeitamente possível naquela cidade, tudo fazia sentido pra mim... Mas uma menina de 2 anos?
- Calma! - Jared ergueu as mãos. - Não é isso que você está pensando, ok? Agora Quil é como um irmão mais velho para a menina, ou babá maltratada, como preferir. Daqui a um tempo eles serão como melhores amigos e, um dia, quando ela tiver idade o suficiente, serão felizes para sempre como um casal chato e entediante que nem Sam e Emily.
- E você e Kim. - Paul riu, recebendo um dedo do meio de Jared. - Virou moda isso aí?
Ok, aquilo parecia mais aceitável, mas não deixava de ser mais bizarro do que qualquer coisa que eu já tivesse ouvido.
- Então vocês não envelhecem? - perguntei, me lembrando da resposta anterior.
- Mais ou menos... - Paul respondeu. - Nós nos desenvolvemos de forma mais rápida até os 20 anos, mais ou menos, e então o envelhecimento fica bem mais lento, quase imperceptível. Mas se alguém quiser sair da alcatéia e seguir o próprio caminho, afastado do grupo, seu corpo voltará ao crescimento e estágio normal de envelhecimento. Mas quem é que vai querer uma coisa dessas?
Revirei os olhos, mas acabei sorrindo. Era fácil demais conversar com eles, mesmo que eu fosse o motivo das piadas, até já estava me acostumando.
- Tá bom, Sam, Jared e Quil sofreram imprinting... - contabilizei. - Parece que não é tão raro assim, não é? Tem mais alguém?
Terceira troca de olhares entre os dois e aquilo me irritou profundamente. Será que mesmo já sabendo tantas coisas a respeito dos lobisomens eles continuariam a guardar segredos? Não que eu quisesse saber da vida pessoal de cada um naquele grupo, mas que os olhares atravessados incomodavam isso era verdade.
- Não sei nós somos as pessoas certas pra te contar isso. - começou Jared, depois desistiu e reformulou a frase. - Quer dizer, nós não somos mesmo as pessoas certas pra te contar isso, sabe, não é exatamente da nossa conta, só da sua.
Encarei os dois de forma incrédula. Meu raciocínio podia estar lento graças às inúmeras informações novas, mas eu havia entendido o que eles queriam dizer. Senti um arrepio percorrendo o meu corpo, mas era um arrepio bom, daqueles que fazem os seus nervos se movimentar e vibrar. Sorri com o canto dos lábios olhando fixamente para um ponto além dos dois na cozinha.
- Foi comigo, não foi? - perguntei, decidida.
Pelo canto dos olhos vi os dois assentirem, de cabeça baixa.
- Foi o Jake, não foi? - perguntei mais uma vez, mas já com certeza da resposta.
- Como você é gênia. - ironizou Paul. - Mas é claro que foi ele, qualquer um que veja ele pode dizer o quanto ele fica retardado perto de você. - sorri junto com ele. - Mas, falando sério, deve ter alguma coisa errada com você...
- Por que? - perguntei, ofendida.
- Porque o objeto do imprinting sempre sente os efeitos desse amor incondicional. - respondeu Jared. - E, não me leve a mal, mas você parece completamente imune à qualquer coisa, não demonstrou sinal nenhum, nadinha.
- Mas quem disse que eu não senti nada? - me defendi, dizendo a verdade. - Se vocês querem saber, eu gosto del...
Percebi os dois com as cabeças quase unidas e focadas na minha direção, prestando atenção em cada palavra que eu dizia. Suspirei e soltei o fôlego lentamente, contando de 1 até 10.
- Quer saber? Eu não preciso ficar discutindo e contando sobre os meus sentimentos para vocês dois, não sem antes resolvê-los com o Jake. - afirmei, me levantando da cadeira. - Acho que foi coisa demais pra uma tarde só, provavelmente não vou dormir essa noite... Não só de preocupação, mas de pânico por todos vocês andando por aí também... E ainda estou matando aula, então acho melhor eu ir embora.
Os dois davam gargalhadas inimagináveis, quase pude ver os dois chorando de rir. Acabei sorrindo contra a minha vontade, mas não cedi à suposta piada que eles faziam de mim. Pelo visto eu teria que me acostumar.
- Matando aula? - Paul perguntou depois de se acalmar. - Ah, vê se mata aula direito então! São quase 3 da tarde, vai lá resolver seus sentimentos com o Jake.
- Ele vai sair da escola agora, quer que a gente te leve lá? - perguntou Jared.
- Tudo bem, eu vim de carro, mas não lembro direito onde estacionei e nem como eu chego à escola daqui... - comentei, envergonhada por mal saber o caminho de volta.
- Warrenton faz mal às pessoas, eu sempre disse isso. - Paul comentou, enquanto me guiava para fora da casa. - A gente acha o seu carro e te mostra o caminho da escola... Mas não se acostume porque eu não sou legal assim com todo mundo.
- É, não é mesmo. - Jared comentou em voz baixa, fechando a porta da cozinha e nos acompanhando.
- Cala a boca, cara! Você me ama, isso sim. - Paul provocou, desenhando um coração no ar na direção de Jared.
Assisti os dois fazendo esse tipo de brincadeiras entre si por muito tempo, até assumirem um caráter mais sério e perigoso - não via nada de seguro em dois caras enormes se socando publicamente e rindo logo em seguida. Como sempre, Paul riu da minha cara de preocupação.
- Não liga não, isso é normal, sabe como é, brincadeira de família. - ele ainda ria. - Você também faz parte, logo, é só uma questão de tempo até você se acostumar.
Agora eu era parte de uma família.
O pânico no meu rosto era evidente. Bom, não era pânico de verdade, mas era a maior ansiedade que eu já sentira em toda a vida. Jared e Paul não ajudavam muito, ao menos eles conseguiram encontrar o lugar onde eu havia estacionado o carro. Quando ia abrir a porta do lado do motorista, hesitei e chamei Jared, jogando as chaves para ele e dando a volta para o banco de trás.
- Eu não sei chegar até a escola daqui. - respondi enquanto os dois me encaravam com olhares de interrogação. Abri a porta e deslizei pelo banco e me estiquei por ali mesmo.
Os dois se acomodaram na frente e Jared ligou o carro, não demorando muito para sair de onde estávamos. Eu fiquei de olhos fechados, apenas sentindo a vibração do banco e o barulho de Paul pressionando os botões do rádio nervosamente.
- Ei, esse carro é da sua professora de História, e não meu! - me manifestei quando ele continuou a mudar de estação frequentemente. - Aliás, o que vocês dois estão fazendo fora da escola? - percebi que soei exatamente igual a Debra.
- Olha só quem fala! - riu Paul, se virando para trás.
- A gente está matando aula por um bom motivo. - respondeu Jared ainda olhando para frente e manobrando o volante. - E pare de reclamar, se a gente não estivesse livre você teria que passar pela conversa mais séria e sem graça do universo.
