Felizes Mortes
Randi sempre sonhara com um casamento histórico, cheio de arte, riquezas
e extravagancias, um casamento a moda antiga. Era inglesa de nascença, porém o
sangue de seus antepassados hindus sempre falara mais alto e ele a trouxera até
este lugar, neste dia e nesta hora.
A garota olhou-se no espelho mais uma vez, admirando o trabalho que as
mulheres de sua família fizeram em seu corpo. Milhares de tatuagens de
hennavermelha cobriam suas pernas e braços, arabescos com flores e gavinhas que
pareciam subir por seu corpo, dando-lhe um aspecto ancestral. Os olhos
decorados com sombras em tons de dourado e kajal, evidenciando os olhos de uma
forma que inimaginável. Os lábios levemente cor de cereja estavam em harmonia
com os rubis e o sari¹ vermelho que lhe cobria o corpo, seu maravilhoso vestido
de casamento.
Mais do que feliz com seu casamento, a garota mal percebeu que estava
sendo observada. Ficou ali um bom tempo, apenas se admirando, até que sua mãe a
chamou para os preparativos finais. Estava quase na hora! Em breve, seria uma
mulher casada, daria orgulho a sua família.
O rapaz que a observava suspirou quando a noiva saiu de seu campo de
visão. Uma mulher maravilhosa, que o fazia feliz sem pronunciar uma única
palavra, mas que nunca seria sua. Seria dele.
E ele sequer a amava! Só estava se casando, pois os pais o obrigaram, não
lhe deram opção: ou casava, ou seria deserdado. Optou pelo casamento.
Annik achou que seria o castigo perfeito para o irmão mais velho, mas a
verdade era que ao castigo fora destinado a ele. Desde o momento em que
conheceu a noiva do irmão, encantou-se com sua beleza e doçura. Mulher de riso
fácil, olhos brilhantes, muitos talentos e amorosa para com todos.
Como o noivo não podia conhecer a noiva até a hora da cerimônia, foi o
intermediário do casamento, escolheu a noiva, acertou o dote e todo resto.
Conheceu a noiva e a família a fundo. Apaixonou-se pela garota. Quando percebeu
seus sentimentos mudando, só pode chegar a conclusão de que fora amaldiçoado
pelos deuses. Era sua sina. Ele era e sempre seria apaixonado por aquela que era
de seu irmão.
Precisava mudar isso. E faria o que fosse preciso para acabar com sua
maldição.
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Soham achava que deveria se sentir feliz, afinal, se casaria em poucas
horas. E em poucas horas, teria uma noiva que lhe encheria a cama e faria tudo
o que desejasse. Tentou se alegrar, mas não conseguiu nem sorrir minimamente.
Homem livre como sempre fora, sonhava em viajar o mundo, ter as mulheres que
desejava e todo o dinheiro que pudesse conseguir, não com um casamento
arranjado, como mandava a tradição de seu povo.
Tudo aconteceu quando seus pais descobriram que engravidara uma
ocidental em uma de suas viagens e a obrigara a abortar. Fez aquilo porque não
queria responsabilidades, mas aos olhos de seus tradicionais pais, aquilo fora
a gota d’água, um desrespeito irreversível contra a vida e, como castigo, ele
deveria se casar, a coisa que menos queria fazer na vida.
Porém estava ali, prestes a sair de casa montado em seu cavalo branco
com seu kurta² vermelho e uma espada de ouro presa ao quadril, enquanto rumava
ao matador de seus sonhos, seu casamento. Não querendo ficar sóbrio durante o
acontecido, pegou o pacotinho transparente que continha um estranho pozinho
branco, que havia adquirido na Europa durante uma viagem. Seus amigos diziam
que era bom, que o faria ficar feliz e fora de si.
Espalhou grande parte do conteúdo do pacote sobre a mesa, pegou um tubo
de caneta e inspirou profundamente, deixando que uma estranha ardência tomasse
conta de seu corpo. Poucos segundos depois, sentia-se livre e forte. Podia
enfrentar qualquer coisa, até mesmo um casamento indesejado.
_x_
-Seu noivo é um rapaz muito bonito. –disse sua mãe, acariciando-lhe os
cabelos negros. –Fará um bom casamento.
Ficara tão encantada com a ideia de se casar, que quase se esquecera de
que não estava casando com o amado, mas sim com o irmão mais velho.
Apesar de amar sua religião e costumes, Randi odiava o fato de os pais
terem de escolher seu noivo. Amava o irmão mais novo da família Chidambar.
Era Annik, aquele que arranjara seu casamento para o irmão, fechara negócios com
seus pais sobre seu dote, que a levara para rezar em alguns templos,
preenchendo seus ouvidos com voz doce e melódica ao relatar histórias de sua
família. Lembrava-se muito bem do dia em que ele a levara para um templo da
deusa Durga e se declarara, foi um momento mágico...
“Tentou fazer de
tudo para que os pais mudassem seu noivo, mas eles foram inflexíveis, dizendo
que se ela fora prometida para o mais velho, com o mais velho se casaria.