- Por causa de Sam? - perguntei, me lembrando do tom formal e contido que ele usava todo o tempo, mas a maneira como ele não conseguiu resistir às piadas de Paul não era exatamente essa dureza toda que ele demonstrava.
Jared fazia uma curva por algum lugar que eu mal conhecia, eu devia me levantar do banco e acompanhar o caminho para conhecer melhor Talapus, mas minha cabeça parecia pesar uma tonelada.
- Sim e não. - ele respondeu. - Sam é um cara legal, mas ele tem ficado cada vez mais tenso. Acho que ele não suporta ficar sem saber de nada ou não poder estar no controle de alguma coisa.
- Eu era um problema, então?
- Não, você ainda é um problema. - respondeu Paul e torceu os lábios para mim. - Olha, só de pensar que agora eu vou ter que aguentar Jacob com você na cabeça dele o tempo todo... Já não é fácil com esse aqui, - ele apontou para Jared. - Quil com a bebê dele e ainda Sam e Em, ainda tem você! - ele logo riu depois que eu mostrei o dedo do meio na sua direção. - É brincadeira, , a gente gosta de você.
- Vocês também são legais... - respondi com um sorriso. - Só estou respondendo o que minha mãe me ensinou.
Jared abriu a boca com indignação e ameaçou me expulsar do "meu próprio" carro. Eu realmente achei que ele poderia fazer uma coisa dessas, o que o impediu foi ter chegado na rua em frente à escola, onde alguns poucos alunos estavam do lado de fora. Me coloquei sentada e afundei meu rosto no banco atrás de Paul. A ansiedade revirava o meu estômago, mas era uma sensação estranhamente boa, como aquele nervosismo de encontrar alguém importante depois de um longo período longe.
- Qual é o plano? - perguntei e os dois olharam para mim incrédulos. - Ah gente! Minha mãe está por aí, vocês acham que eu vou descer do carro e arriscar aparecer na frente dela? Por favor, é a última coisinha que eu peço a vocês...
Paul revirou os olhos para a minha cara de gatinho do Shrek, mas Jared comprimiu os lábios e assentiu levemente. Ele também tivera um imprinting, ele sim carregava o que eu chamaria de sensibilidade pra esse assunto.
- Tudo bem. - ele largou as mãos do volante e se virou na minha direção. - Nós vamos esperá-lo aqui na porta e você, vejamos... - ele apontou para um ponto um pouco distante, onde começava uma parte da floresta. - Você vai ter que esperar ele por lá, em qualquer outro lugar a sua mãe vai te ver. Dá pra chegar ali no lago Cullaby em cinco minutos, tenho certeza que ele vai correr o caminho inteiro.
Assenti, enquanto ele fez sinal para que trocássemos de lugar. Saí do banco de trás e ele já estava do lado de fora. Quando me entregou as chaves, se aproximou para me dar um abraço e disse "Boa sorte" enquanto eu entrava de volta no carro. Paul voltou a revirar os olhos mas fez um aceno e sorriu na minha direção, isso depois de quase quebrar a porta depois de sair do carro.
Agora eu estava totalmente por minha conta. Os dois se afastavam conversando e eu liguei o carro. Dei a volta no estacionamento e segui na direção em que Jared havia apontado.
O lago Cullaby era monstruoso de tão enorme e escuro, mas ocasionalmente ficava verde por causa do reflexo das várias árvores altas e espessas que ficavam em volta. Haviam algumas pequenas plataformas de madeira fraca para os pescadores; naquele dia haviam umas 3 ou 4 canoas paradas em pontos diferentes, os único barulhos que eu escutava vinham da água que batia nas margens, ou dos galhos e das folhas se chocando entre si por causa do vento. Tudo era imaculadamente verde e calmo, o que não exatamente foi o suficiente para acabar com o meu nervosismo. Pelo contrário, parecia que o meu sistema nervoso estava analisando o lugar e tinha tomado decisões por conta própria. Um lugar tão bonito e tão vazio merece ser preenchido com desespero e ansiedade, sim... essa é uma ideia fantástica.
Eu havia deixado o carro parado onde ainda havia estrada. Atravessei algumas poucas árvores que rodeavam um caminho aberto para o lago e andei por todo o campo que havia em volta nas margens. No meio de tanto verde, havia um banco de piquenique ao lado de alguns arbustos, e foi para lá que eu andei. Antes de me sentar, ainda conferi se não estava molhado. Me virei de frente para o lugar de onde havia saído, imaginando a figura de Jacob surgir ali a qualquer momento.
Não aguentei segurar todo o nervosismo e me virei de costas para me encostar no banco. Apoiei meus braços ali e segurei minha cabeça com as mãos, bagunçando o meu cabelo que já voava na minha cara por causa do vento. O que eu vou dizer pra ele? Não, espera, quem tem que me dizer algo é ele, e não eu. NÃO! Claro que não! Que burra eu sou, só vou ficar assentindo e concordando com tudo? Ele já sabe que eu sei... Ou ele acha que eu sei uma parte mas não sabe que eu sei do imprinting. Será que ele realmente sabe que eu sei de tudo? Que foi?
Eu era dessas que transparecia tudo que pensava, portanto não seria de se espantar se alguns dos pescadores estivessem encarando uma garota que travava uma discussão interna consigo mesma. Aposto que eles estavam num dia mais fácil que o meu.
- Eu sou um desastre. - disse para mim mesma, colocando duas mechas de cabelo atrás da orelha e respirando fundo com voz de choro.
- Não se preocupe, eu também sou.
Ataque cardíaco. Arregalei os olhos e virei lentamente para trás assim que escutei a voz tão conhecida. Eu demoraria um bom tempo até me acostumar em tê-lo tão perto; eu constantemente pensava nele, até então tudo parecia apenas algo que brotou da minha mente, mesmo com todas as provas e confirmações que eu tivera. Mas Jacob estava causando um efeito mais louco do que eu imaginei. Eu queria poder levantar do banco num salto e pular em cima dele, mas o clima de assunto sério ainda pairava no ar.
Jake não tinha muita expressão, só me olhava de cima sem dizer nada, mas dava para sentir o seu nervosismo à flor da pele assim como o meu. Não pude deixar de reparar no quanto ele continuava bonito independente da situação; devo ter olhado por tempo demais, mas só percebi quando ele deu sinais de que ia falar.
- , me desculpa não ter te falado nada antes, eu... - ele entrou em pânico sem motivo. - Eu devia ter te contado há tanto tempo! Argh, isso não é certo, você deve estar tão...
- Calma, cara. - levantei as mãos pedindo para ele tomar ar. - Eu ando descobrindo coisas demais e é sempre sem querer. Não precisa se justificar por nada, eu entendo que você tinha de guardar um segredo.
- Mas não de você! Eu não devia guardar nenhum segredo de você.
Olhei para cima e analisei o céu nublado por um momento; até então não estava chovendo, mas também não demoraria muito. Me apoiei na mesa e fiquei em pé no banco, dando um salto em seguida e ficando ao lado dele. Já dava pra sentir aquela força de atração só de me aproximar mais um milímetro dele, como se fôssemos dois ímãs. Jake era infinitamente mais alto, então eu tive que erguer a minha cabeça para olhar diretamente em seus olhos castanhos.
- Vamos andar. - me virei para o lado, dando um passo para frente e apontando para o lado em uma circunferência. - Sam me fez passar um tempão sentada, preciso deixar o sangue fluir pelo corpo todo.
- Um tempão? - ele repetiu, erguendo as sobrancelhas. - Há quanto tempo você está aqui?
- Desde as nove da manhã... por aí. - respondi, me virando para trás. - É que não dava pra esperar em Warrenton, então decidi vir pra cá e Sam acabou me encontrando e me arrastando para a casa dele.
- Espera, você matou aula? - Jacob juntou os fatos e um sorriso começava a aparecer nos seus lábios. Eu assenti e ele soltou uma risada. - Você matou aula pra falar comigo? E esperou até agora porque não conseguia ficar em Warrenton? - ele parecia maravilhado e seus olhos até brilhavam.
- Sim, e eu teria ficado num bom tédio se Sam não tivesse aparecido. - respondi mais uma vez, indo para o lado dele e empurrando-o para frente. - É sério, eu preciso caminhar um pouco.
É claro que era uma visão absurda, eu empurrando Jacob na esperança de que ele se movesse. Não preciso deixar mais claro a insignificância do meu tamanho ao lado dele, por isso era uma visão tão cômica. O interessante - "interessante", essa é a palavra - foi o quanto o meu primeiro contato com sua pele quente me deixou aquecida de uma vez, o frio que eu sentia passou imediatamente.
- Você é incrível. - ouvi ele dizer enquanto, para a enorme surpresa de todo o meu corpo, ele deu um passo para frente e segurou a minha mão, entrelaçando os seus dedos e apertando-a com segurança.
Obviamente, eu comecei a sorrir feito criança em manhã de Natal. Abaixei a cabeça para que ele não visse o quanto eu estava vermelha e começamos a andar lentamente, contornando o lago Cullaby e, claro, sem soltar as mãos.
Deus me livre perder qualquer tipo de contato com ele.
- Mas que droga, todo mundo te contou tudo antes de mim! - era só o que Jacob falava. Ele bem que tentou fazer uma introdução ao assunto "sou um lobisomem" mas eu tive de interrompê-lo e dizer que eu já sabia de tudo, de todos os mínimos detalhes. - Ah, porque se eu quebro as regras, uh, coitado de mim.
- Espera, mas você não quebrou regra nenhuma. - uni as sobrancelhas. - Quer dizer, ninguém quebrou regra nenhuma... Tecnicamente, eu descobri tudo sozinha, eu só precisava de alguém pra me ajudar a organizar as ideias com algumas coisas que faltavam, só isso.
- E esse alguém deveria ter sido eu, não Paul e Jared.
- Mas foi Sam... - corrigi em voz baixa, e ele me olhou como quem dizia "você me entendeu".
Já havíamos passado da décima volta no lago, eu já estava decorando a ordem dos arbustos que vinham pelo caminho. Foi um longo caminho e tempo suficiente para que eu repetisse não só o que eu havia dito na casa de Sam e Emily mais cedo mas, também, tudo aquilo que ele próprio havia me falado. Já me cansava essa de contar histórias o tempo todo, mas como era com Jacob eu não exatamente me importava. Eu podia contar a minha vida inteira e depois escutá-lo falando sobre qualquer mínimo detalhe do seu dia, só pra... Sabe como é, ter ele por perto.
- Eu imaginei mesmo que você já soubesse de quase tudo. - Jacob prosseguiu, balançando nossas mãos. - Você parecia já saber do vampiro e tudo mais...
- É, mas eu também descobri isso sem querer. - lembrei. - E não foi nada agradável, se você quer saber.
- Ok, prefiro ficar na ignorância.
- Tudo isso veio caindo em cima de mim sempre "sem querer". - prossegui, enquanto passávamos novamente pelo banco onde eu havia me sentado. - Primeiro foram os vampiros e, depois, aquele dia que eu escutei você e Sam conversando...
Jake parou de andar e puxou minha mão levemente, me olhando com um pouco de indignação.
- Que dia foi esse?
- Quando eu fui até a sua casa e deixei um bilhete... - respondi, pronta para pedir desculpas novamente por escutar atrás da porta. - O dia de Seaside.
Claro que eu fiquei vermelha assim que mencionei Seaside; eu sabia que, a partir daquele momento, ele estava mais próximo de me contar do imprinting que eu já sabia, mas ainda assim queria escutar a versão dele.
- Você... O que você escutou? - voltamos a caminhar com cuidado, ele tinha um certo pânico no olhar.
- Escutei você e Sam falando sobre vampiros, depois falaram sobre lobisomens... E não foi difícil de acreditar, nada mais me parece improvável em Warrenton. E também escutei as teorias de Sam sobre esse meu, ah... bloqueio mental.
- Eu me lembro. Ele disse algo sobre você ficar presa na sua cabeça e só conseguir ficar acordada fisicamente... - Jake lembrou, me fazendo assentir.
- Exato. O que vocês não sabiam é que eu fico assim quando estou quase dormindo, não é algo natural ou que acontece a todo momento. - tentei explicar usando as mesmas palavras de Emily. - Um dia desses eu dormi à tarde e, quando percebi, estava sozinha na trilha que vinha para cá. Eu custei a acordar de verdade, eu só seguia aquilo que me vinha à cabeça, como se fosse um sonho qualquer.
- Entendi... Você acha que é um sonho, por isso não mede o que está fazendo... - ele concluiu ainda mais perfeitamente. - Isso é perigoso demais.
- É assim que o Daniel entrava na minha cabeça assim que eu o conheci. - admiti, afastando as lembranças de ficar tão focada nele e me esquecer do que eu fazia "do lado de fora". - Eu fiquei no piloto automático por um tempo. Até que ele se afastou por uns dias e eu parei de ser influenciada pela presença dele. Foi aí que...
Parei imediatamente. Eu tinha que reunir toda a coragem que me restava para contar absolutamente tudo a ele, era mais do que injusto deixá-lo de fora de qualquer parte da história.
- Foi aí que...? - Jacob insistiu para que eu continuasse.
- Jared disse que o objeto do imprinting sente tudo aquilo que o outro sente. - falei de uma vez, me lembrando do que os garotos haviam falado. Vi Jake arregalando os olhos rapidamente, ele não devia estar esperando que eu fosse tocar logo nesse assunto. - Então... Então por que eu nunca...? Argh, você entende?