Arrasada com
aquelas palavras, ela fugiu de casa e se refugiou no templo da deusa Durga,
onde o amado se declarara a ela e ficou ali sentada, esperando que a deusa
atendesse suas preces e lhe mandasse algum consolo. E ele veio. Cabisbaixo,
olhos no chão e lágrimas escorrendo pelas faces. Era ele, Annik, que por sua
vez, ficou espantado quando viu a amada ajoelhada perto do altar da deusa, feições
tristes e toda desgrenhada. Nunca a vira tão desarrumada, nem tão linda. Correu
e ajoelhou-se a seu lado, sendo levemente acariciado no rosto.
-É realidade ou
apenas um sonho de minha mente já enlouquecida? –a garota perguntara.
-Se está sonhando,
então estou sonhando a mesma coisa. –respondera também a acariciando na face.
–Pela deusa que testemunha isso, Randi, juro fazer de tudo para que possamos
ficar juntos!”
Ela ainda esperava, mas suas esperanças minguavam a cada segundo. Seu
casamento estava próximo e não havia mais nada a ser feito.
_x_
-Randi é maravilhosa, irmão, deve trata-la muito bem. –Annik tagarelava
durante a procissão para o casamento.
-Que seja! –respondeu Soham, não demonstrando o menor interesse em
ouvir.
Apesar de saber que aquilo tudo era para leva-lo ao seu mais profundo
pesadelo, o noivo ficou feliz que fosse para ele, todas aquelas homenagens, a
festa e as animadas músicas que o seguiam por onde passava. Levou a mão ao
rosto como se fosse coçar o nariz, algo normal nas ruas cheias de areia daquela
cidade, mas a verdade era que queria mais um pouco do maravilhoso ardor que
experimentara mais cedo. Inspirou profundamente o pó que estava escondido sob a
manga, sentindo as vias respiratórias queimarem como se estivessem em chamas,
depois a pele, seguida dos olhos e boca. Seu coração vacilou e por um breve
momento teve algo semelhante a um espasmo, depois mais outro e mais outro. De
repente, o mundo tremia todo, assim como seu corpo. Uma estranha escuridão foi
tomando conta dele, até que caiu do cavalo e o mundo se apagou de vez.
Vários gritos de terror cortaram a multidão que até a pouco cantava e
dançava alegre. Annik desceu do cavalo e ajoelhou ao lado do irmão. Verificou o
pulso, dilatação das pupilas e os demais sinais vitais, mas o único presente
era o calor corporal e sabia que esse sumiria aos poucos. Estava morto.Soham
estava morto.
-Pai! –o grito do irmão mais novo cortou a multidão.
O pai do noivo morto, por sua vez, estava estagnado em cima de seu
próprio cavalo. Não conseguira desmontar, tampouco conseguiria chegar perto do
filho morto.
–Vá até o local de cerimonia e avise sua mãe, avise que não haverá mais
casamento. –conseguiu dizer com voz fraca depois do que lhe pareceram eras de
silencio.
Sem pensar em muitas coisas, o filho mais novo montou seu cavalo e
galopou até o local do casamento, não se dando o trabalho de desmontar ao
chegar lá. Apenas foi entrando na tenda onde ficavam as mulheres e foi em
direção a sua assustada mãe, que gritava que não era aquela a educação que lhe
dera. Ignorando todos os comentários,Annik desceu do
cavalo e segurou nas mãos da mãe, arrastando-a até a mãe da noiva e a própria
noiva. Contou-lhes o que havia acontecido, fazendo com que a mãe começasse a
gritar em desespero.
Os homens da festa, ouvindo a gritaria que se instalara na tenda das
mulheres, entraram lá sem se importar minimamente com o costume, pois queriam
saber o que acontecera para que suas mulheres ficassem tão histéricas. Vendo o
garoto ali no meio da tenda, tomaram para si que ele era o motivo de tanto
estardalhaço e o tentaram expulsar dali, mas ele foi resistente e contou tudo
novamente, antes que fosse realmente expulso do local.
-Bem, -disse o pai de Randi, que até agora não esboçara emoção alguma.
–foi prometido um dos filhos de Ananda Chidambarpara casar com minha filha. E
como o noivo morreu... Que seja você a se casar com ela, rapaz. Honre a
promessa que sua família fez para a minha.
Randi, que até o momento se mantivera quieta, correu até o pai e o
abraçou brevemente, antes de se voltar para Soham e ajoelhar-se a seu lado.
Sorriram um para o outro. Sabiam que era errado ficar feliz em meio a uma
tragédia, porém não conseguiram se conter, pois finalmente ficariam juntos.
-Pela deusa Durga! –sussurram um para o outro, sabendo que aquilo só
poderia ser castigo e milagre divino.
FIM
1- Vestimenta tradicional feminina indiana. Composta por saia longa, top
e lenços.
2- Vestimenta tradicional masculina indiana. Composta por túnica e
calças largas.
ACHEI ELA MUITO INTERESSANTE,OS DETALHES COMO VC A ESCREVEU MUITO BOM MESMO.
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