Eu sentia que ia chorar pela terceira vez naquele dia, e não sabia se aguentaria segurar as lágrimas de novo. Respirei fundo três vezes enquanto percebi Jacob se preparando para falar.
- , você não precisa ficar nervosa. - senti ele soltando a minha mão e me abraçando de lado. Eu parecia uma criança perto dele, mesmo que minha altura fosse um pouco acima da média. Paramos ali, no meio do caminho, e ficamos em silêncio por um tempo, eu mal conseguia abrir a boca. - Você acha que eu também não fiquei em pânico com isso tudo? Fiquei e não foi pouco. Eu me lembro exatamente no dia que você e a sua família vieram até a reserva à noite. Eu estava dentro de casa quando vi você descendo do carro do seu pai e aí já estava tudo feito. Embry estava do meu lado e o imbecil quase caiu no chão de tanto rir quando viu a minha cara e percebeu o que havia acontecido...
- Mas você não vê a merda que eu acabei fazendo? - insisti e comecei a me desesperar. - Olha só o tempão que você deve ter ficado arrasado... me ver com Daniel, argh! Mas eu também não sabia de nada ainda... Aliás, ainda parece que eu não sei de uma porrada de coisas, isso ainda me dá uma raiva do caralho e também...
Não consegui terminar, Jake havia erguido a outra mão e tampado a minha boca completamente. Ele esperou até que eu tivesse parado de falar completamente e então me soltou.
- Como eu ia dizendo, pelo menos a gente tem uma noção do que estava acontecendo antes; sobre o vampiro, a irmã dele, você... Sam quase perdia o controle quando alguma coisa acontecia e ele não sabia a razão.
- É mesmo? Porque parece que todos os seus problemas apareceram quando eu me mudei para cá.
- , quando você vai entender que você não é o problema? - ele soltou uma risada. - É exatamente o contrário.
Diminuí meus passos e olhei para cima na direção dele. Por essa eu realmente não esperava; isso só mostrava o quanto eu era uma droga para "assuntos do coração" e provavelmente o imprinting era algo surreal demais pra mim. Mas, ao mesmo tempo que era tão difícil de entender, também parecia uma coisa certa.
Jacob olhou pra mim de volta e deixou um sorriso aparecer nos lábios. Abaixei a cabeça rapidamente, provavelmente meu rosto estava vermelho. Foi por isso que ele riu alto, me puxando pela mão e andando mais rápido de volta ao caminho que passei para entrar no lago.
- Mas então... - ele disse, completamente aleatório. - Matando aula?
Fechei os olhos e comecei a rir, não imaginei que ele fosse mudar de assunto completamente. Eu continuava sem saber o que fazer pra ter coragem de falar pra ele que, agora, o imprinting finalmente parecia funcionar, que eu gostava dele de verdade. Ou eu tinha algo de muito importante para falar e acabava desviando a atenção ou era isso: ele mudava de assunto completamente. Dava pra ver que ele ainda continuava nervoso, mas com certeza não era mais do que eu.
- Que droga, até parece que você nunca fez isso - respondi enquanto passávamos pelo caminho aberto e eu reconhecia o carro de Debra estacionado logo à frente. - Acho que essa é a primeira vez que eu mato aula em toda a minha vida. - vi Jake arregalando os olhos na minha direção. - Que foi? Quando se tem uma mãe professora é meio difícil burlar o sistema acadêmico.
- Engraçado... Sua mãe nunca pareceu se importar muito que eu faltasse na aula dela. - ele comentou, balançando a cabeça e ainda rindo. - Vai ver eu sou o aluno preferido.
- Isso significa que ela gosta mais de você do que de mim. - essa era a verdade, pelo menos era o que parecia.
- Ah, não fala merda!
- É sério! - insisti, me virando na sua frente. - Acho que só agora que o Matt está de cama que ela resolveu ser minha mãe de verdade.
- É mesmo, você até veio com o carro dela. - Jacob apontou para a frente, onde o carro estava parado.
Paramos bem ali e soltamos nossas mãos, nos encarando sem saber o que fazer. Era claro e evidente que a minha vontade ainda era de correr para ele e nunca mais soltá-lo, mas essa era a parte de mim que eu vivia tentando conter por medo de assustar demais as pessoas.
- Bom, e esse carro precisa voltar pra casa logo. - pensei no quanto Debra ficaria irada se descobrisse que eu havia matado aula. - Minha mãe volta pra casa depois das sete, mas ela pode muito bem me ver passando por aí e isso não seria nada legal.
- Você só tem que voltar com o carro para casa, só isso? Sua mãe vai precisar dele? - Jake parecia ter alguma ideia em mente.
- Na verdade não, ela dirige bem raramente. - respondi.
- Então você pode sair com o carro a hora que quiser. - ele mais afirmou do que perguntou.
- Ah, acho que sim...
Senti uma sensação boa, me lembrando imediatamente da última vez que ele fizera alusões com carros e saídas.
- E o que você vai fazer hoje mais tarde? - ele enfim perguntou com um sorriso torto que quase me fez desfalecer ali mesmo.
- Não sei, na verdade. - respondi feito uma idiota; não se diz não a essas perguntas, que droga.
- , amanhã é sábado. - ele lembrou. - Tenho certeza que você não tem que estudar até tarde hoje.
- Isso porque eu acabei de matar aula. Mas tudo bem, eu realmente não tenho nada pra fazer...
- Ótimo, você vai até a sua casa e vai ligar de lá para a sua mãe e pedir o carro emprestado. - Jake instruiu enquanto eu destrancava o carro e passava para o banco do motorista.
- Por que ligar de lá? E pra onde eu vou com o carro? - perguntei, esperando ele dar a volta e entrar pelo lado do passageiro.
- Porque assim ela pelo menos vai ter a ideia de que você foi pra casa. - ele respondeu com perspicácia, e eu ergui as sobrancelhas. - É que a mãe de Quil não sabe da verdade e não entende porque ele sai de casa toda noite, então a gente acaba aprendendo algumas coisas para enganar os pais.
Então eu não era bem a pessoa mais desinformada de todas. Pobre Quil...
- Tudo bem, não vou questionar as engenhosidades da alcatéia. - comecei a rir, enquanto fazia o caminho de volta e tentava encontrar a estrada para Warrenton. - Mas você ainda não me respondeu para onde eu vou.
- Nós vamos ficar aqui mesmo. É o lugar mais seguro e Warrenton me deixa irritado. - Jacob respondeu e me lançou um olhar de reprovação quando eu passei a marcha. - A estrada é pra lá. - ele apontou para o caminho que eu havia acabado de passar.
- Obrigada por ter avisado antes. - não foi um comentário muito educado, mas ele apenas riu e se virou para frente, abrindo o vidro do seu lado.
Passamos o caminho até Warrenton em silêncio, o que me ajudou bastante a me concentrar nas pequenas ruas de Talapus até encontrar a saída. Não muito tempo depois, eu já estacionava na garagem de casa e Jacob descia do carro parecendo impaciente por todos os meus erros na direção.
Dei a volta no carro e fui até o lado dele, que estava parado e tinha uma expressão fechada e alguns tremores pareciam percorrer o seu corpo. Fiz menção de dar um passo para frente, mas ele segurou meu braço e me fez voltar.
- O que foi? - perguntei, sentindo ele apertar as mãos em volta de mim.
- Um vampiro.
Ele me soltou e deu passos pesados até a varanda, parando na porta para que eu tirasse a chave do bolso e abrisse de uma vez.
- O que? - perguntei abaixando a voz com medo de que Matthew escutasse. - Como assim, que vampiro?
- Lá em cima. - ele apontou para a escada, segurando a minha mão e me puxando com ele.
- Espera! - sussurrei quando pisamos no corredor. Soltei sua mão e saí na frente com cuidado para não fazer barulho.
Parei na porta do quarto de Matt, encontrando-a entreaberta e podendo ver que a janela não estava trancada ou sequer encostada.
- Matthew? - perguntei em voz alta antes de entrar. - Matt? Tá acordado?
- Hmmmm... - escutei ele grunhindo de dentro do quarto. - Que? Ah, tem uma amiga sua aí.
- Que amiga? - perguntei, sentindo Jacob passando por mim e indo em direção à porta fechada do meu quarto. Torci para que Matthew não o visse, me salvando de inúmeras perguntas que eu não ia querer responder.
Matthew não respondeu, apenas caiu no sono mais uma vez. Corri para o meu quarto e tive que (tentar) empurrar Jacob do batente da porta, onde ele estava parado de frente para Lisa. Os dois se encaravam com raiva e pareciam prestes a se matar, não sabia se era seguro aparecer ali no meio ou não.
Vi Lisa se virando na minha direção e eu dei um passo para ela, mas logo sentindo mais uma vez a mão de Jake segurando o meu braço. Ela logo mudou sua expressão para o sorriso debochado e desafiador de sempre, ao que Jacob respondeu com um barulho que lembrava um rosnado ou algo assim.
- Gente... - me soltei da mão de Jake e entrei no meio do caminho dos dois, ainda com medo de que essa não fosse uma ideia muito inteligente. - Eu não quero ninguém morrendo no meu quarto, ok? Jake... - me virei para ele, colocando as mãos no seu rosto e fazendo ele olhar para mim. - Tá tudo bem, ela não vai me fazer nada. Certo, Lisa?
- Eu nunca faria. - ela respondeu friamente e exibindo mais um sorriso falso, eu já estava acostumada. - Eu preciso falar com a ...
- Pode falar. - Jacob interrompeu, dando um passo à frente.
- ... sozinha. - Lisa completou a frase, também dando um passo à frente.
Era bem claro que, mesmo que Lisa estivesse em "missão de paz", ela ainda representava perigo e ameaça à Jacob, e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar isso. Me senti menor ainda no meio dos dois tão... fortes e imortais.
Jacob pareceu ponderar por um momento, depois voltou para trás e fez menção de sair do quarto. Lisa deu um sorriso vitorioso e se sentou na minha cama, cruzando os braços e se virando pra mim.
- Eu te espero lá fora. - escutei ele falando enquanto passava pelo corredor. - O cheiro ficou insuportável.
Me voltei para Lisa, esperei ela se levantar e desistir logo daquela pose chata pra caralho pra começar a me xingar por ter deixado ela sozinha na escola sem explicação alguma.
- Onde você está com a cabeça? - ela começou, andando em círculos parecendo a minha mãe. - Eu te falei inúmeras vezes que o Daniel pode estar atrás de você, obsessivo como ele é, e pode simplesmente resolver te matar a qualquer momento. E o que você faz? Sai correndo sozinha, Velozes e Furiosos por Warrenton correndo risco de morrer no meio do caminho!
Revirei os olhos, me sentindo uma criança que atravessou a rua correndo. Lisa continuou o monólogo por um bom tempo, até que eu fiquei em pé e fui até a porta do quarto, fechando-a com cuidado e olhando na sua direção.
- Quem tem problema é você! - apontei acusando-a. - Meu irmão aqui do lado e você fica gritando essas coisas? Quer acabar com o seu precioso segredo?
- Ah, foda-se! - Lisa finalmente abaixou a voz, fazendo nossa discussão ser um pouco estúpida com duas garotas sussurrando com raiva uma para a outra. - Você ainda sai e volta com uma porra de um lobisomem pra cá? Por que você foi atrás dele?
- Porque você nunca me responde nada direito! - fingi gritar, agitando os braços para expressar um pouco o quanto eu estava irritada. - Se você e Daniel parassem de me enrolar e começassem a responder de verdade o que eu tenho a perguntar, talvez eu nunca tivesse ido pra Talapus buscar quem me contasse tudo que eu quero saber!
Lisa não conseguia falar uma frase completa, apenas xingava aleatoriamente e passava a mão pelos cabelos loiros escuros que lhe caíam na testa. Ela tinha bastante raiva, algo que eu nunca havia visto, mas não me importei muito porque ela também teria que ouvir o que eu tinha a dizer.
- E quer saber? - continuei. - Que bom que eu fui pra lá. Agora eu sei a merda que Daniel andou fazendo por aí.
- E eu aposto que seus amiguinhos te encheram a cabeça para falar que eu também andei fazendo merda por Warrenton, não é?
- Na verdade não... - me lembrei das palavras de Sam, sobre Lisa nunca ter causado problemas. - Eles disseram o mesmo que você já me falou, que se alimenta de sangue humano, mas nunca matou ninguém no Condado... Ao contrário do seu irmão.
Lisa pareceu não acreditar. Ela desabou na minha cama e colocou as duas mãos no colo, encarado o chão e com algo parecido com choro nos olhos. Me sentei ao seu lado, tentando ser compreensiva mais uma vez mas sem saber ao certo do que fazer.
- Eu devo uma a eles então. - ela disse, triste. - , eu só quero achar o meu irmão!
Depois de tudo que eu havia visto, Lisa ainda era a criatura mais estranha que eu conhecera desde então. Ela era extremamente arrogante e debochada, depois era cheia de raiva e descontrolada para, então assumir um lado triste e silencioso. Tamanha foi a minha surpresa quando ela encostou a testa no meu ombro e suspirou várias vezes, fazendo aquela mesma coisa que parecia que ia levá-la às lágrimas - se vampiros pudessem chorar.
- É muito difícil ficar sem ele... - ela continuou, enquanto eu estava ainda sem reação. - Eu vivi quase toda a minha vida com ele ao meu lado, agora eu não sei o que fazer! Não sei onde ele está, quando volta... E eu me preocupo com ele, mas me preocupo com você também. Tenho medo que ele volte com raiva e resolva te matar. - ela se levantou e olhou para mim. - Isso é muito estranho e difícil de admitir, mas eu gosto de você. Gosto como se fosse a amiga que eu nunca tive e sempre precisei durante todos esses anos.
Coloquei minha mão automaticamente no ombro de Lisa e tentei consolá-la, o choque dentro de mim só aumentando. Nunca, nem em um milhão de anos, eu poderia sequer adivinhar que Lisa sequer me considerava, ainda mais que gostasse de mim e quisesse ser minha amiga. Ela própria havia dito que era contraditório... Ela querer Daniel de volta mas, também, temer por ele fazer alguma coisa comigo.
Legal, eu mal sabia lidar com um imprinting que ficaria comigo pro resto da vida, agora também tinha uma vampira desamparada que queria a minha amizade.
- Olha, eu preciso ir. - Lisa se levantou num salto. - Adam não quer que eu fique muito tempo fora de casa, ele está com medo de que eu vá embora assim como Dan...
- Eu entendo. - respondi, ficando em pé também. - Eu vou sair agora com Jacob, vou ficar segura, não se preocupe.
- Ah, vai sair? - ela arrumava o cabelo e se recompunha. - Troque de roupa então.
- O que?
- Ah, não me leve a mal, mas eu não usaria essa blusa nem em casa. - ela lançou um olhar cheio de críticas na minha direção. Ótimo, Lisa está de volta.
Antes que eu pudesse protestar, Lisa já estava revirando o conteúdo do meu armário com aquela rapidez maluca de vampiros. Todo mundo adorava fazer isso comigo, incrível.
- Pronto, tirar isso aí não vai te fazer mal. - ela apareceu na minha frente com uma blusa de renda branca e tecido leve.
- Eu vou morrer de frio. - falei assim que vi o que ela havia pegado.
- Vai nada. - Lisa me jogou a blusa e eu a peguei no ar, indo até a janela e fechando a cortina para poder trocar de roupa. Me virei de volta para mostrar o resultado. - Feliz?
- Na medida do possível. - é claro que ela não ia se dar por vencida. - Então, eu vou embora. Me leva até a porta? Não quero ter a cabeça arrancada por um lobisomem assim que pisar no jardim.
- Levo.. Ah, espera, eu preciso ligar para a minha mãe. - respondi, me lembrando de usar o telefone de casa.
Passei na porta de Matthew e gritei tchau, ao que ele respondeu com outro barulho indefinido. Peguei o telefone fixo e avisei Debra, pela secretária eletrônica, para onde estava indo e que levaria o carro. Bom, não era culpa minha que ela não tivesse atendido.
Lisa passou e me esperou ao lado, enquanto eu trancava a porta e colocava a chave no bolso junto com o celular. Jacob estava encostado no carro de Debra, ao lado do motorista, e encarava Lisa com a mesma raiva de antes, mas um pouco mais contida. Lisa se virou para mim e, surpresa novamente, me deu um abraço.
- Me ligue se acontecer alguma coisa. - ela disse, enquanto descíamos os degraus da varanda.
Ela ignorou Jake e correu até o carro estacionado do outro lado da rua, arrancando em alta velocidade em seguida. Observei enquanto o carro não sumia na minha rua e andei até onde Jake estava de braços cruzados e ainda com o olhar sério.
- Eu não entendo... - ele começou, desfazendo a pose e fechando os olhos.
- Nem eu, eu nunca entendo nada. - interrompi antes que ele também começasse o seu monólogo. - Mas deixa pra lá. Anda, vai para o outro lado.
- Não, eu vou dirigir agora. - e estendeu a mão na minha direção para que eu entregasse as chaves.
- Mas é claro que não. - respondi, fechando a mão em torno delas. - Que idéia é essa?
- Você não sabe pra onde vamos, então acho melhor eu fazer o caminho. - senti ele cobrindo o meu punho com a mão quente.
- Mas eu sei seguir direções. - tentei afastar ele de perto das chaves.
- Claro, disse a garota que se perdeu pra voltar pra casa.
Revirei os olhos mas ainda não entreguei as chaves. Ficamos apenas um encarando o outro enquanto ninguém tomava uma decisão de verdade. Nessas horas que eu entendia um pouco do que era o imprinting; ter ele ali tão perto que dava pra sentir sua respiração batendo na minha pele, eu quase podia beijá-lo se quisesse, mas eu ainda tinha essa mania de ter pé atrás com tudo. Jacob me olhava com a mesma intensidade, parecendo queimar por dentro e essa era uma sensação muito boa. Mas ainda assim não fizemos nada, éramos dois medrosos.
- Tá, você venceu. - entreguei logo as chaves na mão dele e fui para o banco do passageiro, fechando a porta com força e observando enquanto ele tirava tudo do lugar. - Mal sentou e já bagunçou o carro inteiro.
- Eu? - ele apontou para si mesmo, enquanto arrumava o retrovisor com a outra mão. - Você que dirige toda errada, olha só pra onde o retrovisor estava.
- O carro é da minha mãe... - justifiquei, mesmo que eu tivesse desregulado tudo assim que o peguei pela primeira vez.
- Sei, sei... - ele finalmente arrumou tudo do jeito que queria e colocou a chave na ignição.
Jake deu a partida e saiu da garagem, pisando no acelerador e indo muito mais rápido do que eu iria. Ele se dividiu entre se divertir com a minha inquietação e se irritar com o carro de Debra, mas isso logo passou.
- Ainda não vai me dizer pra onde estamos indo? - perguntei no meio do caminho, percebendo que ele havia tomado uma direção diferente.
- Não. Mas não espere grande coisa, ainda é Warrenton pra todos os efeitos.
- Tudo bem, eu não estava pensando em algo surpreendente demais. - admiti, embora ainda estivesse curiosa para saber para onde diabos iríamos. - Mas não custa me falar onde é...
- Só confie em mim, só isso. - e deu mais um daqueles sorrisos de lado e eu me calei antes que dissesse alguma besteira.
E eu era expert em dizer besteira.
Primeiro, eu queria agradecer MUITO pelos comentários incríveis que vocês postam aqui. Sério, não tem nada melhor do que saber que alguém se importa e gosta do que eu escrevo, essa é a minha maior motivação e não sei o que eu faria se não fossem vocês. Segundo: Esse foi o capítulo mais difícil que eu já escrevi, acho que eu passei, o que, umas duas semanas para terminá-lo de vez. Esse foi o penúltimo momento "bonitinho" e tranquilo que a personagem e o Jake terão; a partir do capítulo 14 vocês vão ver o quanto a situação vai se complicar. Penúltimo porque eu já escrevi o capítulo seguinte - eu escrevo mais ou menos de trás pra frente - e ele sim vai ser algo muito romântico e tudo mais (mas na medida do possível, ainda to aprendendo a escrever coisas bonitinhas, então, paciência!).
Ok, depois do meu pequeno spoiler (foi um spoiler?) eu me despeço e, mais uma vez, agradeço aos comentários que vocês deixam, eles realmente me fazem ganhar o dia! Continuem comentando não só em Lupin, mas também em todas as fics que vocês lêem... É sério, gente, isso é tipo o presente divino para autoras.
See ya!
M.D.
AAAAAHHHHH!!!!\o/ pirei legal aqui com essa fic...maravilhosa tudo de bom..to super curiosa pra ler mais e mais e mais e mais ....quem é esse #deuso ai??? ai ai #suspiros....posta logo outro cap. flor já estou louca aqui de tanta curiosidade e ansiedade.
ResponderExcluirbjoss
Estou adorando sua fic!! bem legal flor. =]
ResponderExcluirDude, que fic perfeita; a pp é muito legal e Daniel sem comentários, Ô o meu Jake, os vampiros são um pouco de crepusculo com tvd, né? Eu quero att logo viu, *brinks*. Dividida entre um lobisomen e um vampiro, a pp é bem melhor que a Bella.
ResponderExcluirbjus.
Amando a fic, super curiosa pra ver oque vai acontecer.
ResponderExcluirAh finalmente tive um tempinho pra ler XD......GENTE O QUE FOI ISSO???? esse Daniel esta me iludindo e eu boba estou caindo no papinho dele???em todo aquele charme?? como sou ingenua....sinceramente se eu tivesse um Jake na minha vida eu não ia querer saber de outro não viu porque aquele ali é a perfeição....mas vai ver é pq a PP esta passando pouco tempo com o #deusomaravilhoso Jacob né???
ResponderExcluirTá a PP não ficou com medo mas agora eu fiquei com esse relato de Daniel, arquitetando planos para pegar a PP ....
Mas meu linducho sempre estava lá pra me proteger meu (lobinho maravilhoso)..que fofo XD
Mas estava aqui pensando...a PP não vai ser uma Bella da vida não né??? fazer Jake sofrer horrores???não sei se meu coração aguentaria ver ele sofrendo por minha causa =( #topirandonafic
Mas.. estou amando e quero mais hein..vamos ver como essa historia vai se desenrolar...agora com essa nova da PP ser sonambula (eu hein¬¬ doida)....Mas falando serio não queria ser uma Bella da vida de Bella só basta uma né? kkkkkk #fãclubeodeiaabella kkkkk
bjosss flor e estou esperando ansiosa por mais =D
Nossa que ficção louca, primeiro..quando comecei a ler fiquei sem saber se era team Jake ou não, mas continuei pra ver no que ia dar, quando percebi que os lobinhos mais lindos estavam na historia me deu panico, pq ela está muito interessada no vampiro , mas ai descobri que ela é o imprint dele, então me acalmei um pouco, mas só um pouco, pq sinceramente não estou gostando nada desse interesse subto pelo vampiro, se ela é o impringt do Jake, pq ela não demonstrou interesse algum por ele??? Fora que estou realmente apavorada pela possibilidade de ela ser um Bella songa monga da vida e fazer o Jake sofrer horrores, ele não merece isso de novo, acredito que vc não vai fazer isso , pq meu coração não irá aguentar isso.Não vejo a hora de ler o proximo capitulo e ver ela se encontrando com ele de novo, espero que ela de uma atenção melhor a ele. bjs
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu geralmente deixo comentários para notas no fim do capítulo, mas dessa vez eu abro uma exceção: é claro que ela não vai ser uma Bella da vida (o motivo de eu não colocar os vampiros originais da série foi pra eu não ter que mencionar ela, é muita chatice pra uma personagem só, certo?), e outra: eu ainda tenho muito pra escrever ;)
ResponderExcluirMas muito obrigada por notarem, é sério! Esse é um "medinho" que eu quis causar, tem muitos fatores psicológicos da PP em relação à maneira com que ela sente o imprinting...
Wow, que fic!!!
ResponderExcluirEstou amandoooooooo!!!
A fic está realmente DIVINA, vou estar acompanhando com certeza, bjsssss!!!!
Não vou ser uma Bella...Não vou ser uma Bella...não vou ser uma Bella...#fazendodancinhamaluca
ResponderExcluirFico tão feliz por isso XD mas agora já estou sabendo que a PP é mais complicada do que eu pensava...já que ela não sentiu o mesmo logo de cara pelo jake já que ela é seu imprinting....
Estou ansiosa esperando por mais...agora fiquei mais curiosa do que já sou pra saber o que vai acontecer a PP ao Jacob e a esse vampiro malvado ¬¬ kkkkkk
bjs
Alguém me socorre, eu vim pensando que tinha cap novo e repete o 3? whyyyyy?
ResponderExcluirCheguei aqui hoje e já devorei os caps postados!
ResponderExcluirBom, o que eu posso dizer, adorei definitivamente a abordagem e o enredo. Gostei mto de ter usado vampiros diferentes dos da Saga e ter dado um novo significado a eles, bem diferente dos brilhosos da titia Steph. Estava mesmo gostando do Dan, mesmo que preferisse o Jake, claro, mas ele me desiludiu muito nesse último cap. Afinal eu esperava que ele tivesse sido sincero comigo e na verdade ele está apenas fazendo jogo de gato e rato.
Mas por um lado gosto disso, dele ser diferente nesse aspeto.
Gostei bastante da PP e da sua personalidade. Não tem nada a ver comigo mas ao mesmo tempo me identifico com algo que eu gostaria de ser.
Kisses da Baby
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh
ResponderExcluirPulapulapulapula!
Tô mto feliz q as coisas estão indo tão bem com o Jake. Ele deve ter ficado banana com o fato de eu saber o q ele iria contar. kkk
Mas acho q quem não vai ficar nada feliz vai ser o Daniel. estou vendo q ele vai aprontar....enfim, louca pra ler e saber mais
Kisses da Baby
#morri.
ResponderExcluirComecei a ler hj e ja to apaixonada!
Nossa! como vai ser agora, com esses dois lindos de viver! ansiooooosa demais!
Parabéns pela Fic!
Adoro a maneira que você descreve o sentimento da PP pelo Jacob, assim como o drama que ela se encontra com o Daniel, UAL, eu amo essa fic! Continue logo!!
ResponderExcluirParece que essa história dela ter uns momentos "presa" a sua mente, fez isso muito mais interessante pro Imprinting *--* Sou fã de carteirinha já.
Adorei!!! muito boa essa história! de inicio ela não me prendeu mas agora.... cara não consigo parar de ler! Esse Daniel é louco! e eu achando que ia ser algo parecido com a hist original! engano meu! mas ta muitooo bom! Posta mais eu vou continuar lendo!! bjos!!
ResponderExcluirPAI AMADO! COMO VOCÊ FEZ ISSO? Cara, esse jeito da PP lhe dar com as situações é incrivel, agora que ela parece um pouco mais madura em relação aos vampiros, e tudo o que ela já descobriu do lobos... WOW, amo cada vez mais e preciso admitir que estava roendo as unhas no final do 10º capítulo. Muito bom, muito bem escrito e PLEASE PRECISO DE MAIS
ResponderExcluirMuito bom :) continue, por favor xD
ResponderExcluirFiquei com um friozinho na barriga com esse final. Lisa pareceu bem verdadeira com o que disse e as coisas parecem bater todas certo. Mas e se for só uma armadilha e eu caí que nem uma patinha? OMG! O que será que terá acontecido na floresta? Dan não parece aquele tipo de pessoa que desiste facilmente. Fiquei mto curiosa mesmo com tudo. E estou ainda mais ansiosa para ir até Talapus e escutar as lendas e verdades da boca de Jacob e dos Quileute.
ResponderExcluirOh, my god!!! Que fic divinaaaa!!!
ResponderExcluirOmg, os Quileutes são mesmo demais, me acabo de rir com as gracinhas desses meninos. rsrsrsrs
E agora a PP conhece a verdade sobre os Quileutes e sobre o imprinting. Vamos ver no que vai dar nesse reencontro com o meu lobinho, agora que ela já descobriu sobre tudo...
Amandoooooo demaisss!!!!
Bjsssss!!!!!
Cara, amei essa sessão de esclarecimentos com esse pequeno grupinho. Só com eles é que as dúvidas seriam esclarecidas, se Jacob estivesse por perto acho q não prestaria atenção em NADA! kkkk
ResponderExcluirAdorei a descontração e maluqueira do Sam. Sempre o imagino tão sério e tão pouco dado a brincadeiras, mas adorei vê-lo assim descontraído.
E agora sim, tudo foi esclarecido em relação aos lobisomens, Daniel, Lisa e imprinting!
Agora vamos lá ver como será com Jacob.
Kisses da Baby
*Reação a la Alice ao Cap.* Adorei!!!! Começou meio tenso mas depois o gelo derreteu perguntas foram feitas e respondidas, historias mais ou menos contadas, próxima parada encontrar o Jake!!!!o/
ResponderExcluirPosta mais To adorando!
'Tá muito boa a fic, as coisas estão descomplicando, e esse lance com o Jake... tá d mais.
ResponderExcluirPosta bem rapidinho o próx. cap.
Bjs
Nossa que louco!!!!! amei, amei. achei que ela ia se interessar pelo Daniel, estava ficando preocupada de ela não dar a minima pro Jake, mas.... ufaaa!!!! posta mais please!
ResponderExcluirOwn, que fofo é assistir a PP e o Jake juntos e sinto que o próximo será perfect!!
ResponderExcluirLisa também é linda e está numa tremenda dúvida, ela quer o irmão, mas tem medo do que ele pode fazer com sua primeira grande amiga. Quem diria, ela realmente gosta da PP.
Estou adorandooooooo demais a fic! ^_^
Bjsss
Ain esses dois estão muito devagar na questão romance kkk poxa ele bem que podia agarrar a pp e tascar um beijão apaixonado!! O cara ser romantico é ótimomas também tem que ter pegada!! O cap e a fic estão ótimos!! As coisas estão finalmente se acertando para embaralhar tudo de novo? cumassim? Bom fic boa normalmente tem coisas assim então vamos esperar pra ver!! hummm Acho que é só Bjos e até a próxima Ahhhhhh quase esqueci!!! POSTA MAIS!!
ResponderExcluirNao vou mentiir . Começei a ler Lupin hoje. Tinha começado a ler e nao consegui me interter muito. Mas decidi dar uma chance a fic e foi a coisa mais sábia qe fiiz. Gosteei de mais. Tah show . Uma históriia completamente diferente de Twilight, a nao ser os quileutes, e axo qe foi isso qe me chamou atenção. Apesar de q esperava um pouco mais de envolvimento entre a PP e o Jake, mas vc qe sabe. Mesmo assim tah bom . kkkkk . E esse Daniel hein!?!? Cabulso ele . Eu qe penseei qe ele era bonziinho viiu . D bom nao tm nada. Axeei qe quem iia fzer confusão seriia a Lisa, esta se saiu uma melhor amiiga mesmo .. E esse irmão da PP doente .. Rum ¬¬ seei a doença dele kkkkkkkkkkkkkkkkkk.
ResponderExcluirTo aki curiosissima pra saber o envolvimento dos pais da PP com os quileutes. Tem caroço nesse angu. To aki na expectatita. Vou passar a acompanhar direitinho a fic agoora.
Beijooos
XOXO
Você escreve bem pacas! Suas palavras me envolvem da trama de uma forma irreversível, me fazendo sentir cada sentimento da PP e dos restantes personagens como se fosse algo real e que estivesse acontecendo comigo.
ResponderExcluirAdorei os momentos com o Jake e agora que as coisas foram esclarecidas, espero que as coisas andem para a frente entre os dois...de forma romântica digo.
Ainda estou com um pé atrás sobre a Lisa! Ao mesmo tempo que desconfio, sinto que posso confiar nela. Tb essa bipolaridade dela é assustadora! kkkk
E cadê o Daniel? Será q haverá mais um POV dele contando onde tem andado e quais os planos dele???
Amei o cap e amei a sua notinha. Não precisa ser tímida. Aqui todos somos uma família, então sinta-se em casa.
Kisses da Baby
UFA!!! Ainda bem que o Jake e a PP estão se entendendo. Confesso que fiquei com medo dela se apaixonar pelo Daniel e magoar o Jacob. ESSE VAMPS É UM SUJEITINHO HIPÓCRITA, QUE BOM QUE A MÁSCARA DESSE ESTRUPÍCIO CAIU RAPIDINHO,NÉ? FOI D+++ O IMPRINTING COM O LOBINHO-LINDO SOU SUPER FÃ DELE E DESSA FIC TAMBÉM. Please, continue postando quero++++ BJOS.
ResponderExcluir'O' Fiquei de boca aberta agora *-* Uma das melhores fic que ja li, com total certeza. Você realmente escreve muito bem.
ResponderExcluirEm relação a PP e seus robs adorei KKK bem surpreendente e sem flar que isso é próprio de livros (colocar detalhes que por mais que seja insignificante ou ñ dá um ar mais real a estoria).
Adorei a Lisa mesmo achando ela um pouco sadica no inicio, mas ainda sim estou com um pé atras por ela, ela lembra um pouco da fofa Alice Cullen. Ja o Dan, realmente n gostei dele, no inicio até posso admitir que fiquei com um pouco de medo de ele ser gentil e docil como dizia ser, mas a partir do PVO dele em diante ...
Já em relação ao Jake... Uf!!! Meu Deus como o cara pode ser tão perfeito *-*, no inicio ele n apareceu tanto, mas quando chegou! Chegou com tudo.
Espero ATTs logo bjs X*
Adorei a fic, super bem escrita e cheia de detalhes! Parabéns... Estou esperando novos capítulos!
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